quarta-feira, 31 de março de 2010

Intermusicalidades...

... de uma "certa frase batida":, como a de ser  "hoje o primeiro dia do resto da nossa vida", nas palavras e na música de Sérgio Godinho:

"E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vaza
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida"



com eco nas palavras e na voz de Etienne Daho:

"Rester debout mais à quel prix
Sacrifier son instinct et ses envies
Les plus confidentielles
Mais tout peut changer aujourd'hui
Et le premier jour
du reste de ta vie
C'est providentiel "



e em todos os dias iguais que passam uns a seguir aos outros, e são o resto da minha vida.

Há mais vida para lá do (des)acordo ortográfico

Nem de propósito, um colega enviou-me ontem por mail um registo de algumas expressões do português falado em Moçambique: é uma língua "em construção" e em plena apropriação pelos seus falantes. Exactamente como diz Mia Couto na crónica "Perguntas à Língua Portuguesa". Estamos perante uma língua viva, à margem de qualquer (des)acordo ortográfico. E ainda bem. Apresento o exemplo de Moçambique porque foi o único a que tive acesso (e veio mesmo a calhar, diga-se a verdade), mas tenho a certeza de que o mesmo se está a passar nos outros países de expressão portuguesa.

"São 6 da manhã. Moçambicano não dorme, ferra. O despertador toca. Ele não se levanta cedo, madruga. E não vai tomar duche, vai duchar. E não se arranja, grifa-se bem. Depois não toma pequeno-almoço, mata-bicha. E não bebe café solúvel e pão com doce, toma café batido e bread com jam. Não sai de casa para ir trabalhar, vai no serviço. E quando chega ao local de trabalho não pede desculpa por se ter atrasado, diz sorry lá, que tive problema de transporte! E não trabalha até ao meio dia, djoba até àquela hora das 12. E aí não pede ementa, pede menu. E não come, tacha. Não come batata frita, come chips. Não come salsichas, come vorse. Não come costeleta, come t-bone. E não bebe uma laurentina preta, toma uma escura. E não fala com o amigo sobre a namorada, bate papo “brada, minha dama”. E não gosta muito, grama maningue. E na saída do restaurante não vê as mulheres que passam, aprecia as damas. E não seduz, paquera. E não faz convite, pede contacto. E não a segue, vai à sua trás. E não encontra um conhecido mais velho, apanha um jon cota.

Na rua não compra cajú, compra castanha. E não tira fotografias, fota.
No escritório, a empregada não despeja o lixo, no ofice trabalhadora vai deitar. E não traz o jornal, leva. E não põe insecticida, baygona. E não tem reuniões, tem meetingsno computador ele não escreve, taipa. E depois não faz impressão, printa. E não trabalha as fotografias em Photoshop, fotoshopa. E para fazer um intervalo não vê o patrão, tcheka o bosse. E não sai para dar uma volta, dá um djiko. E não escreve sms para a amiga colorida, manda mensagem para a pita. E não mente dizendo que está ocupado, mafia que tá bizi. Moçambicano não trai, cornea. Não caminha, estila. Não se faz de difícil, jinga. Não acaba uma tarefa, ultima. E no fim do trabalho não vai, baza. E com os amigos não tem negócios, tem bizne com bro. E ao fim do dia não vai ao ginásio, djima. E não tem bicicleta, tem bikla. E não está musculoso, big. E não faz saudação batendo na mão do amigo, deketa. E não gosta de aproveitar a vida, enjoy a laifa

E não vai buscar a namorada que está num cabeleireiro distante, a arranjar as unhas e a fazer tranças no cabelo, vai apanhar a dama que faz unha e entrança láaaaaaa no salão. E não bebe um refrigerante, tomam refresco. E a namorada não usa mini-saia e saltos altos e anda descapotável, põe sainha e uns saltos e tá descartável. E não lhe diz que é bonita, diz “tens boas”. Não vê televisão nas horas livres, fica assistir..."

O português de Moçambique é assim uma mistura maningue nice de estrangeirismos, sobretudo ingleses, mas também de neologismos vários formados a partir do próprio português misturado com as línguas locais. Mia Couto tem, pois, abundante e deliciosa matéria para os seus escritos, está bem de ver!.

terça-feira, 30 de março de 2010

Interpoetalidades...

... entre o verde-poema do mexicano Octávio Paz (1914-1998) e o do angolano Arlindo Barbeitos (1940)...
... e o "Verde que te quero verde" do espanhol Federico Garcia Lorca (1898-1936)...

Uma linguagem universal também é uma música assim

As "Värttinä" são um trio que, desde 1983, canta músicas de inspiração tradicional do seu país, a Finlândia.  As palavras são incompreensíveis (para mim, claro!)  mas não é por isso que a sua música se torna menos bela. Aqui "a capella":

segunda-feira, 29 de março de 2010

Voltando ao (des)acordo ortográfico

Em Novembro de 2009, o embaixador do Brasil na CPLP (com sede em Lisboa), Lauro Moreira, entrevistado sobre este assunto polémico explicava e defendia assim a posição do Brasil:
P – São vários países envolvidos...

LM – O essencial para mim no acordo é o facto de ele ter acabado com uma anomalia que durava há quase um século. Ou seja, a terceira língua mais falada do Ocidente ter duas vertentes ortográficas, ambas oficiais e excludentes, com importantes implicações quer nos organismos internacionais quer no dia a dia. Uma criança, por exemplo, vem do Brasil para aqui com 10 anos de idade, já alfabetizada e, de repente, escreve óptimo sem o p, batista sem o p, tecto sem t, tacto sem c, e vai ser reprovada. E o mesmo com uma criança que vai para o Brasil e faz o contrário.

P – A unificação ortográfica impor-se-á com o tempo...

LM – A verdade é que a língua é uma só. É a nossa língua. É natural que tenha nuances fonéticas que variam segundo as regiões. Em África não se fala como em Portugal ou no Brasil. Está no meio do caminho. Isso é muito interessante. O africano já articula mais as vogais, mas ainda está mais ligado a Portugal. E há as variantes lexicais. Palavras que são usadas com sentidos diferentes em Portugal e no Brasil, ou só em Angola e Moçambique. São palavras oriundas das línguas locais e que já integram o léxico português. Quando digo no Rio de Janeiro “eu vou tomar o bonde para Santa Teresa”, em Lisboa digo “vou apanhar o eléctrico para o Chiado”, e em Maputo digo “vou apanhar o machimbombo para ir à praia”... isto só enriquece a língua. São três palavras para indicar o mesmo objecto. O que empobrece e complica a língua é quando escrevo eléctrico no Rio, sem o c, e em Portugal com o c. Com o c no Brasil é errado, sem o c aqui é errado. É um absurdo completo.”
In Tempo Livre, 23, Nov. 2009)

Deitando agora mais uma acha na fogueira, e pegando directamente no argumento invocado pelo Embaixador, podemos sempre comparar com o caso da língua mais falada e escrita do mundo: o inglês. As diferenças ortográficas e vocabulares entre o inglês falado e escrito na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América são evidentes e nunca me pareceu que, por isso, fossem “excludentes”, como aponta o ilustre entrevistado. Bem pelo contrário: a maioria das publicações contempla até as duas versões da língua em paralelo e nunca ouvi ninguém opinar que isso era “absurdo”. Se todos são unânimes ao afirmar que a natureza primeira das línguas vivas é a sua diversidade, e se todos concordam ainda que isso é um factor de enriquecimento e uma garantia da sua sobrevivência, então não se percebe muito bem por que motivos se têm agora que unificar em alguns aspectos e manter a diversidade noutros, nem que vantagens imediatas daí advêm para os seus falantes.

Neste sentido a perspectiva defendida por Mia Couto parece-me bem mais interessante e, sobretudo, mais respeitadora da nossa “língua-pátria”:

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.”

Certo é que, enquanto a Língua for a “asa” que permite o “voo” dos pensamentos, das emoções e das vivências dos seus falantes, enquanto a Língua servir para nela colocarmos as “dimensões da Vida”, mesmo aquelas que não conhecemos nem sabemos muito bem como expressar, mas que conseguimos sentir e apreender naquilo que outros escrevem ou dizem, ela – a Língua - terá mais força que todos os (des)acordos ortográficos com que a queiram espartilhar.

"Brincriações" e provocriações

O chamado (des)acordo ortográfico anda por aí a despertar paixões, umas mais assolapadas que outras. Há os que nem querem ouvir falar, quanto mais escrever e há os fervorosos defensores que não falam, mas já escrevem “abrasileirado” para demonstrarem o quanto são práfrentex (pelo menos da ‘boca pr’a fora’) e porque, erradamente, pensam que vamos passar a escrever "brasileiro".

Nada como (re)ler uma das mais conhecidas crónicas do escritor moçambicano Mia Couto - “Perguntas à Língua Portuguesa” - para perceber o que é falar, escrever e, sobretudo, respeitar a língua portuguesa no espaço imenso de diversidade que é a lusofonia. É de gente assim que essa mesma lusofonia é feita: gente à margem de qualquer acordo político-gráfico, gente melhor e bem acima de qualquer (des)acordo ortográfico. E, para o futuro da lusofonia, ainda bem que assim é.

“Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

• Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo? 
• No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
• A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
• O mato desconhecido é que é o anonimato?
• O pequeno viaduto é um abreviaduto?
• Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
• Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
• Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
• Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
• O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
• Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
• Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
• Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
• Mulher desdentada pode usar fio dental?
• A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
• As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
• Um tufão pequeno: um tufinho?
• O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
• Em águas doces alguém se pode salpicar?
• Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
• Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
• Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
• Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.”

E agora as “Brincriações” e provocriações à língua portuguesa... e a Mia Couto também...
Egoísta que ama a sua língua será um linguísta?
Escritor que inventa palavras será um palavrentor?
As palavras que se arremessam aos outros como pedras serão palavragulhos?
As palavras que nos acariciam os ouvidos serão palavronetes?
A pessoa incómoda será a que está dentro da cómoda?
Autor: pessoa que se escreve a si próprio?
Senil é o seno que perdeu o rumo?
Escritor que brinca com as palavras será um ludoscritor?

domingo, 28 de março de 2010

As palavras são bolhas

As palavras são bolhas redondas forradas por dentro a espelho. Nelas andamos sempre à roda enquanto o espelho nos vai devolvendo as várias dimensões da nossa própria imagem: umas vezes conforme, outras desconforme, por vezes disforme, ou mesmo uniforme, uma ou outra vez irreconhecível. Os espelhos que, afinal, são palavras, nunca enganam e não se deixam ludibriar facilmente. De frente para a superfície espelhada andamos sempre em círculos e sempre à procura da brecha aberta pela força centrípeta que nos conduza um dia ao centro da bolha, a esse lugar secreto que nem os espelhos, nem as palavras alcançam.
Aí, no centro da bolha, estaremos dentro de nós e estaremos a salvo: dos espelhos, das palavras e do resto.
Aí, nós é que seremos o espelho das palavras e elas serão em tudo iguais ao que somos e ao que pensamos. Iguais a nós.

sábado, 27 de março de 2010

Permanência dos mitos em viagem para dois

Na Inglaterra de finais do séc. XIX os pintores pré-rafaelitas desafiaram as convenções e formalismos da tradição académica de influência clássica, que então marcavam tanto a arte como a literatura. Essa verdadeira irmandade era constituída por nomes como John Everett Millais, William Holman Hunt, Walter Deverell, Edward Burne-Jones, William Morris e Dante Gabriel Rossetti, entre outros. Por mais estranho que isso nos possa parecer hoje, todos tinham em comum uma mulher: a musa, pintora e poeta Elizabeth Siddal.

Dotada de uma beleza muito própria e senhora de uma cabeleira ruiva e indomável, Lizzie Siddal despertou paixões e ódios ao longo da sua vida. Era uma mulher enigmática, que fascinava e, ao mesmo tempo, assustava os homens: “O erotismo que emanava dela não era um erotismo directo, não era a carne que falava. Era de tal modo embrulhado em mito, o do cabelo vermelho, e inspirado pela distância, tão grande, que os homens, para entenderem, para continuarem a viver no mesmo meio, se consolavam em afirmar o oposto: que era frígida, que não era tão bela quanto isso, que era muito magra, antipática, mal-educada. É a reacção masculina a um feminino que é misterioso, e que tem uma coisa irritante para os homens: ela não quer saber deles. (...) Lizzie é completamente indiferente ao que pensem, ao que sintam os homens. Só lhe interessava a arte, o envolvimento poético e mítico daquela relação, e o Gabriel Rossetti.”.

Numa sociedade ferozmente classista, a antiga empregada de chapelaria, pobre e, ainda por cima, orgulhosa, era vista por muitos com desconfiança e desprezo. A única esperança de redenção social para mulheres assim estava, à época, na instituição do casamento e na domesticação social que, forçosamente, se lhe seguia. Ora Lizzie e Gabriel “quebram as convenções, vivem juntos um amor não legitimado aos olhos da sociedade.”. A tornar tudo ainda mais difícil estava a doença de que sofria e que nunca foi bem explicada: tuberculose ou neurastenia e “mal de vivre” finissecular, somatizados e agravados pelo láudano que tomava com frequência? Nunca se saberá ao certo.

O que se sabe é que Siddal “Nasceu no sítio errado, e provavelmente nunca teria encontrado um sítio certo para nascer”, por isso viveu duplamente dilacerada pela mesquinhez de uma sociedade incapaz de a aceitar ou compreender e pela própria relação amorosa com Rossetti, “Porque é uma relação que não tem a ver com o tempo, não tem a ver com a convenção, que não tem a ver com os outros, e que tem um tal peso de destino que provoca depois em Gabriel a vontade (...) de ser um homem livre daquela sombra que não o abandona”. No fundo, “O corpo dela deteriorava-se na lânguida neurastenia do século XIX usando a doença como arma de sedução, enquanto Rossetti enlouquecia lentamente.”
"Beata Beatrix", Dante Gabriel Rossetti, 1872

Dante Gabriel Rossetti escreveu também poemas num caderno que foi enterrado nos cabelos ruivos da sua musa quando esta morreu, em 1862. Mais tarde arrependeu-se e ordenou a Charles Howell – que era descendente de portugueses – que abrisse a sepultura para o resgatar. Mas dele restava apenas uma folha, actualmente na British Library, guardada numa sala reservada e a que só se tem acesso com permissão escrita do British Council (ver aqui). O mesmo acontece com as cartas que ambos trocaram. O soneto resgatado à sepultura de Siddal em 1869, mas escrito em 1848, intitula-se "Another Love":

Of her I thought who now is gone so far:
And, the thought passing over, to fall thence
Was like a fall from spirit into sense
Or from the heaven of heavens to sun and star.
None other than Love's self ordained the bar
'Twixt her and me; so that if, going hence,
I met her, it could only seem a dense
Film of the brain,—just nought, as phantoms are.
Now when I passed your threshold and came in,
And glanced where you were sitting, & did see
Your tresses in these braids and your hands thus,—
I knew that other figure, grieved and thin,
That seemed there, yea that was there, could not be,
Though like God's wrath it stood dividing us.

Inúmeras biografias de Elizabeth Siddal foram escritas ao longo do tempo: umas focam mais a sua relação amorosa com Gabriel Rossetti, “diferente de todos os cânones que possam aplicar-se”, pois “Os comportamentos dos dois são ininteligíveis, enigmáticos, fazem quase desesperar. Não aceitam nenhum contexto.”. Outras focam mais “o papel daquela mulher que foi a grande modelo do tempo”, “disputada e pintada por muitos, rejeitada por outros.”. Não há contradição entre elas, pois Siddal “fornece material para todas as interpretações. E, no entanto, mantém-se sempre enigmática.”.

Logo que a conheceu, John Everett Millais ficou fascinado pela sua beleza e decidiu pintá-la num cenário de narcisos. Ainda “Não sabia que estava a vê-la morta.” Millais pintou “Ofélia” em 1851-52. Nele está retratado o túmulo de água da personagem suicida do “Hamlet” de Shakespeare. Como diz Jaime Rocha, é “um quadro necrofilo: há aqui uma anunciação, uma beleza. Tem uma luz de vida, tudo isto é vida e morte ao mesmo tempo.”.

"Ofélia", John Everett Millais,1851-52


(É neste passo que as pessoas “sensíveis” começam a ficar horrorizadas. Que mórbida! E que eu contraponho que, muitas delas, contudo, têm as paredes lá de casa decoradas com naturezas-mortas, feitas com cadáveres de animais diversos, especialmente caça, e muito prezadas pela tal corrente académica da arte ocidental, contra a qual os pré-rafaelitas tanto se rebelaram. Enfim, sensibilidades...)
Certo é que a imagem de “Ofélia”, assim como a da própria mulher que lhe serviu de modelo, se tornaram verdadeiros ícones culturais e artísticos, cuja ressonância se faz sentir ainda hoje. Apenas dois exemplos:
1. O videoclip da canção “Where the wilde roses grow”,de Nick Cave em parceria com Kylie Minogue, retomou nos anos 90 a iconografia necrofila de “Ofélia” em tom doce (voz) e amargo (letra):


2. Também o filme “A amante do tenente francês” retratou, nos anos 80, a hipócrita e puritana sociedade inglesa de finais do século XIX e a violenta repressão de todas as manifestações sensuais explícitas por parte das mulheres, que eram ainda violentamente ostracizadas quando transgrediam as regras estabelecidas. A profusa e rebelde cabeleira ruiva da personagem principal, representada por Meryl Streep, surge como um eco da de Lizzie Siddal:


Foi nos anos 70, quando ainda frequentava o liceu e nele recebia a canónica formação de matriz românico-francesa (como era norma na época), que Hélia Correia descobriu a imagem de “Ofélia” pintada por Millais. Enviou de imediato a imagem a Jaime Rocha, que então vivia em França. O fascínio levou-a, primeiro, à obra que esteve na origem do quadro: “Hamlet” de Shakespeare. Depois, fora de qualquer constrangimento académico, partiu à descoberta da cultura anglófila de finais do século XIX. Um dia, por acaso, leu uma biografia do pintor Dante Gabriel Rossetti e descobriu a sua extaordinária história de amor com a musa de Millais: “Ofélia” tinha agora um nome e uma biografia a descobrir. Também o poeta Jaime Rocha, companheiro de Hélia Correia, caiu sob o feitiço do enigma Siddal. Juntos, partilharam este “núcleo mitológico” e uma comum “volúpia de procurar os sítios”, assim fazendo companhia um ao outro, nas viagens a Inglaterra e no aprofundar dos conhecimentos: Jaime Rocha sobre Dante Gabriel Rossetti e os pintores pré-rafaelitas; Hélia Correia sobre tudo o que, sem intermediação dos biógrafos (cartas, diários, documentos) lhe permitia entrar na vida, no espírito e no coração de Elisabeth Siddal.

Em 2005, quando se sentia já como “o gato da casa”, como a “criatura que esteve dentro, enquanto todos os outros estavam fora, decidiu que podia, e devia, escrever um livro sobre Lizzie Siddal. Intitula-se “Adoecer” e não é uma biografia. Hélia Correia descreve-o antes como “um romance sobre uma pessoa e não sobre uma personagem”. È uma obra escrita em total liberdade “porque nunca faço ideia do que vou escrever. Vou por ali fora e é para onde a escrita quer ir que vai. (…). Nunca tenho projecto de escrita. Nunca sei o que vou escrever. Parto da primeira frase e depois vou atrás. Não comando nada”. Basta pensar um pouco na complexidade das personagens convocadas (Lizzie e Rossetti) para imaginarmos que, talvez, até nem houvesse outro caminho: “Aqui, as minhas pessoas estão completamente abafadas e presas no seu tempo e na sua história e não sairão daí para mais lugar nenhum da minha obra.”.

Ao longo dos dez anos que demorou este labor minucioso, de verdadeiro amor e paixão, também Jaime Rocha decidiu escrever. Procurou, através da poesia, reconstruir Elizabeth Siddal para a vida. “Como se tivesse dado existência a este quadro [Ofélia]. Ora está viva, ora está morta, nunca me consigo desligar da imagem inicial.”. Publicou primeiro “Os que vão morrer”: nele, os mitos medievais, da cultura grega, “todo um ambiente de crueldade, de violência, que tem a ver com a Idade Média” estão presentes. Depois publicou “Zona de Caça”: a poesia da “perseguição do cavaleiro à mulher”, inspirada nas suas viagens a Inglaterra. A seguir, “Lacrimatória”, sobre a “perda e o luto”. Lançou agora “Necrophilia”, o livro “da culpa e do lamento”, “do sentimento de culpa de Rossetti pela morte de Elizabeth Siddal. Termino com a figura dela, é um eterno retorno.”. Em conjunto, constituem a tetralogia da “Assombração”, “a tentativa de lhe construir uma vida poética, depois da culpa dele”.

Hélia Correia diz ainda que, em “Adoecer”, quis dar a Lizzie a voz que a ela, e às mulheres da sua época, foi negada. Quis, sobretudo, “dar-lhe aquela compreensão íntima que não encontrou na altura.”

“Adoecer” é o livro que vou ler a seguir. Por todas as razões acima indicadas e mais uma: compreendo e conheço muito bem a força poderosa destes ímpetos (ir)racionais de paixão (imagens, música, filmes, livros) que nos assaltam de repente a alma e o coração e invejo quem se deixa guiar por eles e parte assim à descoberta dos outros, do mundo e de si próprio.

Nota: as citações utilizadas são de uma entrevista dada por Hélia Correia e Jaime Rocha à jornalista Raquel Ribeiro e publicada no Suplemento “Ípsilon”, do Público de dia 26/3/2010.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Subscrevo


Tal afirmação só parecerá absurda a quem não conhecer, ou não gostar (o que, na prática, é quase a mesma coisa) nem dos gregos, nem dos gatos.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Da escrita e dos seus equívocos

Já aqui o tinha escrito e  cada vez mais penso que é assim: a palavra escrita também é terapêutica e catártica, na mesma medida em que é possível fazer terapia e catarse através da palavra dita. Talvez a escrita seja até mais poderosa, porque fica registada e, os textos produzidos podem ter impacto – positivo ou negativo - sobre os outros ao longo do tempo. Acerca disto reflectia, em 1938, Branquinho da Fonseca, num livro de contos intitulado Caminhos Magnéticos, e tinha toda a razão no que dizia:

"Primeiro quero dizer que vou escrever pela mesma razão por que algumas pessoas choram e porque a dor, por vezes, parece que fica mais pequena depois de se contar. Quando se põe em palavras parece que fica mais definida e este vago que me toma é o que custa mais. Em certos casos basta falar, contar a outra pessoa, mas escrevendo as palavras é melhor; põe-se mais fora de nós. Eu não sei explicar isto, mas é um fenómeno curioso e que pode ser talvez ou porque as palavras conforme vão tentando exprimir um sentimento o vão diminuindo para ele caber dentro delas, ou porque na verdade conseguem exteriorizar parte dos nossos sentimentos. (Exteriorizar: passar para o exterior). Ou ainda pode ser por exprimirem tão pouco. Depois olhamos as palavras com que dissemos essa dor e vemo-la só do tamanho delas. Ou não sei porque será, mas que é certo não tenho dúvida, pois experimentei várias vezes e tenho sentido sempre assim."

A blogosfera é hoje um excelente exemplo disto mesmo. Estão online milhares e milhares de páginas nas quais, das formas mais diversas, se faz a catarse da solidão, da amargura, da dor em vários estádios, das frustrações que nos assolam os dias e as noites, da dor de corno ou de cotovelo, da desmesura das vaidades ou dos dos egos mais ou menos acalentados pelos putativos leitores, ...

Sob a máscara da prosa ou da poesia, os blogues são sobretudo espaços de afirmação e de expressão pessoais. Contudo, o seu crescimento exponencial em quantidade e até, nalguns casos, em qualidade, tem provocado um efeito curioso, muito semelhante ao que Julien Gracq descreve para a literatura em suporte papel: o público que frequenta estes espaços virtuais “colocado diante duma grande variedade de escritores e de obras [leia-se, bloggers e blogues], reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião. Instalado diante dum texto [leia-se diante do monitor], vai produzir-se nele o mesmo clic interior que sentimos, sem regras e sem razão, quando encontramos alguém: «ama» ou «não ama», sente ou não sente, à medida que vai virando as páginas” (In A literatura no estômago) e lendo as postagens. Alguns bloggers e respectivos blogues, pelas suas características peculiares e/ou pelas temáticas que abordam também possuem cada vez mais uma “audiência”, que lhes manifesta fervor e fidelidade sob a forma de visitas e comentários elogiosos. Alguns são autênticos clubes de fãs centrados em bloggers-vedetas, cuja existência carismática parece ser a resposta aos anseios, desejos e fantasias secretas de muitos dos seus seguidores. 

A tal ponto que a verdadeira literatura, no seu sentido canónico, publicada em papel,  já se sente ameaçada – e com razão - por esta nova realidade que provoca a debandada dos leitores para outras paragens, tal como já tinha sido, e continua a ser posta em causa, pela chamada literatura light, massificada, feita de best-sellers. Aquilo que Ernesto Sampaio, na introdução ao panfleto de Gracq, descreve como sendo uma ala da literatura “formada por obras sem defeitos, mas tão simplórias que parecem infantis (são as mais consumidas e premiadas).”. Tal como acontece no mundo da “literatura de papel”, também na net tudo assenta muito (salvo muito poucas e honrosas excepções) num grande equívoco, naquilo que Gracq designa mesmo como “formidável manobra de intimidação” (idem): “o assalto do não-literário mais agressivo”. E explica: "“O que glorifica hoje uma obra literária é sobretudo uma certa grosseria epidérmica cujo contacto arrepia, é uma garantia de origem como a poeira sobre as garrafas velhas.” (idem). É pois nestas águas turvas e equívocas que navega uma boa parte da escrita na blogosfera: confunde-se a si própria com literatura, por vezes até com a chamada “grande literatura”, assim confundindo igualmente os seus leitores e seguidores.

E é aqui que tudo volta ao princípio ou, se preferirmos, que a pescadinha mete o rabo na boca: o que está escrito no mundo virtual da blogosfera, ainda que formalmente perfeito, em prosa ou em verso, ainda que de uma engenhosidade admirável e de uma brilhante imaginação é, para o melhor e para o melhor, sobretudo expressão e afirmação pessoais. Por maior que seja a sua audiência, pertence, essencialmente, ao domínio do não-literário, da catarse, da terapia ou da (auto)adulação mais ou menos assumida, mais ou menos camuflada. Confundir muito do que aqui se escreve com literatura é cair num erro de julgamento com consequências negativas. Quando tal acontece, a verdadeira “literatura mingua de força e poderes, e do mesmo passo é a medida do homem que se reduz.” (idem).

É que a literatura, a verdadeira, exige que “o encontro do leitor com o escritor através da obra” produza “uma certa ressonância, «como se dois fios electrificados se tocassem». (idem). Do mesmo modo que “a única lei do escritor, para além de desenvolver ao máximo as suas possibilidades criadoras, consiste em devolver à comunidade cultural a que pertence um idioma diferente do que dela recebeu. Se não acrescentou nada, se a língua que existe agora é exactamente a mesma que existia quando começou a escrever, o seu nome pode desaparecer: a literatura em nada ficará afectada.” (idem).

É justamente o que aconteceria com muitos blogues se desaparecessem do espaço virtual: tudo ficaria e seria exactamente como antes. Ninguém daria por nada, porque não existem para a literatura, nem sequer são literatura, mesmo que alguns tenham essa presunção ou até essa reputação.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Tempo de embarcar

E apetece mesmo vogar pela planície verde a perder de vista, seguir sem rumo e sem tempo nesta The Ship Song:

Tempo de regresso

Depois das chuvas há agora um verde profundo e extraordinário que cobre os campos e entra pelos olhos e pela alma dentro. É um verde nascido da plenitude e da abundância de água, um verde como há muito não se via no Alentejo.
Antes ainda de as flores silvestres usarem as pétalas coloridas para compor as tapeçarias impressionistas e impressionantes que revestirão a planície quando o brilho do sol for mais franco, começam já a chegar as aves que passaram o inverno noutras paragens mais soalheiras. Vêm para cumprir os rituais de perpetuação da sua espécie. Vêm de muito longe, mas conhecem o seu rumo e sabem bem como (re)encontrar-se, sempre.
É tempo de regresso... como canta Nick Cave:

Across the endless wilderness where all the beasts bow down their heads.
Darling I will never rest till I am by your side.
Every mile and every year, Time and Distance disappear I cannot explain this.
Dear No, I will not even try.

For I know one thing, Love comes on a wing and tonight I will be by your side.
But tomorrow I will fly away, Love rises with the day and tonight I may be by your side.
But tomorrow I will fly, Tomorrow I will fly, Tomorrow I will fly.

terça-feira, 23 de março de 2010

Pescar poemas

José Carlos Vasconcelos escreveu em Pescador de palavras que:

Pescador de palavras,
pesco a pedra e o pássaro;
pescador de palavras
pesco o pássaro e o pífaro;
pescador de palavras
pesco o pífaro e o peixe.

E com palavras parto,
com palavras fico.
Com palavras peco.
Com palavras peço.
Com palavras grito
Com palavras acabo
e recomeço.

e adormeço... (acrescento eu)
 
(Words, Ilustração de David Colton, 1985)

Proverbiais e aforísticas

Diz o poeta Manuel Rusga, de Grândola, e com toda a razão, que “O fraco não é forte”. Contudo, quando afirma que “homem não é mulher”, já ficamos com algumas dúvidas. É que nos dias que vivemos, as coisas já não são bem assim: tão a preto e branco. Pelo menos nos meios urbanos. Entre hetero, homo e metro, há cada vez mais zonas cinzentas na definição de género. Talvez nos meios rurais, por norma mais conservadores, ainda seja mais fácil fazer este tipo de distinção.
Mas, no fundo, é como diz o povo, "novos tempos, novos costumes", a mesma ladaínha (acrescento eu).

segunda-feira, 22 de março de 2010

A história faz-se sobretudo com papéis

José Mattoso é um dos mais importantes medievalistas portugueses. Tem 77 anos de uma vida preenchida pela docência (professor catedrático jubilado da Universidade Nova de Lisboa) e pelos múltiplos projectos em que foi participando: fundou e dirigiu o Instituto Português de Arquivos (1988), foi director da da Torre do Tombo (a partir de 1996), esteve cinco anos em Timor-Leste a (2001-06) a estudar, a organizar e a disponibilizar para consulta o Arquivo da Resistência. Nestes últimos quatro anos foi o coordenador científico de uma equipa de quinze pessoas que estudou, inventariou e registou o arquivo do antigo Ministério do Ultramar. O inventário da documentação já tratada está disponível online, desde o passado mês de Fevereiro, no portal  http://arquivos.ministerioultramar.holos.pt/. No entanto, o trabalho ainda não está concuído. Entre o espólio que falta ainda tratar encontra-se o Arquivo Histórico-Ultramarino onde está incluída toda a documentação do gabinete do ministro do Ultramar, que se "antevê sumarenta", como afirma o historiador. Mas esse é um projecto que ainda aguarda financiamento por parte da Fundação Gulbenkian, a qual já financiou também esta primeira parte do projecto.

A pretexto de tudo isto, Mattoso foi entrevistado esta semana pelo Expresso (in Actual, #1951, 20/3/10), mas não só. Nela começa por considerar que "um bom indicador do desenvolvimento de um país é a forma como trata os seus arquivos" e critica a mentalidade nacional que encara os arquivos como "arrecadações de papéis velhos, profundamente desprezados". Ácrescenta ainda que arquivar não é seleccionar: "Seleccionar porquê? Com que critérios? A selecção acaba sempre por ser ideológica. Ora, na história temos de utilizar todos os documentos e não só alguns. Papéis são papéis: não há bons nem maus."

Sobre as investigações históricas que realizou ao longo da vida considera que "Se voltasse a escrever sobre os mesmos assuntos desenvolveria nesta ou naquela direcção. Muito do que escrevi precisaria de ser corrigido. A história é sempre inacabada! Tudo quanto se escreve corresponde a um estádio da investigação". Conclui depois com uma síntese sobre a interligação entre o trabalho do arquivista e o do historiador: "a história é uma ciência viva, que se faz e refaz. Há sempre equívocos e novas interpretações. É preciso que haja material e talento para a actualizar."

De momento não está envolvido em nenhum projecto profissional, deixou de investigar (ofereceu a maior parte da sua bilbioteca pessoal ao Campo Arqueológico de Mértola)  e vive uma espécie de "aurea mediocritas", tal como a preconizava Horácio: descansa e lê tranquilamente os clássicos que nunca teve tempo de ler, como é o caso do historiador grego Tucídides. Descanso bem merecido (digo eu!).

domingo, 21 de março de 2010

A Poesia é...

"Letters to Europe"; Serigrafia de Rafal Olbinski, 1995

No dia em que se celebra a poesia, as palavras de Octávio Paz para uma das melhores (in)definições que conheço sobre o tema:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a actividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola, une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Pregação no deserto, diálogo com a ausência: sustentam-na o tédio, a angústia e o desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história; resolvem-se no seu seio todos os conflitos objectivos e o homem adquire, por fim, a consciência de ser algo mais que trânsito. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar numa forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia de uma cópia da Ideia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, actividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. (...) Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitério. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, colectiva e pessoal, desnuda e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todos os rostos, mas há quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma simples máscara que oculta o vazio, formosa prova da supérflua grandeza de toda a obra humana.

Juntar música e poesia também é um trabalho assim

Adriano Correia de Oliveira na voz e na música de Celina da Piedade
 

A dignidade das árvores

Árvore esculpida: trabalho de arte religiosa bantu que simboliza os espíritos das florestas, das árvores e da própria natureza; Limpopo, Moçambique.
Imagem do blogue entreasbrumasdamemoria.blogspot.com

As árvores são seres extraordinários: nascem, vivem e morrem de pé. Contudo, muitas há que tombam apunhaladas à traição pela moto-serra, derrubadas pela fúria das intempéries, ou simplesmente mutiladas e sacrificadas em nome dos mais extravagantes caprichos humanos. Mas as que conseguem sobreviver a todas estas adversidades, mesmo quando já estão doentes ou fragilizadas pelo tempo, permanecem de pé até ao derradeiro instante do seu ciclo de vida. Mesmo depois de já terem perdido há muito tempo toda a força vital, já com os ramos secos e nus, mantêm intacta a sua ancestral dignidade. E é assim que eu, quando um dia o meu tempo também chegar ao fim, gostava de morrer: de pé, como as árvores.

Que seria de certas cenas sem uma árvore pelo meio?

E se,  de repente, uma árvore se atravessar no seu caminho isso que dizer que é altura de acordar para a realidade, pois sonhar acordado é uma actividade arriscada...

Conclusão lógica

Entre o passado que se conhece ou apenas se adivinha e o futuro que se imagina, o melhor mesmo é viver o presente em cada dia que passa, como nos aconselha desde o séc. I a.C. o sábio Horácio:

Carpe diem

Não procures, Leuconóe, - ímpio será sabê-lo -
que fim a nós os dois os deuses destinaram;
não consultes sequer os números babilónicos:
melhor é aceitar! E venha o que vier!
Quer Júpiter te dê inda muitos invernos,
quer seja o derradeiro este que ora desfaz
nos rochedos hostis ondas do mar Tirreno,
vive com sensatez destilando o teu vinho
e, como a vida é breve, encurta a longa esp'rança.
De inveja o tempo voa enquanto falamos:
trata pois de colher o dia, o dia de hoje,
que nunca o de amanhã merece confiança.
(Trad. de David Mourão-Ferreira)

Ou como ensina o professor aos seus alunos, e a todos os que quiserem aprender:

sábado, 20 de março de 2010

Celebrar o passado no presente também é uma música assim

Uma girls band dos nossos dias que toda e (en)canta música medieval (a maior parte em latim) mais parece uma espécie de antevisão do futuro, mas não é assim. Já existe há alguns anos e chama-se "Mediæval Bæbes":

Antecipar futuros (im)possíveis

Muitos são os que, ao longo dos séculos, têm tentado prever o que o futuro nos reserva. A Biblioteca Nacional de França possui uma colecção de gravuras datadas de 1910 (não consegui descobrir a sua autoria) que retratam como seria a vida no ano 2000. Uma década depois do início do novo milénio não deixa de ser bem curioso o confronto com as antecipações de há um século.

1) Um dos aspectos mais relevantes destas antevisões prende-se com a substituição em muitas tarefas dos homens por máquinas ou robôs. De facto, é hoje cada vez maior a robotização do trabalho, embora não forçosamente nas áreas aaqui apresentadas:

2) Uma outra característica importante é a “velocidade”, o andar mais depressa. São curiosos os patins (embora talvez um pouco perigosos) e os carros voadores tão frequentes na ficção científica, mas que ainda terão que esperar por tecnologia mais avançada.

3) Também a educação apresenta uma particularidade interessante: as aulas leccionadas com recurso a tecnologia. Tendo em conta que temos aí um certo 'Plano Tecnológico' a “modernizar” as escolas, introduzindo a net em todas as salas bem como quadros interactivos, podemos, sem grande esforço, pensar que esta é uma antevisão em fase de concretização. Agora que é novidade, os alunos andam muito entusiasmados. Quando já for uma coisa habitual e a rotina se instalar talvez venham a ter no rosto uma expressão tão 'contente' como a dos alunos representados na figura.


4) Mas a previsão que, para mim, é mais relevante relaciona-se com a comunicação. Previa-se que tudo passasse muito pela comunicação à distância e, sobretudo, recurso à tecnologia. Aqui, o ilustrador acertou em cheio. Cada vez mais as pessoas falam por intermédio do telemóvel e da net, e muitas preferem mesmo fazê-lo por esta via, por ser claramente mais fácil do que dar a cara perante o outro. Esta nova forma de comunicação tem ainda a vantagem de permitir o uso de verdadeiras máscaras que escondem a realidade: os nicknames e avatares mais não são do que isso mesmo. Neste espaço virtual da comunicação cada um pode ser tudo o que quiser, escapando assim aos limites e às limitações do seu verdadeiro eu. Como quase tudo na vida não é nem melhor, nem pior. Depende do que se fizer com isso.

sexta-feira, 19 de março de 2010

(Re)interpretar o passado a partir do incerto futuro

David Macaulay publicou, em 1979, “Motel of the mysteries”. Livro e respectivo autor não integraram propriamente os escaparates da grande literatura universal, antes pelo contrário. Contudo, a forma irónica e sarcástica como desconstrói e parodia algumas interpretações que os arqueólogos fazem do passado, tornam-no bem interessante. Nem sequer é muito difícil concluir que uma boa parte do pouco que sabemos hoje sobre algumas civilizações desaparecidas não passa, em muitos casos, de pura especulação dos arqueólogos. Mas, com tanta catástrofe natural, com tantas e tão profundas alterações climáticas de consequências já previsíveis (se as coisas não se alterarem rapidamente, o que não me parece provável), quem sabe se um dia, num futuro ainda distante, não seremos vistos assim?...

O narrador começa por relatar que um cataclismo natural, provocado pelo excesso de poluição na atmosfera, dizimou e soterrou quase toda a população mundial no final do século vinte, criando deste modo mais uma “civilização desaparecida”. Em 4022, Howard Carson (piscadela de olho a Howard Carter, que descobriu o túmulo de Tutankhamon em 1922) participa numa prova desportiva – a 116ª Maratona Continental Comemorativa da Catástrofe Norte-Americana -, mas deixa-se ficar para trás. Ao caminhar junto de uma antiga escavação abandonada, sente o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. Mergulha na escuridão e, quando o pó assenta, vê-se diante de uma misteriosa entrada que ostentava ainda o selo sagrado e o número 26 na porta. Acidentalmente Carson tinha feito uma descoberta espantosa: um túmulo dessa civilização há muito perdida e quase desconhecida que tinha florescido em finais do século vinte. Os misteriosos rituais funerários dessa época iam ser finalmente revelados.


De imediato, uma equipa de voluntários deu início às escavações que rapidamente começaram a revelar ao mundo tesouros inacreditáveis. Quando entraram no túmulo '26', todos ficaram extasiados:


Na primeira câmara do túmulo, sobre a Plataforma Cerimonial (nº 4) encontraram um corpo que jazia de frente para o magnífico Altar-Mor (nº 1). Na mão segurava o Comunicador Sagrado (nº 3) e, em volta do pulso, uma faixa de ouro flexível com uma imagem semelhante à do altar superior. Um pouco por toda a câmara funerária encontraram vestígios dos antigos rituais fúnebres, incluindo vestes diversas, a placa peitoral de cerimónia (nº 2) e dois pares de sapatos, um deles muito ornamentado (nº 5). Vários recipientes que, em tempos, tinham contido libações e oferendas estavam sobre a plataforma cerimonial. Uma estatueta da divindade Watt (nº 9), que simbolizava o companheirismo e a clarividência, encontrava-se ao lado da plataforma. Umas das peças mais importantes era o Gelo (nº 10), cujo recipiente se destinava a preservar para a eternidade os principais órgãos internos do falecido. O tecto (nº 8) estava forrado de intrincados mosaicos coloridos, cada um decorado com perfurações paralelas.

Ciente de que os dois pares de sapatos indiciavam um duplo funeral, a equipa de Carson continuou a trabalhar afincadamente até descobrir a entrada da segunda câmara. O conteúdo desta câmara era ainda mais admirável. Como previsto, um segundo corpo foi encontrado.

Parecia até que tinha sido enterrado com maior cuidado, pois jazia num sarcófago branco muito polido (nº 9), encerrado atrás de uma cortina translúcida muito delicada e laboriosamente suspensa (nº 10). O extraordinário toucado conservou-se bem, constituindo um exemplo ímpar da arte de trabalhar o plasticus flexibilis. O seu padrão complexo ainda hoje desafia os estudiosos. Embora em locais diferentes, as posturas semelhantes dos dois corpos (reclinados) levaram Carson a concluir que a posição funerária era com o queixo apoiado sobre o peito. Uma melodia extraordinária ouvia-se sempre que se carregava a alavanca da caixa de música (nº 6) colocada por cima da Urna Sagrada (nº 2). Os objectos nº 1 e 4 eram utilizados na preparação do corpo para a viagem final e o nº 5 era o Pergaminho Sagrado, cujos pedaços eram periodicamente colocados na Urna Sagrada durante o ritual que antecedia o encerramento final do túmulo. Sobre a Urna Sagrada (nº 2) estavam ainda colocados o Diadema e o colar sagrado que eram usados conforme ilustra uma das assistentes de Carson. Na imagem, a assistente usa ainda os magníficos ornamentos para as orelhas feitos em plasticus petrificus e o maravilhoso cordão prateado com pendente. No diadema estava também inscrito o cântico sagrado, cujas palavras se pronunciavam mais ou menos assim: «Sãn-i-tizädo-pärãs-uap-rõt-e-c-ção»:


Durante um total de sete anos de trabalho, milhares de objectos foram encontrados, enquanto lentamente emergia do solo um enorme complexo mortuário, com dezenas de túmulos numerados, situados lado a lado, ao longo de um extenso corredor central (aquilo a que, hoje, chamamos hotel). Tal achado espantou e maravilhou o mundo de 4022. De entre os muitos objectos encontrados, salienta-se ainda:
O Selo Sagrado feito em plasticus eternicus, era colocado no puxador da grande porta exterior do túmulo pelos sacerdotes da necrópole a seguir ao encerramento do mesmo e destinava-se a proteger o defunto por toda a eternidade.


A Campainha, que era um instrumento de percussão altamente sofisticado que se tocava segurando uma parte em cada mão e batendo-as ritmicamente, o que fazia soar uma pequena campainha.

Todo o espaço agora descoberto será musealizado e aberto ao público. Na loja do museu, os visitantes poderão adquirir algumas cópias dos objectos descobertos no túmulo, como este serviço de café em porcelana, inspirado na urna sagrada.


Nota: desconheço autoria das ilustrações.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Proverbiais e aforísticas

De boas intenções está o inferno cheio. E o calendário também.

Basta consultar uma qualquer agenda para verificar que há dias para quase tudo: o dia da floresta, o dia da poesia, o dia do ambiente, o dia dos direitos humanos, o dia do teatro, o dia da juventude, o dia do trabalhador, o dia da mãe, o dia da Europa... O que não há é dias para todos.

Apenas dois breves exemplos:

Haverá um Dia da Criança para estas e outras crianças que procuram a sua sobrevivência nas lixeiras do mundo?


Haverá um Dia da Mulher para esta e para tantas outras mulheres por esse mundo fora?


Certo é que a hipocrisia dos Homens e do Mundo, essa, é de todos dias.

Apesar de tudo, não é mau que haja dias para lembrar às consciências que muitas coisas, talvez demasiadas, estão ainda por fazer; para recordar ainda que é grande, muito grande mesmo, a  distância que separa as intenções, e as palavras, das acções. 

quarta-feira, 17 de março de 2010

Trazer o passado para o presente também é uma música assim

Proverbiais e aforísticas

Aqui há tempos era costume dizer-se que “andava meio mundo a enganar outro meio”. Para além de ser a óbvia conclusão a retirar dos factos que nos rodeiam, podemos sempre dizer que, pelo menos, as coisas estavam equilibradas, pois os “enganados” sempre tinham 50% de hipóteses de se safar.

(desconheço autoria da imagem)

Contudo, a vertiginosa sucessão de escândalos, compadrios, corrupções, desvios, apropriações, favorecimentos e outros quejandos que têm vindo a lume na comunicação social (e até não é difícil imaginar que apenas chega ao conhecimento público a ponta do icebergue, pois muito mais haverá que não chega nunca a descobrir-se) levaram-me a pensar que este provérbio se assemelha ao copo meio-cheio/vazio: tudo depende do ponto de vista.

Assim, se tivermos em conta que os que enganam são cada vez mais numerosos e dotados da mesma ganância desmedida de sempre, podemos concluir que os enganados não só se tornaram menos numerosos, como, por serem também a parte mais  fraca da conjuntura actual, começam a dar mostras de não “chegar para as encomendas”. Neste caso, diremos que andam três quartos do mundo (pelo menos) a enganar outro quarto e o copo fica meio-vazio. Só que, um destes dias alguém vai ficar zangado porque não estar a embolsar tanto como antes e pode bem ser esse o princípio do fim. 

Mas, por outro lado, se atentarmos nas estatísticas da Forbes sobre o muito restrito e selecto clube dos cada vez mais multimilionários e as associarmos às notícias que nos chegam do mundo para dar conta de que há cada vez mais pobres, até mesmo nos países ditos desenvolvidos, chegaremos a uma conclusão distinta: como os pobres não podem dar mais porque não têm o que dar, de facto, a solução tem passado muito por ‘sugar o sangue’ da chamada classe média ou remediada, a qual está agora praticamente à beira da extinção, sobretudo por falência financeira. E podemos, neste caso,  reescrever o provérbio dizendo que, afinal, anda mas é um quarto do mundo a enganar (e bem) outros três quartos. Fica o copo meio-cheio. Porém, os muito ricos e poderosos já devem estar a pagar a alguém para que tenha boas ideias e descubra uma forma de pôr os pobres a render. Bem nos podemos ir preparando.

Seja qual for a perspectiva de abordagem - copo meio-cheio ou meio-vazio - uma coisa é mais que certa: esta profunda injustiça social gera tensões que, um dia, hão-de dar os seus frutos. Não devem é ser muito saborosos.

Quem sabe disto tudo,sobretudo de pobres, e muito, é o Caco Antibes do "Sai de Baixo!" (que saudades das gargalhadas no final do serão):