quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Vontades e não desejos

Numa belíssima canção de amor escrita há já muitos anos - L'encre de tes yeux -  Francis Cabrel canta: "J'aimerais quand même te dire,/ Tout ce que j'ai pu écrire/ Je l'ai puisé à l'encre de tes yeux...".

Pois eu quero escrever, mas não com a tinta dos teus olhos (porque não sou poeta, não sei fazer poemas de amor e nem teria destinatário para eles), quero fazê-lo com a tinta de uns olhos que vejam o mundo com menos ilusões, poucos (des)enganos, mais esperança e maior optimismo: os meus! Quero e preciso de acreditar mais em mim.

Começo por escrevê-lo. O resto logo se verá...



Viagem onírica sobre ilustrações de Maxfield Parrish

Deixámos os medos e as dúvidas para trás e iniciámos a viagem rumo ao novo ano quando as lanternas já iluminavam a noite.



A meio da encosta íngreme tu paraste para respirar fundo e contemplar o caminho já percorrido, mas uma espessa neblina não deixava ver o fundo do vale. Ficámos assim, como que suspensos sobre o vazio, durante algum tempo.



Depois olhámos em redor e percebemos então que não só a paisagem, mas também as palavras estavam mudadas: quando as dizíamos soavam estranhas e os significados eram diferentes. Prosseguimos a subida. De repente, um único raio de sol brilhou por trás da montanha, espreitando-nos os olhos. Era o dia que começava a revelar-se por detrás do cume. Continuámos pelo sinuoso trilho e, quando estávamos já cercados de claridade a toda a volta, como se caminhássemos numa pequena ilha suspensa no espaço, percebemos que tínhamos chegado ao fim da nossa viagem. As primeiras frases que pronunciámos confirmaram que as palavras tinham, de facto, tomado novos sentidos e era preciso aprender tudo de novo: saudade era agora possibilidade; amargura dizia-se ternura; realidade significava sensibilidade, tristeza dizia-se sageza; ressentimento dizia-se apenas harmonia; fraqueza significava beleza; impossível parecia ser sinónimo de incoercível e solitário de solidário; insatisfação tinha dado lugar a motivação, desamparado tinha-se transformado em equilibrado, infelicidade escrevia-se amizade… e assim por diante. Sobre as nossas cabeças havia castelos no ar e compreendemos que tínhamos chegado ao Cume dos Sonhos.



Radiantes de alegria, decidimos descansar um pouco antes de entrarmos por este Ano Novo dentro.



Será por certo irreal, inverosímil, impossível... Mas o que importa é continuarmos a tentar chegar ao cume dos nossos sonhos.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Regalo

Para regalo da minha pessoa: Almada Negreiros, a Cena do Ódio, Mário Viegas, o vendaval das palavras, e tudo, e tudo!




terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Resposta à pergunta que ficou nas reticências

Amiga,

Esta não é só uma dor. São muitas dores numa só.

Esta não é uma dor passageira. É uma passagem acidentada e perigosa que tento transpor há já muito tempo.

Esta não é uma dor qualquer. É o negrume opaco que nos acossa no exacto instante em que a luz se apaga inesperadamente e nos deixa como cegos até que os olhos se adaptem à escuridão.

Agora a sério: acho que preciso de consultar a "Senhora das Especiarias". Parece que há uma especiaria para cada pessoa e para cada mal que a aflige. Deve lá haver uma para mim...


O mundo mudou. Ou será que não?

Em 1984, a Band Aid cantava assim para ajudar os pobres em África. A música foi um estrondoso sucesso de vendas e o concerto que se lhe sucedeu - o Live Aid, um dos primeiros eventos à escala global, quando ainda não se falava de globalização -, gerou receitas de milhões de dólares. Se os pobres mataram a fome ou não, nunca ninguém soube e acho que também nunca ninguém se importou muito com isso.



Em 2009, a crise económica mundial toma tais proporções que uma iniciativa semelhante é tomada pelos artistas, mas para ajudar a salvar... os ricos. Acção de solidariedade perfeitamente justificada pois o que seria dos pobres num mundo sem ricos? É algo inimaginável!



Pessoalmente, prefiro esta segunda iniciativa. É bastante mais honesta.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Notre amie Solitude

Aqui na voz de Moustaki que, em 2009, aos 74 anos, continua a cantar e mantém intacta esta intensidade brilhante do olhar que o caraterizava em 1966.


A escavo-enceradora

Ao fazer por aqui uma certa ‘desinfecção‘ aos papéis acumulados ao longo de anos, de modo a arranjar algum espaço para acumular mais uns quantos, deparei com o cartaz de uma exposição realizada nos tempos de universidade:


Constituía o trabalho final de uma cadeira do segundo ano, e escolhemos como tema a reprodução e difusão do livro na Idade Média. Deu-nos, às quatro que o realizámos, um trabalho imenso mas, dos conteúdos propriamente ditos, só me restam agora vagas lembranças, pois eram de facto anódinos. À minha guarda ficaram as fotografias dos manuscritos que ainda guardo em casa por nenhuma razão em especial, a não ser pela grande dificuldade que tenho em separar-me de todo e qualquer papel que me caia nas mãos. Contudo, não me esqueci da história d’a escavo-enceradora e a Fátima também não. Muito de vez em quando ainda a revivemos:

Chegámos logo ao início da manhã ao Colégio do Espírito Santo. Tinham-nos atribuído a sala 208. Era uma sala de aula e havia necessidade de retirar todas as mesas e cadeiras antes de poderem ser montados os painéis da exposição. A professora tinha-nos dito que teríamos a colaboração dos funcionários da universidade mas, como é habitual nestas coisas, ninguém apareceu. Por isso, carregámos e empilhámos tudo no corredor. No fim, parámos para descansar e observar o espaço que, vazio, parecia bem diferente. A sala estava encerada e, porque o quadro era de giz, o chão estava bastante manchado e marcado. Antes de mais nada, era imperativo melhorar a sua aparência.

Enviámos uma emissária a ver se conseguia descobrir vida em Marte. Durante quase uma hora andou como que perdida no espaço sideral dos extensos corredores, até conseguir descobrir uma extraterrestre que, por mero acaso, era funcionária da universidade e pedir-lhe com muito jeito, quase em tom de súplica, por favor, por favor, que fosse ver como a sala precisava mesmo, mesmo, de ser encerada. A senhora lá veio de muito má vontade e pior catadura e, em tom de poucos amigos, declarou que ia buscar uma enceradora para nós fazermos o trabalho que lhe competia a ela. Logo que saiu, reajustámos os planos: trabalharíamos em pares a fim de realizarmos as tarefas seguintes com mais celeridade, uma vez que encerar uma sala com aquela dimensão ainda levaria algum tempo. Ofereci-me para manobrar a dita cuja, já que em minha casa havia uma e eu sabia como usá-la. Entretanto, a funcionária lá trouxe a enceradora. A Fátima, que tinha ficado comigo, dirigiu-se à mesa para cortar cartolinas e eu liguei o longo cabo do aparelho à corrente para iniciar também a tarefa a que me tinha proposto. Era uma máquina industrial e, por isso, bem maior e mais pesada do que as suas congéneres domésticas. Aliás, era mesmo imponente, mas ligava-se exactamente como elas: era preciso baixar uma espécie de alavanca que funcionava também como um leme e permitia nevegar com as escovas pelo chão.

No preciso momento em que, depois de posta a funcionar, lhe dei um leve empurrão para que seguisse em linha recta, senti um tremendo puxão no braço e comecei a ser arrastada aos esses pela sala, a uma velocidade espantosa. Era como se, por baixo das escovas, tivesse acontecido um estranho fenómeno, tipo Dr. Jekill & Mr. Hyde, e a máquina se tivesse transformado em retro-escavadora, ou melhor, em escavo-enceradora. Apanhada de surpresa não conseguia reagir e muito menos era capaz de controlar os movimentos. Aturdida pelo barulho ensudecedor do motor, limitava-me a acompanhar aos solavancos e tropeções o monstro desgovernado. Como não tinha pronunciado uma palavra, a minha colega, curvada sobre a mesa no extremo oposto da sala e concentrada no trabalho, ainda não se tinha apercebido de nada. Eu só sabia que, se puxasse a alavanca para cima, a faria parar, mas do pensamento à acção ia uma longa distância. Foi então que a escavo-enceradora virou repentinamente a sua atenção para o sítio onde a minha colega continuava a trabalhar e arremeteu naquela direcção como se tivesse vontade própria. Mal tive tempo de dar um grito de alerta e já estava a persegui-la pela sala fora. Só via a sua cara de pânico quando ela olhava para trás a ver se já estava a pontos de ser trucidada pela infernal máquina. Não sei quanto tempo durou a perseguição, mas sei que demos assim umas quantas voltas pela sala. A sorte é que a porta estava fechada, caso contrário, acho que a escavo-enceradora teria enfiado pelo corredor afora - e nós com ela – até que o cabo não pudesse esticar mais. Quando já pensava que só uma cavaleiro medieval nos poderia salvar das garras daquele dragão ululante, a Fátima teve a brilhante ideia de correr em direcção à tomada para desligar a corrente.

Quase de forma miraculosa, o rugido esmoreceu até se extinguir e o monstro ficou, por fim, inerte: era novamente uma simples enceradora. Ali ficámos as duas, no súbito silêncio, estarrecidas de surpresa, ofegantes de cansaço e banhadas em suores de todas as temperaturas a olhar uma para a outra e sem pronunciar palavra durante algum tempo. Não muito, porque ainda não tínhamos recuperado o fôlego, e já ríamos em sonoras gargalhadas. Parecia-nos impossível parar de rir, da mesma forma que nos tinha parecido impossível parar a enceradora. Por fim lá recuperámos o controlo, porém, bastava cruzarmos os olhares para tudo voltar ao princípio.

Quando as duas colegas chegaram e tentámos contar o que tinha acontecido, a história saíu tão atabalhoada pelo riso que elas ficaram a olhar para nós com cara de quem, no mínimo, tinha dúvidas sobre a veracidade de tão bizarro episódio. Só o brilhante trilho que serpenteava no chão comprovava que, afinal, alguma coisa se tinha passado. Exactamente o quê, é que as recém-chegadas ainda não tinham percebido muito bem. Nisto, a Dina, com o seu habitual sentido prático, arregaçou as mangas e, enquanto se dirigia para a enceradora, declarou que quem ia tratar daquele assunto era ela. Temi pela sua vida e achei que, se tivesse amor à minha, o melhor a fazer era fugir dali a sete pés. Não sei se foi o tom firme e decidido, se foi a expressão determinada do rosto, sei é que ela ligou a maldita coisa e esta obedeceu prontamente à voz da dona, como se fosse um cachorrinho. Ficámos a olhar boquiabertas enquanto a Dina circulava eficientemente pela sala aos comandos da enceradora como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.

Ainda hoje não sei explicar o que aconteceu naquele dia, sei é que aconteceu, e sei que nunca mais voltei a olhar para enceradoras da mesma forma. Sei também que nunca mais na vida voltei a dar gargalhadas tão genuínas como aquelas. Se calhar, porque nunca mais me aconteceu nada de semelhante.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Dizer-se

Pouco se fala de Brel e já pouco se escuta a sua música. É daqueles vazios que não consigo entender muito bem. Talvez se explique pelo facto de Brel ser intimidante na sua reserva tímida, incómodo pelo que diz nas suas canções e, sobretudo, pela força com que o diz. Nesta entrevista fala sobre o natal, a infância, o crescimento, o amor, Deus, os sonhos, a vida...  Nela, Brel diz ainda que as suas canções são gritos de dor. Ne me quitte pas diz a dor da separação em metáforas paradoxais inesquecíveis. Continuo a ouvi-la com o mesmo fascínio.




Arqueologia das palavras

Um país de velhos

Vamos admitir que velho é sinónimo de maduro, ponderado, reflectido. Vamos admitir também que com o acumular dos anos vem igualmente o acumular de experiência, de cultura, de saber. Teremos assim que Portugal não é apenas um país de velhos, mas também de gente madura, reflectida, inteligente, sólida de saber. Falta-lhe é certo a generosidade da juventude, mas em compensação sobra-lhe poder de reflexão, capacidade de julgamento sereno.
(...) A senilidade será um ornamento muito respeitável, que Portugal oferecerá para a lapela da Europa – uma flor murcha, sem seiva, prestes a secar de um momento para o outro e sem possibilidades de encontrar novas Primaveras. (...)
Em determinada altura recorreu-se à emigração para resolver graves problemas económicos – recurso de desesperado, que provocou mais problemas do que aqueles que resolveu.
Há, espalhados por diversos países do mundo, alguns milhões de portugueses, que procuraram além-fronteiras o que lhes foi recusado na sua própria pátria. Levaram com eles riqueza, juventude, engenho, capacidade de trabalho e revigoramento. Em seu lugar deixaram caquexia, senilidade, incapacidade de produção ... e reprodução. (...)
Aumentam as esperanças de longa vida e de restrição da natalidade, aumentam também as correntes emigratórias, pois o direito de emigrar para angariar meios de vida que faltam no país não pode ser negado a ninguém. Logo, o rápido envelhecimento da nossa população continuará a ser um facto que os sectores respectivos da nossa administração terão de ter em conta.


O texto acima transcrito foi publicado a 16-5-1969, no nº 1562 da revista Vida Mundial, numa rubrica intitulada “Nota da Semana”, sem autor identificado.
É curioso como, quarenta anos depois, este texto podia perfeitamente ter sido publicado na Visão ou na Sábado desta semana, pois mantém uma actualidade impressionante. Mais o mais incrível é que, quarenta anos depois, a nossa administração ou governo ainda nem sequer parece ter começado a pensar de forma séria neste problema.

Devíamos, nós que trabalhamos para sustentar o sistema, começar a perguntar aos nossos excelsos governantes, até quando é que eles acham que, tão poucos, poderão garantir a subsistência de tantos.

Dor e não cansaço

Viver todos os dias cansa*, dizia o título em letras garrafais. 
Pois a mim, pelo contrário, viver não cansa, dói-me. Cada dia que passa enterra mais fundo o punhal de tristeza que a vida um dia me cravou nas costas. Por isso, viver dói-me um pouco mais todos os dias.


*Título de um romance de Pedro Paixão, Ed. Cotovia.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Ilusões

Muitas das palavras com que nos dizemos aos outros são meias verdades, outras são mesmo mentiras. Dizemo-las para não parecer mal, para fazer bonito, para não magoar ninguém, para (cor)respondermos ao que os outros esperam de nós, para não darmos parte de fracos ou para esconder o nosso verdadeiro estado de calamidade interior... A nossa secreta expectativa é que, à força de as repetirmos, acabemos por conseguir acreditar nelas, e em nós mesmos. Tudo seria então bem mais fácil. Ou talvez não.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Apenas música, sem vestígio de natal

E porque a música dita 'de natal' me enjoa tanto quanto os sonhos, as filhós e as rabanadas excessivamente doces...


Ah, se as palavras...

Ah, se as palavras fossem pedras, atirava umas quantas a certos telhados de vidro para ver se estilhaçava de vez esta angústia que tantas vezes me consome. E, se as palavras fossem catárticas, escrevia um dicionário completo de A a Z para não deixar escapar nem uma.

Abrigo

A minha casa é uma concha. Como os bichos / segreguei-a de mim com paciência e esforço ao longo de muitos anos e percalços. Nela me abrigo da chuva e do vento, mas não do frio. Esse abriga-se dentro de mim, velho companheiro a quem dou guarida.

Adaptação pessoal de A Concha de Vitorino Nemésio, in Poesia (1935-1940)

Os gestos dos sabores

Gestos seguros, sábios, experientes, esforçados, genuínos, livres de corantes e conservantes.
Sabores únicos, feitos com o engenho e com a complexidade das coisas simples e verdadeiras.
Tudo preservado em vídeo para  memória futura. Por uma vez, alguém disponibilizou dinheiro para se fazer alguma coisa de fundamental: preservar este vasto e rico património. 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Glossário (im)poético de natal

Há palavras que, nesta época, estão por todo o lado. Repetem-se em incontáveis “mensagens” que circulam por aí, mas que pouco dizem de facto. Soam bem às consciências, como se o simples factos de as dizermos, escrevermos e repetirmos até à saciedade bastasse para curar os males do mundo... Aliás, parece até mal não as dizer. O problema é que algumas dessas palavras estão gastas, outras sujas, outras ainda envelhecidas ou doentes. Há as que já não se lembram do seu verdadeiro sentido, porque se deixaram corromper. Há ainda as que perderam sentido e ficaram vazias. Assim cada um enche-as com o sentido que mais lhe der jeito na ocasião. No natal então, algumas dão mesmo muito jeito para enfeitar os sms e fazer bonito nos mails. Mas há nelas um lado negro... 

LIBERDADE és ainda uma lírica imagem!...
Equivales a cada um poder morrer de fome,
no enxurdeiro, a um bom sol, sob uma carruagem!...

FRATERNIDADE, invento alegre de acrobatas!
Lembras-me sempre a mim patíbulos, calvários,
pelourinhos, polés, monstros canhões, chibatas.

IGUALDADE, brasão de entes humanitários,
como te entendem bem, lá, na africana gente,
senhores de roça vis... na Europa os milionários!

JUSTIÇA, desleal balança, com dois pratos,
ambos de ouro de lei, porém com pesos falsos,
tens dentro de um Jesus, e no outro Pilatos.

AMOR, volata azul, sonata extasiante,
que se volve mais tarde em cutelo ou baraço,
reduzes a mulher a mártir ou bacante!...

ALTRUÍSMO, expressão sonora com que engraço!
Tem um contra porém... ser o anzol traiçoeiro,
que ao senhor dá a uva e ao escravo o bagaço.

PAZ, visão cor-de-rosa e que enternece o zote!
Corresponde a ter dez milhões de combatentes,
balões com melinite, e mil naus de alto lote.

FAMÍLIA lembra o pai, lembra a esposa, a criança,
causa terna emoção... sobretudo quando há
um tio excepcional que nos lega uma herança.

ESMOLA, flor que o high life hoje planta em gazeta,
e expõe como leões, em feira, à vozearia,
com ruídos de tambor e toques de trombetas.

LUXO, aroma subtil e doido no ar disperso,
nevrose do cetim, a esmeralda, o veludo,
mais que a Sífilis e o Ouro apodrece o universo.

HUMANIDADE, som de flautim feiticeiro,
que tanto tangem Nero e Judas de Isacriote,
como o rei, o histrião, o dentista, o coveiro!...

Eis a tua autópsia ó mundo actual, teu cinismo!...
Tudo é mentira em ti. Por isso hás-de rolar,
cadáver falso e vil, aos ervaçais do abismo.

Gomes Leal, in Mentiras Sentimentais,
Fim de um Mundo (Sátiras Modernas)
(Texto com supressões e adaptações)

Quadrados de chocolate

As comidas natalícias não me dizem mais do que as dos outros dias todos do ano. Mas, hoje, faço questão de terminar o serão com uns quadrados de chocolate negro, feitos de modo artesanal em S. Tomé. Cada um deles explode de sabor na boca, e depois envolve o palato em sensações intensas e complexas que perduram por longos instantes: calor fluido, maciez compacta, uma doçura que não é doce, mas intensa, a sugestão da baunilha e da canela... Sabor de luxo e de luxúria, quase místico, tudo condensado num pequeno quadrado de "Chocolate".

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Tópicos de uma vida sem história

Nasce numa abastada família alentejana como única herdeira de considerável fortuna. No fim da adolescência apaixona-se por um jovem que, de seu, apenas tem um palminho de cara. A família insurge-se, proibe, ameaça... mas não há nada a fazer. Pouco tempo antes do casamento ainda tem que lidar com o suicídio do pai que adorava. Como era norma nos idos de cinquenta, o noivo torna-se sócio e toma conta do negócio familiar. À agora jovem esposa cabe supervisionar o bom funcionamento do lar e as criadas. A vida é burguesa, desafogada, sem episódios nem preocupações.

Quando os dois filhos estão já na universidade, há necessidade de contratar uma nova funcionária para a loja. De origem humilde, jovem e expedita, a rapariga não demora muito tempo a compreender que a vida lhe está a dar uma oportunidade única, que ela agarra com presteza. Meses depois, desfeito um noivado de anos, já vive na “casa posta” pelo patrão, como se dizia na altura, e controla-o por inteiro.

O casamento torna-se-lhe insustentável, mas a separação é litigiosa. O marido apropria-se de todos os bens familiares, deixando-a na penúria. Segue-se um processo de partilhas que se arrasta no tribunal por quase dez anos, com peripécias surrealistas à mistura. O primogénito toma o partido do pai e o benjamim testemunha a seu favor. Todos na família acabam por tomar partido e passam a encarar os outros como adversários que é preciso aniquilar.

Os irmãos só voltarão a falar-se mais de vinte anos depois, quando o acaso junta, na mesma universidade, duas primas que não sabiam da sua mútua existência. (Re)descoberto o parentesco, as duas jovens decidem voltar a reunir a família desavinda. O filho quase pródigo regressa então para lhe apresentar as netas que nunca tinha conhecido. Sucedem-se almoços, longas conversas (re)vêem-se álbuns de fotografias, filmes de família... Tentam recuperar o tempo que ficou vazio na memória, para que não pareça perdido. Contudo, sente-se que paira uma sombra, que o passado tinha deixado marcas profundas e que o grau zero da desconfiança, da inveja e da cobiça já não era possível. Quando altera o testamento para incluir o filho mais velho na herança, a brilhante mas muito fina camada de verniz começa a estalar e o mais novo dos irmãos, até aí único beneficiário, dá sinais claros de desagrado.

Adoece e os filhos decidem interná-la num lar. Tudo é cada vez mais difícil entre os irmãos que começam de novo a afastar-se. O casamento do mais velho deteriora-se e acaba num divórcio a que se sucede um processo de partilhas com incríveis semelhanças com o dos pais.

A casa onde nasceu e sempre viveu, cuja propriedade tinha sido atribuída ao ex-marido, é vendida em segredo pelo primogénito com a conivência do pai. A descoberta fortuita do negócio precipita tudo: o ódio entre os irmãos é agora maior que nunca. Como sofre de demência já não tem consciência plena do que se passa à sua volta. Só sabe que assinou uma procuração a dar plenos poderes ao filho mais novo para que ele se aposse de todos os bens, uma vez que os considera legitimamente seus e não pretende partilhá-los com o irmão.

Algum tempo depois, o pai e a sua muito mais jovem esposa, mudam-se praticamente para casa do filho mais velho, agora a viver sozinho. Uma florista, que conhece a família, manifesta estranheza pela frequência com que o primogénito compra grandes ramos de rosas e antúrios. Acha sobretudo estranho porque só o vê acompanhado pela madrasta e pelo pai. Meses depois, o pai telefona ao filho mais novo, com quem não trocava uma palavra há trinta anos. Entre soluços e gritos conta que que não tem um cêntimo, pois todos os bens estavam no nome da nova mulher e, sobretudo, que já não tem mulher, uma vez que esta o trocou pelo filho mais velho. Pede-lhe ajuda para reorganizar a vida, pois não sabe o que fazer: está só, numa casa vazia, com uma modesta pensão e hábitos de vida não compatíveis com a quase indigência. O filho diz que sim, que vai ajudá-lo.

O pai passa agora os dias junto à cama onde ela espera que a morte venha buscá-la. Sempre que alguém a visita ele conta com detalhes o que lhe aconteceu, em tom quase histérico, com os olhos injectados de raiva. Enquanto ele fala, ela olha-o em silêncio, com uma expressão enigmática no rosto fechado. Não há como saber o que pensa desta reviravolta da vida: o corpo inerte mal faz vulto na cama, já não reconhece quase ninguém e não pronuncia mais do que alguns sons praticamente inaudíveis. 

Neste dia, contudo, dá mostras de reconhecer a amiga de longa data e das horas difíceis, pois sorri quando a olha. No fim, a amiga diz-lhe baixinho: vou-me embora. E ela responde de modo surpreendentemente claro: eu também vou

Só posso desejar-lhe que a viagem seja breve e lhe proporcione, por fim, algum descanso.

Altos e baixos

Hoje, na consulta de anestesia, a médica observava o electrocardiograma e dizia “tem uma frequência cardíaca bastante elevada, mas, curiosamente, a sua tensão arterial está baixa”. Só posso concluir que, pelos vistos, no que à instabilidade diz respeito, até sou bastante estável. Deve ser por isso que a minha vida é feita de constantes altos e baixos. Embora nestes últimos tempos ande mais aos tombos. Para quebrar a monotonia, certamente.

Temporal

Lá fora o temporal. O vento parece querer empurrar a casa para outro lugar qualquer, como quem desloca um móvel pesado e quase uiva de raiva por não o conseguir. A água escorre pelos estores em bátegas violentas. O som é tão forte que, por momentos, parece que a casa, afinal, é um barco à mercê de ondas furiosas. Sinto-me quase como um marinheiro a quem foi dada licença para ir a terra. Por isso, amanhã logo cedo faço a mala e desembarco em casa dos meus pais. Não haverá qualquer celebração natalícia, ficaremos apenas quietos e mudos à espera que a tempestade amaine.

A solo

Ao ouvir esta música...

Uma palavra branca
No arco retesado deste dia,
Um alvoroço de pureza
Uma ameaça de sonho e poesia.

E logo...

Apetece sair, seguir, sondar
O segredo das pedras e dos passos
Nelas amortecidos.
Abrem-se no ar novos espaços
Angelicamente prometidos.
(...)*

Mas afinal, fico apenas quieta a escutar a noite...  e continuo a ler.



*João Maia, Domingo de Lisboa, in Um halo de solidão, p. 19.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A brincar, a brincar...

lá chegaremos...


O caminho do sonho

Entro no carro e sigo pela avenida. No cruzamento, a placa aponta para a direita. Viro e vou conduzindo devagar. À medida que avanço, o verde da paisagem cerca o carro e torna-se mais intenso. Durante algum tempo vejo também a espuma das ondas que batem contra as rochas negras da falésia e o sempre omnipresente verde-claro das arribas em volta. Os matizes coloridos das hortênsias começam a transformar o caminho numa espécie de aguarela viva que ondula com o vento. É impossível continuar a conduzir ignorando a exuberância destas cores. Em alguns pontos da estrada a beleza é tão pungente que tenho mesmo de parar para que a paisagem me lave os olhos e me limpe o espírito de tudo o que não seja verde e azul, em todos os tons e matizes possíveis. 

A estrada começa agora a subir e torna-se mais sinuosa. É preciso parar cada vez com mais frequência para habituar os olhos a tanta beleza, tal como um alpinista precisa de fazer pausas para se habituar à altitude. Neste momento já só existem o verde e o azul. Não há nada, nem ninguém a ensombrar-me o pensamento. Mesmo o tempo parece ter ficado parado lá em baixo, no cruzamento onde foi preciso virar à direita.  Por fim, ao sair de uma curva, o sítio que procurava surge de repente, mesmo à minha frente. Saio do carro e vou sentar-me no rebordo do mundo, como se fosse Deus e tivesse vindo ver o que os homens fizeram da criação que lhes foi confiada*.


S. Miguel, Açores, Lagoa das Sete Cidades, Nov. 2003

Ao fim de um tempo que não sei precisar, entro novamente no carro e, quase com pesar, percorro o caminho que me há-de trazer de volta à realidade para chegar pontualmente à escola, mesmo a tempo de iniciar a reunião, ainda com os olhos carregados de tons verdes e azuis.



*Tradução pessoal da letra da canção "Assis sur le rebord du monde" de Francis Cabrel: http://www.youtube.com/watch?v=8zAuUjvbFQI

domingo, 20 de dezembro de 2009

O natal dos anúncios


Imagem retirada do jornal Público
Como são lindos os anúncios de natal! Como estão cheios de gente bonita, bem sucedida, rica e feliz, muito feliz! Sugerem imperativamente que compremos  jóias, perfumes, roupas de marca, whiskies, bons vinhos, carros ou o último grito em tecnologia. Mostram famílias com várias gerações reunidas em harmonia e alegria.Têm casais que trocam olhares apaixonados e gestos carinhosos. Pelo meio, divulgam as habituais campanhas de solidariedade para os coitadinhos do costume. Revelam crianças que brincam e correm por toda a parte, felizes. Povoam-lhes as fantasias com personagens mágicas. Transbordam de mesas requintadas e fartas, em salas magnificamente decoradas onde, na lareira, crepita sempre, mas sempre, um fogo reconfortante. Publicitam lojas e centros comerciais cheios de gente alegre que compra, compra como se não houvesse amanhã ou como se a felicidade estivesse em promoção. Assim uma espécie de animado Christmas Can-Can, como na canção dos Straight no Chaser:


Os anúncios de natal mostram como os nossos desejos mais secretos estão ali, mesmo ao nosso alcance. Se calhar até em campanha especial de natal, com desconto até 40%! São lindos estes anúncios de natal. E só há anúncios, luzes e música de natal por todo o lado!

Pena é que Natal, propriamente dito, não haja tanto assim. Acho até que, Natal, é o que menos há por todo o lado, sobretudo nos rostos sérios, fechados ou cansados com que me cruzo na rua. Pena é que, a cada ano que passa, o Natal seja cada vez mais o dos anúncios e menos o das pessoas e das emoções que as deviam (re)unir.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Blogo-réplica a Miguel Torga

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
(...)
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
-----------------------------------------------

Sentir de novo o calor da tua pele seria
Matar a fome com dura sola.

Ver de novo o brilho zangado do teu olhar seria
Curar as feridas com ácido.

(Adaptação pessoal do poema Súplica, in Câmara Ardente)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A contemplação também é uma música assim

Silence, night and dreams: Parte I
Understand the season,
understand your mind.
Let yourself feel contact,
closeness that we find
mute as if enchanted,
days pass by in streams
leaving naught behind but
silence, night and dreams.

Krzystof Piesiewicz



Silence, night and dreams: Parte II
Porque estão os pobres tão sobrecarregados pelo desespero?
Porque se sentem os ricos cada vez mais sós?
O silêncio que desperta a angústia
abraça tudo, a noite e os sonhos.
A noite que envolve a tristeza e o desespero.
Os sonhos de esperança numa transformação.´
Escutemos Job.
E talvez prevaleçamos contra
os slogans, os rótulos, as ilusões e a indiferença,
berços que nos rodeiam.

Zbigniew Preisner (Tradução pessoal)



Proverbiais e aforísticas a duas vozes

Ontem, a pintura foi o prato principal das conversas ao jantar. Por isso, as proverbiais e aforísticas desta ocasião só podiam ser:
  • Vão-se os quadros e fiquem os pregos. (Pluma Alada)
  • Quadro a quadro, enche a pintora a parede (Caneta)

Ter "lata"

Conheço algumas pessoas que têm "lata". Ter "lata", ter mesmo muita lata é, por exemplo, ser capaz de lixar um colega, amigo, familiar, a empresa onde se trabalha, até o próprio Estado e, depois, agir como se nada tivesse acontecido. Ter "lata" é estar na maior, mesmo quando se está na "jaula do leão". É ser grosseiro e vulgar com os outros e continuar na maior. Aliás, os outros, se não tiverem alguma utilidade prática, só lhes merecem desprezo. Ter "lata" é ter uma auto-confiança tão grande que nada, nem ninguém, os pode afectar, muito menos tocar. São oportunistas e hipócritas a quem  a vida corre bem, mesmo muito bem. Detesto-os!

Infelizmente, nos dias que correm, ter "lata" é imprescindível para quem quiser ter um mínimo de sucesso na vida. Aliás, o mundo é cada vez mais desta gente. Disso não tenho quaisquer dúvidas.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A porta da poesia

Verdade


A porta da verdade estava aberta,mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade resplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade

Nota: Fotomontagem de J. Tomé: Convento de S. Paulo / Serra d'Ossa

Palimpsesto

Escrever num blogue,  como escrever em qualquer outro suporte, requer que se encontrem as palavras certas. E isso é, quase sempre, o mais difícil. Há o que pensamos e o que queremos dizer e depois há o que realmente escrevemos: às vezes as palavras no papel parecem ser apenas a sombra daquilo que queríamos realmente dizer. No meio há as palavras que se escrevem, que se riscam ou rejeitam e as outras que vão para o lugar dessas e as frases que se ajeitam, acrescentam ou mudam de sítio. 

Claro que, se alguém vier a ler o que redigimos, há ainda que ter em conta a forma como os outros o vão ler e interpretar. Chegados a este ponto, tudo está já muito distante em relação ao pensamento-matriz inicial: parece até que não fomos nós que escrevemos.

No entanto, nesse texto final está tudo: o que é vísivel e o que é apenas subliminar, as ideias, as tentativas de aproximação através das palavras, as rasuras, as correcções, a depuração da escrita. Todos os textos, nem que seja uma simples lista de supermercado, no fundo, são palimpsestos do nosso próprio mundo interior. Nós é que só conseguimos ler o que fica visível a olho nu.

Talvez seja melhor assim.  Se tivéssemos a capacidade de ler também o que fica invisível então o mistério desapareceria do mundo e tudo ficaria mais monótono e enfadonho.

"Subtext (Tales of mere existence)", uma curta metragem de 2006, realizada por Lev, tem como argumento de partida esta mesma ideia: o que queremos realmente dizer quando escrevemos (neste caso, um e-mail)? 


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A metáfora

Os dias decorriam dentro dos limites de uma rotina anódina, solitária e sem grandes sobressaltos. Um dia, sem que nada o fizesse prever, um exame médico revelou problemas de saúde inquietantes. Foi necessário alterar a rotina para acudir rapidamente à situação.

Mas um grão de areia tinha entrado na engrenagem e nada voltou a ser como antes. Tudo começou então a desmoronar à sua volta e dentro da sua vida: confiou nas pessoas erradas, encontrou as pessoas erradas no momento errado, apostou nas pessoas certas, mas no momento errado e conheceu as pessoas erradas no momento certo. Procurou, andou às voltas, andou para trás e para os lados, porém, nunca mais encontrou o caminho que segue em frente. Por fim, quando do lugar onde era suposto saírem laranjas saíam já bananas comprimidas em cascas de laranja, foi forçada a convencer-se de que a avaria na engrenagem era mais grave do que aquilo que estava disposta a admitir até para si mesma.

Foi novamente ao médico. Está agora a tentar negociar tréguas com uma depressão profunda e renitente. Usa comprimidos - vários por dia - como argumentos dissuasores. Contudo, o acordo de paz ainda não tem data marcada. A engrenagem está por isso em lay-off: Ninguém sabe se, ou quando, a linha de produção voltará a funcionar.

É disto que fala a extraordinária curta metragem “Passe-Vite” de Ben Verschooris, Bert Dombrecht e Korneel Detailleur, realizada em 2007. É uma metáfora quase perturbadora da minha vida nestes últimos três anos.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Repetições

É impossível não reparar que as pessoas, a partir de uma certa idade, têm tendência para repetir as histórias, as ideias, os conceitos... Às vezes, sem se aperceberem, repetem-nas às mesmas pessoas, em ocasiões diversas, o que provoca também diferentes reacções nos ouvintes: dos que ouvem pacientemente e sem dizer nada porque pensam "coitado, está senil", aos que interrompem logo em tom impaciente com um "é pá, já contaste essa história trinta vezes".

Chico Buarque, a páginas 114 e 212, do seu livro "Leite Derramado" explica de uma forma tão bonita quanto poética que: Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar. (...) é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida.

O bom mesmo é chegar à velhice e ter histórias interessantes, bonitas ou divertidas para repetir. Essas, os ouvintes guardarão na memória e, por sua vez, repetirão a outros. Infelizmente estes "repetidores de histórias" são cada vez mais raros. A maioria chega ao fim da vida e só tem amarguras e desenganos para contar, o que é bem triste.

domingo, 13 de dezembro de 2009

A serenidade também é uma voz assim

Maria Bethânia diz, como só ela sabe dizer, o "Poema VIII" de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro e, depois, canta "O doce mistério da vida".

A penumbra fria que vagueia pela casa, aplacada, serena por instantes.


Binómio improvável

Entre mim e a rima há um distância intransponível. A rima exige regularidade fónica e rítmica. E eu, por natureza, sou irregular e instável.
A estância é um corpo harmonioso, às vezes mesmo de formas arredondadas, que se valorizam no espartilho da métrica. E eu, por natureza, sou comprida e cheia de arestas. Gosto de me estender na frase a toda a largura da folha.
Ao contrário dos poetas, sou míope e totalmente incapaz de ver a poesia nas coisas ou pessoas ao meu redor. Limito-me, pois, a apreciá-la e a senti-la nas palavras alheias.
Entre mim e o poema, não é uma questão de mais ou de menos, simplesmente, o binómio não é possível.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Fantasia em três videoclips e um epílogo

Tenho uma amiga que, nestes últimos anos, tem vivido uma relação amorosa marcada por discussões, desencontros, acusações, cobranças, separações tempestuosas a que se seguem ardentes reconciliações. Enfim, uma relação que se arrasta no tempo carregando um lastro cada vez mais avolumado e que ameaça afundar de vez os seus protagonistas.

Muitas vezes tenho sido confidente e me têm sido pedidos conselhos e sugestões. Contudo, em matéria de relações amorosas, claramente, eu própria precisaria de alguns sensatos ensinamentos (isto, claro, partindo do princípio que alguém, alguma vez, seguiu ou seguirá os bons conselhos alheios!). Não me sinto, de todo, habilitada a aconselhar ninguém em tal assunto. Reconheço, porém, que a minha amiga precisa mesmo de ajuda para dar um novo rumo à sua vida.

Foi então que, na rádio, passou uma canção da Shania Twain. Não sei se foi a ligeireza do ritmo pop-country, se foi a irreverência cáustica da letra, certo é que se fez luz no meu espírito. Acho que posso, finalmente, ajudar a minha amiga, usando para tal os sábios conselhos de gente muito experiente na matéria e que, com certeza lhe vão dar algumas ideias para resolver a situação. Passo a explicar:

Videoclip nº 1: Men are like shoes

Entre outras pérolas de sabedoria feminina, Shania Twain coloca logo as coisas, ou melhor, os homens, em perspectiva ao dizer que eles são como … os sapatos. Só mesmo as mulheres é que compreendem o alcance e a profundidade desta afirmação:
Some make you feel ten feet tall,
Some make you feel so small.
An' some you wanna leave out in the hall,
Or make you feel like kickin' the wall.
Ah, sing it with me, girls, ooh! (…)

Sometimes you hate 'em, an' sometimes you love 'em,
I guess it all depends on which way you rub 'em,
But a girl can never have too many of 'em. (…)

It's amazing what a little polish will do,
Some clean up good, just like new.
Some you can't afford, some are real cheap.
Some are good for bummin' around on the beach. (…)

But a girl can never have too many of 'em.
I ain't got time for the flip-flop kind...
Men are like shoes.

Ressalva: claro está que Miss Shania Twain, com aquele palminho de cara e a choruda conta bancária que possui se pode dar ao luxo de usar só Manolo Blanicks ou Prada. Nós, pobres mortais, às vezes temos mesmo que nos contentar com uns “modelitos” mais em conta, o que, como sabemos, tem algumas desvantagens e inconvenientes.

Para conferir a teoria: http://www.youtube.com/watch?v=PMAqeWMvi7E

Videoclip nº 2: 50 Ways To Leave Your Lover

Como explica muito bem Paul Simon:
The problem is all inside your head", (...)
The answer is easy if you take it logically
I'd like to help you in your struggle to be free
There must be fifty ways to leave your lover

É, pois, altura de passar à acção, nem que seja por tentativa e erro. O que não se pode é ficar passivamente à espera que o pior aconteça. Propõe então uma verdadeira estratégia de guerrilha capaz de neutralizar o adversário mais renitente:
You just slip out the back, Jack
Make a new plan, Stan
You don't need to be coy, Roy
Just get yourself free
Hop on the bus, Gus
You don't need to discuss much
Just drop off the key, Lee
And get yourself free (…)

Link para conhecer toda a estratégia: http://www.youtube.com/watch?v=RTiyLuZOs1A

Videoclip nº 3: Começar de novo

Conseguida finalmente a tão desejada liberdade há que respirar fundo e dar tempo para que a auto-estima se recomponha. Só depois estarás pronta para iniciar uma nova etapa da tua vida ou, como tão bem canta Simone:
Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Ter amanhecido (...)
Sem o teu fantasma
Sem tua moldura
Sem tuas escoras
Sem o teu domínio
Sem tuas esporas
Sem o teu fascínio
Começar de novo
E contar comigo
Vai valer a pena
Já ter te esquecido

Link para ver e ouvir, que vale bem a pena: http://www.youtube.com/watch?v=Nj_X-Uv7yyA

Epílogo: 21 things I want in a lover

Amiga, chegada a este ponto da história, ou melhor, desta fantasia, espero voltar a ver-te com ideias muito claras sobre os homens que queres, ou não, na tua vida. Exigente, às vezes mesmo caprichosa, endiabrada, volúvel e apaixonada, estás como sempre te conheci: bem contigo mesma. Exactamente como diz Alanis Morissette:
(...) Are you uninhibited in bed, more than three times a week, up for being experimental?
Are you athletic?
Are you thriving in a job that helps your brother?
Are you not addicted?
These are 21 things that I want in a lover
Not necessarily needs but qualities that I prefer
I figure I can describe it since I have a choice in the matter

Link para conhecer todos os requisitos: http://www.youtube.com/watch?v=z9u5MQqaG0o

Quanto a mim, só posso esperar que estas minhas fúteis ideias e vãs palavras te possam ajudar a dar umas boas risadas. Por experiência própria, sei que as coisas ficam logo melhores quando o conseguimos fazer.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Delírios

Fernando Pessoa escreveu um dia que "Há poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade - não o neguemos - facto evidente para mim enquanto estou sentado; há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas; em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho. (...) É que a poesia é espanto, admiração, como um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atónito com as coisas.". Se substituirmos a palavra "poesia" pela palavra "arte", o texto é igualmente válido e verdadeiro: tudo depende dos olhos com que se vê o mundo à volta e da forma como ele é (re)criado, depois, nas telas ou no papel.

O graffiti, sempre presente nas paredes das nossas cidades, feito por artistas que não são anónimos, mas apenas desconhecidos do grande público, é talvez a manifestação artística que mais vive da aproximação entre os universos da palavra e da imagem. Alguns deles são de tal modo bons, como é o caso de Basquiat ou de Banksy, que acabam mesmo por sair das ruas para o espólio dos museus, galerias e coleccionadores por esse mundo fora.

Ao ver esta imagem que encontrei por acaso na net e misturando tudo isto, pensei, ou melhor, delirei. Este graffiti bem poderia ter sido obra colectiva dos heterónimos de Fernando Pessoa: as palavras de Caeiro, a pintura (auto-retrato?) de Campos, feito durante uma visita ao Ricardo Reis, já então a viver no Brasil, e fotografado pelo próprio Pessoa que, por acaso, estava sentado na esplanada do café em frente, a escrever o supracitado texto.

(imagem retirada de http://blog.uncovering.org/)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Proverbiais e aforísticas

De boas intenções estavam os Protocolos do Rio de Janeiro e de Quioto cheios.

E Copenhaga?
Trará algo de novo? Ou será, mais uma vez, como diz no refrão de "One way donkey ride":
God bless the poor ones, so helplessly they have cried.
God bless the poor ones who have none, though they have tried.
God bless the poor ones who want some, but are denied.
God bless the poor ones whose patience never died.
God bless the poor ones on that one way donkey ride...



(Não consegui encontrar a magnífica versão original cantada pela Sandy Denny, mas esta dos Whippersnapper é também muito boa!)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Árvore de Natal

Estive hoje a fazer a minha árvore de natal.

Enfeitei-a com os desejos que mais gostava de concretizar, com aquilo que, sei-o bem, não estará nunca ao meu alcance:

Neste, como em todos os natais da minha vida, queria ter...

Reinhold Niebuhr
(adaptação pessoal)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O que me vale é ter amigos assim…

O Hernâni, o Jorge e eu, velhos companheiros de armas dessa espécie de busca do graal que é encontrar/comprar o livro que ainda não temos, mas queremos muito ter, combinámos ir a Évora, um destes dias, para assistir ao lançamento de um livro de autor nosso conhecido.

Chegados à Biblioteca Pública pelo fim da tarde, deparámo-nos com a porta fechada. Mais estranho ainda era o facto de, à hora prevista para o início do evento, todas as luzes do edifício estarem apagadas. Depois de alguns minutos de espera inútil, o Hernâni - um intempestivo que faz e diz tudo a fundo - resolveu dar uns valentes murros na imponente porta, mas em vão. Como não houve resposta e, felizmente para nós, a porta não soçobrou à força bruta que lhe foi aplicada, levantou-se a hipótese de ter havido algum equívoco. Claro que isto foi dito em tom de estranheza e quase a meia voz, não fosse o Hernâni melindrar-se pois, nestas coisas dos livros, não costuma falhar! Depois de mais uns minutos de hesitação, encaminhámo-nos para a Praça do Giraldo e, como se não houvesse amanhã, entrámos apressados na Livraria Nazareth à procura de respostas. As funcionárias, já conhecendo o trio, nem sequer estranharam muito a pergunta. Ou, pelo menos, não o demonstraram. Uma delas foi verificar a agenda online: afinal o lançamento só decorreria dali a duas semanas e tinha um número em comum na data – o seis –, daí a confusão. Nem valia a pena dizer mais nada, mesmo porque, nesta altura, o Hernâni já não estava para graças.

Para que a viagem não fosse de todo em vão, embrenhámo-nos nos apinhados e estreitos corredores da livraria, cada um dirigindo-se para a área temática que mais lhe interessava. A escassos minutos do encerramento da loja, olhei em volta e não vi nenhum deles. Desci. Cá fora, encontrei o Hernâni já à minha espera. Enquanto me mostrava o livro que tinha comprado, duas funcionárias saíram da loja e uma delas fechou a porta. De repente, apercebemo-nos da ausência do Jorge. Como não eram as funcionárias da livraria, concluímos que ainda devia estar lá em cima, provavelmente esquecido das horas, e decidimos esperar, achando que não tardaria a ser convidado a sair. Contudo, os minutos passavam e o nosso amigo não aparecia. Foi então que as duas empregadas da livraria saíram, trancando a porta. Alarmados com a possibilidade de o Jorge ter ficado esquecido na loja (hipótese não tão estapafúrdia assim, tratando-se do nosso distraído amigo), questionámos de imediato as senhoras que, nesta altura, olharam para nós com a expressão de quem duvidava já do bom estado da nossa sanidade mental. Garantiram-nos que o Jorge tinha saído bem antes de nós e viraram-nos costas. Ficámos os dois, aturdidos, sem saber o que pensar, nem o que fazer. Do Jorge nem
sinal. Não havia mais remédio senão esperar.

Encostámo-nos ao enorme pilar da arcada, mesmo em frente da livraria. Ao fim de um tempo que pareceu interminável, já cansada, decidi dar uns passos para desentorpecer os pés. Contornei o pilar e, placidamente encostado do outro lado, estava o Jorge, à nossa espera: “Já estava a pensar que tinham ficado trancados na livraria”, disse ele em tom casual. Nem cheguei a abrir a boca, pois o Hernâni soltou logo ali o vozeirão tonitruante: “Ó seu...!!!”. Enfim, “muito barulho por nada”, pois o alívio de sabermos o Jorge são e salvo derivou em gargalhadas que ecoaram na Praça durante uns bons minutos, para espanto dos transeuntes apressados.

Por fim, o Hernâni declarou solenemente que, para se compensar de tanta frustração, só mesmo jantando um bife no Café Arcada, mal passado, afogado num bem temperado molho (daqueles que deixam valentes nódoas na gravata) e uma garrafa de tinto! Mas o Jorge, vegetariano convicto há cinquenta anos, não foi na conversa. E lá regressámos a casa com uma única certeza: dali a duas semanas estaríamos de volta, nem que chovessem canivetes! É que, com tanta peripécia, este livro já parecia um daqueles objectos preciosos, saídos de um filme do Indiana Jones: tínhamos que o alcançar a todo o custo!

domingo, 6 de dezembro de 2009

In the mood for tears

Estive a ver o filme de Wong Kar-Wai, Amor à flor da pele (In the mood for love, 2000). Nele se conta, com uma delicadeza tocante, a história de um amor proibido, sufocado, inexorável e perturbador como o são todas as coisas inevitáveis, mas que não podem florescer livremente.

Segundo uma tradição chinesa que remonta a tempos muito antigos, quando alguém tinha um segredo que não queria revelar, subia uma montanha para, lá em cima, procurar uma árvore onde escavava um pequeno buraco. Sussurrava então o seu segredo dentro do orifício e depois selava-o com lama, garantindo deste modo que ninguém o viria a descobrir.

O protagonista do filme cumpre a tradição, mas deposita o seu segredo num pilar do grande templo de Angkor, como se assim pudesse salvaguardá-lo para todo o sempre e, ao mesmo tempo, como se fizesse uma prece. Muitos anos depois volta ao local e encontra o pequeno buraco já vazio, como um símbolo da vida desperdiçada e do amor há muito perdido. O próprio templo, embora grandioso, está em ruínas. Em silêncio, relembra como o passado é algo que pode (re)ver mas não (re)tocar, como tudo em seu redor é indistinto e desfocado, como se visse a realidade através de um vidro embaciado. Depois  tapa novamente o oríficio, afastando-se em seguida sob o olhar silencioso de um monge que o observa desde início.



Só se pode chorar depois de ver este maravilhoso filme. Foi o que fiz.