terça-feira, 31 de maio de 2011

Que se mudem os seres e não apenas os tempos

Já se sabe que a net funciona como as redes de arrastão: apanha tudo. E um dias destes o acaso trouxe-me esta imagem de um anúncio americano de tabaco do início da década de 70 - "vintage" como agora se diz.

 A ideia central do anúncio - reforçada pelo slogan "Blow in her face and she'll follow you anywhere." (o ponto final faz disto uma frase declarativa, portanto uma certeza) -, é básica, para não dizer primária, literalmente. Baseia-se na ideia de que a sedução não é um acto recíproco e sim uma manifestação da vontade (mais capricho até!) do homem sobre a da mulher. Tal como o domador de feras no circo usa o chicote para mostrar quem manda, aqui o homem usa o fumo do cigarro, atirando-o propositadamente para o rosto dela, para manifestar qual é a sua disposição do momento. E esta, assim o sugere ainda a imagem, será imediatamente satisfeita por uma mulher tornada submissa pelo efeito quase hipnótico desse mesmo fumo.

Destaca-se a atitude do homem que, sem se mexer, se limita a olhar-lhe o rosto com uma expressão quase indiferente e até sobranceira, enquanto nela o movimento do corpo acompanha claramente a direcção do olhar que se eleva para o rosto masculino, como se ela estivesse já a levantar-se e a preparar-se para o seguir, como promete o slogan. Os seus lábios entreabertos não indicam apenas que está a inalar o fumo do cigarro dele, indiciam que vai beijá-lo certamente por não conseguir resistir ao seu poder de atracção... (ou seja, quem fumava Tipalet nem precisava de dar um passo, elas é que se vinham oferecer-se ao fumador para que ele lhes fizesse o enorme favor de as seduzir).

É óbvio que estes corpos estão em rota de colisão e não é difícil imaginar a cena que se seguirá... Aliás, mais directo que isto - e volto aqui ao slogan que serve de ponte visual entre as duas figuras – não deve ser fácil. Imagino que, por causa dele, a campanha publicitária tenha sido um sucesso no seu tempo e que os lucros da tabaqueira americana tenham subido em flecha.

A imagem, contudo, intrigou-me também porque havia nela qualquer coisa de familiar, do tipo «onde é que eu já vi isto?». Só depois me lembrei: havia, na imprensa nacional da mesma época, um anúncio ao tabaco Kart em tudo semelhante a este.

In "Vida Mundial", 7/2/1969
Uma idêntica atitude de "proprietário" que examina de perto a "propriedade" e, no rosto dela, a mesma expressão de mulher encantada e rendida ao poder másculo e sedutor do homem, por via do fumo do tabaco com que ele, propositadamente, lhe cobre o rosto...

Mas há também algumas diferenças óbvias: a começar por uma maior distanciação entre os corpos (repare-se como até os lábios dela estão fechados, embora esboçando um discreto sorriso), que é compensada pelos braços estendidos de ambos. Embora de uma forma mais discreta é claramente ela quem roda o tronco e o rosto na direcção dele, enquanto o olhar se fixa no rosto masculino.

Tudo nesta imagem aponta para um estrato social mais elevado, a contrastar com a informalidade tipo classe média do casal representado no anúncio americano (ao qual se podem associar outras ideias como ‘juventude’, ‘espírito desempoeirado’ e ‘moderno’). Aqui, a forma como ela está penteada e vestida (little black dress), as jóias que ostenta, os breves apontamentos cénicos (o champanhe a refrescar no cooler, o castiçal com a vela acesa, ambos de prata) e ainda o fato dele, o modelo clássico do relógio de pulso, a própria delicadeza do gesto com que toca no rosto feminino, tudo remete para uma classe social que, além de endinheirada, sabe aproveitar bem a vida e, por isso, mais do que frequentar festas, vive em festa. No fundo, promove-se uma certa ideia da ascensão e do sucesso social que a publicidade ao tabaco sempre soube explorar de forma magistral.

Pormenor ainda mais curioso é o facto de o slogan - construído ao estilo de um provérbio popular, com rima e ritmo binário: “O presente inesperado é o mais desejado” - referir um “presente” cujo destinatário é identificado só depois no texto: ela é que lhe ofereceu os cigarros com que "Ele" (assim mesmo, com maiúscula) agora lhe defuma o rosto e a seduz ao mesmo tempo. O toque da mão no rosto dela, que antes parecia apenas um gesto de sedução sobranceira, pode assim interpretar-se também como um agradecimento formal pelo presente recebido. Tudo muito inocente... Como convinha nos idos de 69 e num país governado pela beatice que, para disfarçar os vícios privados, se cobria de públicas virtudes. E não há como a publicidade para jogar com os duplos sentidos.

Ora, mais de três décadas cheias de acontecimentos e supostas mudanças depois, seria de esperar que, até na publicidade, as coisas já fossem diferentes. Mas não é bem assim. As campanhas publicitárias do desodorizante masculino Axe são disso um exemplo paradigmático, sendo que, por se tratar de imagens em movimento, a mensagem oferece ainda maior expressividade e dinamismo.



Estão cá todos os esterótipos da sedução, a pretexto de um charmoso que se encharca em desodorizante no elevador (sendo assim giro não se percebe a lógica de usar Axe, mas enfim...) e que deixa atrás de si uma nuvem de perfume. O incauto passageiro que se segue - com um conveniente ar banal, quase tótó -, é o improvável beneficiário de uma situação em que nem precisa esboçar um único gesto, enquanto a jovem mulher (insinuante no seu minimalista little black dress), é instantânea e irreprimivelmente transformada em ninfomaníaca descontrolada por efeito do rasto intenso de perfume no ar... Numa relação de causa-efeito como só na publicidade se pode ver, ela atira-se de imediato ao anódino passageiro qual leoa em cio. Embora apanhado de surpresa, o homem não se faz rogado e deixa-se seduzir sem hesitações. Minutos depois, ela sai do elevador alisando o vestido, já totalmente (re)composta da 'empolgante' experiência e pronta para outra, que é como quem diz, para outro, e avança decidida como se fosse ao seu encontro.

E assim se passam, galhardamente, duas pouco edificantes mensagens de uma só vez: a de que os homens (desde que usem o tal Axe, claro!) podem seduzir todas as mulheres sem excepção e sem mexerem sequer um dedo; e a de que as mulheres, no fundo, são umas descontroladas que, sob pretextos tão fúteis quanto um desodorizante de cheiro enjoativo, estão dispostas a tudo só para terem sexo.

Na verdade, até há uma ligeira alteração relativamente aos anúncios anteriores: as mulheres neste tipo de anúncio já não se limitam a deixar/esperar de forma passiva que os homens as seduzam - como acontecia no tempo dos anúncios vintage -, antes ‘atacam’ de modo indiscriminado e sem qualquer pudor todo e qualquer um que lhes apareça à frente e cheire bem. Ou seja, do ponto de vista estritamente publicitário e masculino (o público-alvo destes anúncios), as mulheres tornaram-se 'predadoras sexuais'. E, a julgar ainda por estas imagens, são os homens que agora se deixam levar. Pela forma como reagem, parecem é ter ficado todos um tanto ou quanto tolinhos quando comparados com os belos 'exemplares' dos anúncios vintage. Qualquer possível e desejável evolução deste tipo de esterótipos sexistas morre assim na praia, de forma inglória. Paradoxalmente, parecem-me agora até bem mais ferozes do que há algum tempo atrás. E por certo não é a falta de imaginação, ou alguma crise de criatividade, que leva os publicitários a continuar a usá-los de forma recorrente... 

Resumindo: haverá forma mais eficaz de reduzir tudo e todos à sua mais sórdida e boçal possibilidade do que um anúncio publicitário bem feito? Não creio. Mas o mais grave de tudo é verificar como, ainda hoje, com o séc. XXI já bem crescidinho, este tipo de mensagem continua a fazer caminho nas cabeças dos homens e mulheres que as observam sem reflectir muito naquilo que lhes está a ser mostrado.

Resta-me, pois, esperar que se mudem os seres a ver se, com o tempo, certa publicidade se decide a mudar também, mas para melhor.

O jardim em volta do caminho

A espiral perfumada que (se) inspira

O fogo (sem) artifício que se ergue para saudar o sol
Agora, todas as manhãs e por escassos instantes, é como se uma nesga do éden há muito perdido se abrisse junto ao portão da escola.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Existo a caminhar e é quanto basta

Origem

Princípio?!
Eu sei lá onde comecei...

Só dei por mim criança já vivida
a subir uma íngreme descida
(e a falar duma infância de visões)
sem me importar de ser mendigo ou rei.

Princípio?
Eu tive um, certo estou disso.
Mas que me importa
e vos importa a vós,
se eu não penso ir bater à vossa porta
nem à de meus avós?

Existo! É quanto basta,
a caminhar...
(o resto não interessa ao meu programa
seja-me a vida mãe, seja madrasta)
Existo. É quanto basta.

Ao meu programa
só interessa o meu lema:
- não parar.

Joaquim Vermelho, In Poesia (1944/1950), ETZ, 2003.

Aditamento

à postagem "Balizas Ontológicas"

Recém-chegado à Índia, Bloom manifesta de imediato a sua vontade de aprender "como é que / a biologia se equilibra com o infinito" e pede a Anish que o conduza até um sábio.

Shankra, o sábio que "aprendera com as árvores a ser velho", apresenta-lhe então uma espécie de versão oriental da máxima filosófica enunciada por Zé Fernandes: 
"Um homem é as dez palavras fundamentais que usa,
os três amigos que tem e as cinco acções mais
importantes que fez."(1).

Digamos assim: não só, mas também. E concluo por aqui este aditamento. Logo se verá até onde é que esta autêntica e antológica "Viagem à Índia" nos vai levar.

(1) Excertos de Viagem à Índia (Canto VII) de Gonçalo M. Tavares, Ed. Caminho, 2010.

sábado, 28 de maio de 2011

Poesia acabada de colher...

Palavrador

O papel,
antes do poema,
é um chão depois da chuva.

O idioma do grão
lavra a caligrafia do pão.

Mia Couto, In Tradutor de Chuvas,
Ed. Caminho, 2011.

...e comprada agora há pouco na feira do livro

Tristeza

A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.

A minha tristeza
é a do astrónomo cego.

Mia Couto, In Tradutor de Chuvas,
Ed. Caminho, 2011.

(A)variações para uma manhã de maio

A meio da manhã, no mercado semanal, até as galinhas tiveram que se abrigar pois choviam trinta maios* de uma vez só...
Estremoz, 28/5/2011
Condenadas, mas compostinhas...
* Provérbio popular: Chovam trinta Maios e não chova em Junho.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Caderneta de cromos em tournée pelo país - II

Este novo capítulo antologia da autêntica campanha de humor nacional que decorre até ao dia 5 de junho, comprova que temos bem mais do que políticos, temos verdadeiros entertainers da política, o que é totalmente distinto. Com eles a política é um espectáculo e a governação um show de variedades, ou melhor, um «evento» como agora se diz. Claro que os media também dão aqui uma boa ajudinha: nada como tirar do seu contexto certas afirmações para depois fazer a festa. Até porque, como cantava o Zeca Afonso, "o que faz falta é animar a malta", mas agora com um remate distinto: o que faz falta é o povo dar o poder aqui à malta...

Caderneta de cromos em turnée pelo país - I

Há mesmo de tudo nesta campanha, sobretudo mais do mesmo, ou seja, de coisa alguma: vazio total, da esquerda à direita, passando pelo centro, pelos "comícios mais pequenos do mundo" com que o MEP "dá música" aos seus possíveis votantes, pela harmonia "natural" do PAN, isto é, pela defesa dos animais em detrimento dos vegetais, pelas anedotas de alentejanos de Louçã e pelas oscilações de registo discursivo de Sócrates (algures entre a abertura ao diálogo e o orgulhosamente só). Uma delícia! Nem os Gato Fedorento fariam melhor...

Afinal, ainda há mundos por descobrir debaixo dos nossos pés

Ao que parece, as areias do Egipto ainda escondem muitos segredos. Com a ajuda dos satélites da NASA, a arqueóloga Sarah Parcak e a sua equipa da Universidade do Alabama, EUA, andam a descobrir pirâmides como quem apanha tortulhos no montado: 17 ao todo. Duas das supostas pirâmides já foram até confirmadas por escavações iniciais. Descobriram até sob o deserto uma autêntica cidade perdida (ver aqui). A arqueologia moderna inicia agora e assim uma nova e empolgante etapa. E a série "Indiana Jones" também conhecerá certamente novos episódios. (Talvez já não com o Harrison Ford o que, do meu ponto de vista, é de lamentar mas, em Hollywood, a idade não perdoa, de facto.)

Para os arqueólogos, ao que tudo indica, trabalho não vai faltar...

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Música que parece uma cápsula de tempo (no bom sentido)

Apesar de toda a gente andar a falar, a ouvir e a partilhar a música dos The National, e de eu até gostar de algumas canções, continuo a preferir, sem qualquer reserva, os Fleet Foxes. Desde os Fairport Convention e Sandy Denny que não (ou)via nada assim. Magnífico!


Balizas ontológicas

Zé Fernandes, personagem e narrador de A Cidade e as Serras de Eça de Queirós, afirma peremptório a um Jacinto recém-deslumbrado com a natureza opulenta de Tormes que a trilogia "Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro" é um dos três grandes actos, sem os quais, "...segundo diz não sei que filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem..." E acrescenta depois: "Tens de te apressar, para ser um homem." (p. 209)

Pois eu, nas minhas circunstâncias e por estes parâmetros, nem que corresse desalmadamente conseguiria alcançaria tal meta. Mas nem sequer estou muito preocupada pois os fundamentos de uma "filosofia" que se limita a lançar as coisas no mundo e não quer saber do resto da sua existência são, no mínimo, duvidosos: o mero acto biológico de "fazer um filho" é mais meritório do que educar e formar uma criança até que ela se transforme num adulto equilibrado? Escrever livros que mais não são do que "papéis pintados com tinta", como no poema de Pessoa, só por escrever, adiantará alguma coisa? Fazer o gesto protocolar de plantar uma árvore que definhará depois por falta de água e de cuidados torna o mundo, e as pessoas dentro dele, melhores em quê? Viver a pensar/preparar o futuro é melhor do que apenas viver? Esta ânsia de posteridade que, de certa forma, se confunde com a de notoriedade, sempre me deixou indiferente. E se nada disto acontecer? Somos ninguém,  nada? Nem sequer "humanos"?

Vem tudo isto a (des)propósito de uma das crónicas diárias do Miguel Esteves Cardoso para o Público (10/5/2011) que era assim:

"Borges dizia que o esquecimento era tão importante como a memória mas levei até ontem a perceber que ele dava importância de mais à memória – e ao esquecimento.

Ocupar o presente – que é a única coisa que realmente temos – com o passado (a memória e o esquecimento) ou com o futuro (o medo, ansiedade, ambição, esperança, ignorância e esquecimento) é mesmo perder tempo. Lembrar ou antecipar é roubar presentes ao presente. Em vez de oferecer presentes ao presente – a começar por um simples obrigado por estar aqui, nem morto nem com vontade de morrer -, criamos-lhe dívidas, por não ser tão bom como certos passados ou incertos futuros que se imaginam.

A saudade funciona para trás e para a frente. O amanhismo é uma ilusão horrenda – pensar que tudo vai acabar bem, em vez de dar graças por aquilo que se tem. Acabamos todos mortos e o risco é perdermos o entretanto, pensando mais no nascimento, na vida e na morte do que no maravilhoso expediente de estarmos vivos e estúpidos de não sabermos nem querermos saber o que se segue.

Mas o ontemismo – “dantes é que era bom” – que afecta mais os portugueses, romenos e outros (poucos, graças a Deus, para bem deles), nostómanos, fetichistas da nostalgia, também suga muito contentamento ao prazer evidente do presente. De que doenças não padecemos? Quais são as catástrofes que, de momento, não nos ocorrem? Ainda estamos vivos? Ainda sabe bem queixarmo-nos?

É bom sinal. A terra prometida é o presente; é agora."
 
Ora é justamente aqui que eu me situo. O passado, seja ele as recordações de infância ou as histórias de adolescência é isso mesmo: pretérito perfeito ou imperfeito. E ainda bem. O futuro não sei como será. Por isso não perco muito tempo a pensar se vale a pena fazer isto ou aquilo hoje porque o futuro será desta ou daquela maneira. Faço ou não faço, hoje, não amanhã, muito menos por causa de amanhã. E também não caio na (des)ilusão de "preparar" o futuro simbolizada na tal máxima do filósofo que ninguém sabe quem foi: fazer um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Sou muitas coisas - realista, pessimista, idealista... - mas não sou nem ontemista nem amanhista.
 
Ontologicamente, "A [minha] terra prometida é o presente; é agora", como escreveu Miguel Esteves Cardoso, e eu subscrevo cada dia mais.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar,
In Na Vertigem do Dia, 1975-1980

Vias sinuosas

Via popular: Ver para crer
Via erudita: “Crer para ver” – Vergílio Ferreira
Vias cruzadas: Crer para ver ou ver para crer, eis a questão.
Via pessoal – Ver e crer são formas de querer.
Via alheia – Não querer ver, quanto mais crer.
Via dolorosa – Dói crer tanto que, mesmo depois de ver, se continua a querer.
Próxima via: Não querer ver para não crer.


Entre o cepticismo e o estoicismo, passando pelo racionalismo, pelo materialismo, pelo cinismo ou pelo idealismo, há vias para todos os gostos, crenças e estados de espírito.
E esta é, talvez, a única certeza possível de alcançar, seja qual for a via que tenhamos escolhido.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Campanha eleitoral

A campanha dita oficial iniciou-se há apenas dois dias. Tempo mais do que suficiente para perceber que os candidatos, as imagens e as mensagens se podem sintetizar de forma muito simples: estas eleições são cada vez mais para-lamentar do que parlamentares.

Aliás, todo este circo começa a ter estranhas parecenças com um coliseu romano (também ele, por mero acaso, um hemiciclo?). Por mim, "pollice verso" para (quase) todos eles!

Jean-Léon Gérôme, "Pollice Verso", 1872

Metáforas (quase) naturais - XI

Cada um de nós transporta consigo, dentro de si, uma espécie de castelo dos sonhos desfeitos no ar do tempo, cujas muralhas se vão elevando à medida que avançamos na vida.

Estremoz, 23/5/2011  
Julho 2011
O "meu" castelo dos sonhos desfeitos não tem parado de crescer nestes últimos tempos. E é agora da mais alta das suas torres que, todos os dias, vejo passar cá em baixo, no caminho deserto e abrasado pelo sol, as imagens desencontradas da minha própria vida.

A manter-se este ritmo acelerado de construção não demorarei muito a conseguir tocar o algodão humedecido das nuvens que vão deslizando por cima dos seus muros inconjuntos. 

domingo, 22 de maio de 2011

Pára tudo, já! Hoje há futebol!

Só é pena que sejamos um país e não um estádio. Isto corria de certeza bem melhor!
Luís Afonso, "Bartoon" in Público


Proverbiais e disforisticas

O amor é dos poucos sentimentos que consegue passar, com idêntico grau de firmeza e de convicção, do estado de inevitável ao de claramente evitável.

Abre-se a janela bem cedo pela manhã

Edward Hopper Cape Cod Morning, 1950  
espreita-se o mundo lá fora, inspira-se o ar parado, mas ainda fresco, e logo nos entra pelos sentidos uma quase-alegria feita da euforia dos pássaros, do azul límpido do céu, da mistura vibrante de cores que cobre os campos até perder de vista e do ar tão carregado de aromas e de promessas. Uma perfeita sinestesia, exactamente como no quadro de Hopper.
E apetece dizer/aprender com Caeiro, o Mestre incontestado:

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...

Alberto Caeiro, "Poema XXI",
in O Guardador de Rebanhos

sábado, 21 de maio de 2011

Às vezes, a música é a única luz que fica acesa

O (a)típico fim-de-semana

aqui me tinha referido à forma como o fim de semana é, às vezes, uma lugar/tempo estranho: visto de longe, quando a semana ainda vai a meio parece conter a promessa de um oásis. E, no entanto, quantas vezes não chegamos ao domingo à noite - às vezes sem nos darmos bem conta do passar do tempo tal o número de tarefas que, entretanto, executámos - com a nítida sensação de que, afinal, não tomámos fôlego, nem sequer começámos a descontrair e já é novamente segunda-feira e é preciso recomeçar tudo de novo.

Um estudo britânico, feito no ano passado, veio esclarecer as minhas dúvidas sobre esta matéria, as quais, aliás, já não eram muitas: a maioria dos que trabalham só consegue 'desligar' efectivamente da profissão ao fim da manhã de sábado e, quando a tarde de domingo ainda vai a meio, já está novamente a pensar nas tarefas da semana. Isto significa que, na prática e para muita gente, o fim-de-semana apenas dura umas escassas 27 horas. E isto com sorte porque, dependendo da profissão, pode até passar-se uma boa parte do dito a trabalhar no duro para preparar a semana que há-de vir.

É o caso dos que, como eu, são professores e têm mesmo que aproveitar estes dois dias para corrigir testes e  trabalhos e para prepararem as aulas da semana. Isto porque, durante a semana, o número de aulas, a que acrescem reuniões por tudo e por nada e trabalho não lectivo obrigatório (actividades de dinamização da escola, elaboração e acompanhamento de projecto educativo, regulamento interno, avaliação interna da escola, direcção de turma, coordenações diversas, etc, etc) não permitem que esse trabalho mais moroso e exigente se concretize em tempo útil. Assim, no meu caso pessoal, só consigo "desligar" verdadeiramente a partir do fim da tarde de sexta-feira até ao final desse serão. 'Desligo' a tal ponto que às dez da noite apago no sofá, literalmente. Isto porque metade, ou mesmo a quase totalidade do meu fim-de-semana, é, desde há algum tempo, dedicada a assuntos domésticos e familiares, e não propriamente à descontracção. É também por isso que, desde há algum tempo, a única coisa que sinto no domingo à noite é cansaço e ainda tenho sempre que aproveitar o final de tarde e o serão para preparar aulas.
Desta forma, e quase sem nos apercebermos, temos posto seriamente em causa aquela que foi uma das maiores e mais duras conquistas do século XX - em Portugal, só conseguida na segunda metade do século. Com estes empregos que transbordam dos dias úteis e nos atormentam o espírito durante a pausa semanal estamos, claramente, a regredir em termos de direitos do trabalho. E a médio prazo esta imersão permanente no trabalho tem custos elevados em termos de saúde - física e, sobretudo mental - e em termos sociais e familiares. Muita gente está até permanentemente ligada ao local de trabalho por intermédio de portáteis ou telemóveis de serviço, fornecidos pela próprias empresas. Estar sempre 'on'  em termos laborais (para muitos uma certa versão de estar 'in') pode contribuir para uma severa diminuição da qualidade de vida das pessoas e há vários estudos que o comprovam. Luís Graça, sociólogo do trabalho, diz mesmo que "O trabalho, por um lado, foi fortemente intelectualizado, mesmo nas fábricas, devido à automatização. É fisicamente mais leve, mas mentalmente mais cansativo. As pessoas já não são esmagadas pelas máquinas, mas há novos problemas. O trabalho é uma coisa que nos persegue e que em alguns casos causa grande sofrimento." (in DN, 28/11/2010, itálico meu)


Dá que pensar tudo isto logo agora que Portugal está sob resgate dos donos do dinheiro (FMI e BCE) e que a chanceler Angela Merkel anda a dizer por aí que "Não podemos ter a mesmo moeda e uns terem muitas férias e outros poucas", ou que "Em países como a Grécia, Espanha e Portugal, as pessoas não devem poder ir para a reforma mais cedo do que na Alemanha". Só uma coisa me preocupa: será que a senhora Merkel pensa mesmo assim, ou apenas tem andado a ouvir a conversa fiada dos nossos (des)governantes que andam lá fora a dar uma imagem cor-de-rosa do que se passa no país. Pelos vistos tão cor-de-rosa, que a senhora anda a dizer barbaridades aí pela europa fora. E já agora, alguém faça o favor de a esclarecer para evitar que tenha estes lapsus linguae que tão mal ficam a quem, ainda por cima, pretende ser a patroa da europa e arredores. Talvez fosse melhor que, quando falasse sobre os seus 'subordinados'  soubesse, pelo menos, o que estava a dizer. Ganhava logo outra credibilidade. Pela parte que me toca, declaro já que concordo e subscrevo tais declarações se, e apenas se, em Portugal, me forem dadas condições de vida idênticas às dos alemães, ordenado incluído. Coisa que me parece, aliás, ser da mais elementar justiça até porque, lá por ser portuguesa, não trabalho de certeza menos do que qualquer alemão, nem em termos de quantidade, nem de qualidade.

Em suma, cada vez mais o (a)típico fim-de-semana de muitos portugueses como eu pode representar-se graficamente assim.

Nota: Claro que, quando o FMI assentar arraiais no país, vai haver logo um corte na variável "quando se tem dinheiro". Ficarão apenas as outras duas o que, na prática, também não causará grande transtorno à maioria de nós. Afinal, já estamos habituados.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

As indefinidas e imprecisas manchas da memória

A arte de viver é, sobretudo, a arte de esquecer

Vou lendo - o gerúndio é fundamental nesta perifrástica - "Uma Viagem à Índia" de Gonçalo M. Tavares. Acabo sempre os serões com três ou quatro estâncias do livro como quem, antes de dormir, mordisca alguma coisa, não por ter fome, mas apenas para saciar a gulodice. O cansaço nunca me deixa ir muito mais longe. Chegarei à Índia de John Bloom quando chegar. Na verdade, não tenho pressa alguma. Mesmo porque, e como o próprio protagonista declara a estâncias 60 do Canto V* (sim, já passei o  tormentório cabo):
"Quero primeiro chegar à índia por dentro
- pensava Bloom -, construindo o esquecimento
da vida anterior como se constrói com paciência um edifício.
O esquecimento é uma faculdade da cabeça
aperfeiçoável como todas as outras
(como a sua inversa, por exemplo, a memória)
(...)"
Como já disse, não tenho pressa de chegar. Apenas quero ter a certeza de que alcançarei o meu objectivo pois, como Bloom (sempre ele) refere:
"O mundo não tem alcatifa, não pense tal, meu caro amigo,
nem em Paris o mundo real tem alcatifa.
O mundo tem madeira,
e a madeira tem falhas evidentes, lascas pontiagudas,
e quem sobre ela andar não sairá sem feridas
(o que também se poderá dizer do mundo).
O Mundo não foi feito para sobre ele se andar descalço."
(Estância 65, Canto III*)

Avancemos, pois, com precaução e vagar, tomando o tempo de saborear a Viagem (afinal, ainda faltam quatro Cantos).

* Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Ed. Caminho, 2010.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Verbo

Ponho palavras em cima da mesa; e deixo
que se sirvam delas, que as partam em fatias, sílaba a
a sílaba, para as levarem à boca - onde as palavras se
voltam a colar, para caírem sobre a mesa.

Assim, conversamos uns com os outros. Trocamos
palavras; e roubamos outras palavras, quando não
as temos; e damos palavras, quando sabemos que estão
a mais. Em todas as conversas sobram as palavras.

Mas há palavras que ficam sobre a mesa, quando
nos vamos embora. Ficam frias, com a noite; se uma janela
se abre, o vento sopra-as para o chão. No dia seguinte,
a mulher a dias há-de varrê-las para o lixo.

Por isso, quando me vou embora, verifico se ficaram
palavras sobre a mesa; e meto-as no bolso, sem ninguém
dar por isso. depois guardo-as na gaveta do poema. Algum
dia, estas palavras hão-de servir para alguma coisa.

Nuno Júdice, In "As coisas mais simples", D. Quixote, 2006

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Fragmentária - III

Desamor

Nunca o nosso amor coube num poema, pois parecia transbordar sempre os limites da estrofe por mais solta que fosse a rima dos versos. Parecia sempre ser maior do que o próprio poema (embora coubesse perfeitamente no espaço apertado das nossas duas mãos enlaçadas).

Mas as nossas mãos já não estão enlaçadas e não há poesia que consiga (re)avivar a chama duvidosa que foi enfraquecendo com o tempo. Até a memória da textura quente da tua mão na palma da minha mão começou a desvanecer-se. E, agora que a distância entre nós parece ser infinita, verifico que o desamor, esse, cabe todo em escassas linhas de texto e ainda sobra espaço para a ironia de concluir que o problema do nosso (des)amor nunca foi a forma e sim o conteúdo do poema.

A poesia também se faz com e/para o ouvido

A poesia também se faz com/e para os olhos

Sílvio Prado, " Acabou a poesia?", In http://poesiavisualsilvio.blogspot.com/

Fragmentária - II

Pre-texto

Na página branca do lençol negociámos a quatro mãos um manifesto de intenções. Na manhã seguinte, a claridade espreitou pela vidraça e revelou sobre a cama uma espécie de gravura em baixo-relevo: o poema visual e sensorial inventado pelos nossos dois corpos em uníssono e escrito em redondilhas nem maiores nem menores que nós: apenas (des)iguais.

Fragmentária - I

Sazonal

Era na tua boca que matava a sede no pico do Verão.  Era no calor do teu bafo que, chegado o Inverno, me aquecia. De todas as estações só mesmo esta imensidão despovoada cá por dentro.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Em crise, sim. Mas, pelos vistos, não de inspiração.

Em ritmo de anúncio publicitário,  suficientemente apelativo para se tornar viral nas redes sociais, eis uma certa visão irónica e crítica q.b. dos fundamentos da actual crise política e sócio-económica, assim ao estilo "explicada às criancinhas". Serão os cidadãos portugueses capazes de perceber qual é a sua parte de culpa nesta trapalhada toda? Esperemos para ver no próximo dia 5 de Junho.

Proverbiais e aforísticas

A crença é, muitas vezes, uma simples questão de querença.

Aforísticas

"O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios, tambem é deste modo que o destino costuma comportar-se connosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais nada que ver, é tudo igual."

José Saramago, in "O Conto da Ilha Desconhecida", Ed. Caminho

segunda-feira, 16 de maio de 2011

O verde das árvores é, nesta altura, um lugar mágico

O que muitos portugueses também precisam de saber sobre Portugal

A propósito da relutância dos finlandeses em contribuir para a colecta europeia que há-de ajudar Portugal (como se ela nos saísse de graça), uns habilidosos ligados à câmara de Cascais (este pormenor é sempre referido de cada vez que se fala do vídeo, mas ainda não percebi muito bem a razão) fizeram um vídeo totalmente escrito e falado em inglês que tem feito furor aí nas redes ditas sociais.


É um vídeo que, não ofendendo ninguém, é assumidamente faccioso e muito galaró (como muito bem diz o Miguel Esteves Cardoso) que, a pretexto de "esclarecer" os finlandeses pretende, cá para mim, chegar sobretudo aos portugueses. Tudo isto sempre num tom positivo, bem-disposto, muito tu-cá-tu-lá pouco habitual em nós. É óbvio que as discussões técnicas e sérias sobre a identidade nacional não passam propriamente por aqui e a discussão sobre o que é o patriotismo também não. Nem me pareceu, em nenhum momento que fosse esse o objectivo dos autores. Agora, que uma saudável discussão anda no ar, lá isso é bem verdade. E só por isso já valeu a pena tê-lo feito.

Este vídeo é também o bom exemplo de uma certa forma portuguesa de encarar a adversidade: não com a sofrida e calada resignação com que alguns - até nós próprios - às vezes nos acusam, mas com uma fina ironia e um sentido de humor notáveis.

Fez-me lembrar um postal que adquiri em Londres na década de 90, no qual os ingleses, que sempre desconfiaram (e desconfiam) da UE, brincavam assim com uma certa ideia da Europa, explorando os principais defeitos de cada povo (português incluído, pois então):
 
J. N. Hughes-Wilson

Como portuguesa, não me senti minimamente ofendida. Bem pelo contrário, achei que havia uma saudável e perspicaz (auto-)crítica no cartoon e  ainda hoje guardo o postal. De outra forma não poderia ser posto aqui.

E julgo que é sobretudo isso que se passa com o vídeo dedicado aos finlandeses: uma saudável provocação feita a ambos os lados da barricada.  Aliás, o próprio ministro finlandês dos Negócios Estrangeiros, Alexander Stubb, certamente já cansado de receber links do vídeo via mail, declarou no Twitter: "I think it's a funny video. Not to be taken too seriously - especially if you're a Finn." Enfim, nada como um pouco de bom-senso para colocar as coisas em perspectiva. Porém, face às últimas declarações do primeiro-ministro inglês, parece-me que vai ser necessário fazer mais uns quantos dedicados a seduzir/provocar outros prováveis benfeitores europeus.

Acrescento ainda um outro aspecto associado ao vídeo que não me parece ser despiciendo: é que, infelizmente, há muitos portugueses, sobretudo os das gerações mais jovens, os tais que se dizem "à rasca", (mal)formados num sistema educativo marcado por uma permissividade e por um facilitismo (e eu bem sei do que falo, pois sou professora) gerador das mais grosseiras formas de ignorância para quem muitas destas datas e informações são absoluta novidade. Só por isso já valeu a pena ter feito este vídeo, pois também ele é educativo para muitos portugueses, apesar de ser faccioso, galaró, etc, etc. Sugiro até que os próximos tragam a seguinte expressão acrescentada ao título: "e os portugueses também".

domingo, 15 de maio de 2011

Questão de género ou de sem-vergonha?

Os noticiários abriram hoje com a notícia de que Mr. Strauss-Kahn - actual director-geral do FMI e mais que previsível candidato à presidência francesa - foi preso no aeroporto de Nova Iorque por causa de uma queixa de assédio sexual/tentativa de violação apresentada por uma empregada da limpeza do hotel onde estava comodamente instalado.

Logo a própria natureza do fait-divers em que se vê envolvido, para mais sendo casado com uma figura altamente mediática em França, a jornalista Anne Sinclair, diz bem da verdadeira natureza do homem, a qual, aliás, se pode sintetizar de forma apropriada na figura que se segue:


Todas as personalidades que, de imediato, foram convocadas a comentar o caso foram lacónicas, alegando a necessidade de prudência, reforçando a ideia da presunção de inocência até prova em contrário, a necessidade de deixar trabalhar a justiça, a necessária separação entre as públicas virtudes da criatura e os seus vícios privados, blá-blá-blá. Nada de novo nesta argumentação, aliás característica tratando-se de um homem, ainda para mais todo-poderoso e influente. Não deixa de ser curioso que na própria blogosfera alguém - por acaso (?) também ele homem - afirmou mesmo, num certo tom paternalista e pleno de insinuações, mascarado de conveniente ironia, como convém, antes de passar ao assunto/post seguinte: "O maroto!" (ver aqui).

Fosse uma mulher que estivesse em causa numa situação semelhante e outro seria o tom - para já falar dos próprios comentários: seria referida em tom de «cabra traidora» com um sorrisinho cínico, enquanto muitos estariam a pensar na melhor forma de também tomarem parte no festim. Afinal, à boa maneira portuga, melhor que uma conversa de cornos (verdadeiros ou não), só mesmo um bom par de cornos postos em alguém... E a melhor prova disto está na forma bem distinta como foi tratado na imprensa e na blogosfera o caso de Iris Robinson.

Mas voltando a Mr. Strauss-Kahn. Ficou claro que, além de ter o cérebro entre as pernas - este não é sequer o primeiro caso do género em que se vê envolvido - tem ainda uma outra característica: acha que as mulheres são como documenta a seguinte imagem.

 Ao que tudo indica:
1) o homem sofre do complexo de macho de cobrição e tudo quanto é fêmea que lhe passe ao alcance da vista está garantida (quer queira, quer não);

2) o homem, coitado, ainda não percebeu que os tempos mudaram um bocadinho e que a relação homem-mulher, embora não tenha evoluído tanto quanto deveria, já não está exactamente igual ao que era há umas décadas atrás, quando as mulheres se sujeitavam a ser tratadas como meros objectos e não como pessoas de pleno direito, apenas porque não tinham meios económicos para se sustentarem;

3) o director do FMI acha-se tão importante e tão poderoso qur pensa que pode tratar os outros abaixo de cão. Assim, uma criada de hotel é isso mesmo e, sejamos claros, para todo o serviço. Também o facto de estar numa suite de 2 mil euros/noite deve reforçar essa ideia de que bem lhe podem satisfazer todos os caprichos;

4) enquanto director do FMI o senhor devia achar que era intocável e que ninguém se atreveria a chamar a polícia para tratar do assunto;

5) ainda como director do FMI o homem deve ter confundido aquilo que o próprio FMI anda a fazer aos países a quem empresta dinheiro com a vida real e deve ter pensado que podia aplicar o "tratamento" indiscriminadamente e a seu bel-prazer.

PS -  O que eu sei é que a deslealdade e a traição não são exclusivo de um sexo ou de uma época em detrimento de outra. Infelizmente, gente desleal e sem vergonha é o que mais há em todas as épocas. A dificuldade é sempre a de conseguir separar o trigo do joio.

Lixo é lixo é lixo

O que eu acho extraordinário neste documentário é que alguém - no caso a equipa de realizadores - queira fazer passar a ideia de que os desgraçados mais desgraçados de todos - aqueles que, para sobreviver, se vêem forçados a catar lixo num aterro maior que muitas das nossas cidades  - são, afinal, artistas e o trabalho que fazem - catar o lixo do outros - é uma forma radical de arte. Tudo isto a pretexto do trabalho  - meritório, refira-se - do artista plástico Vik Muniz. Méritos à parte, o pressuposto não é apenas hipócrita, é cínico.

Catar lixo, ainda que seja para depois fazer arte, que eu saiba, nunca foi nem nunca há-de ser uma espécie de método de auto-ajuda ou de salvação, menos ainda uma espécie de escada para ascender na pirâmide social. É que os desgraçados deste mundo, por mais arte que façam com o lixo que eles próprios catam a céu aberto, nunca passarão disso mesmo: de desgraçados. Aqui, julgo que dificilmente a arte pode fazer a diferença. Ainda que seja, como esta, extraordinária. O que poderia realmente fazer a diferença seria uma outra sociedade, na qual todas as pessoas tivessem o mínimo necessário para sobreviver com dignidade, sem precisarem catar a sua sobrevivência no lixo. Tudo o resto são boas intenções. E disso, dizem, até o inferno está cheio, quanto mais um simples documentário.

Decididamente, este Lixo Extraordinário não me convenceu lá muito, não.

É em maio que fazem anos quase todos os meus amigos de praticamente sempre

Maio, pela força de um número que até é bem pequeno, é assim uma espécie de mês dos amigos. Claro que há duas ou três excepções noutros meses do ano. Mas é sobretudo em maio que, a pretexto dos aniversários, há uns telefonemas e umas mensagens que, de outra forma, não se fariam, um café com bolos ao serão, às vezes, até mesmo um animado jantar.
Por isso, agora que vamos mesmo a meio de maio, este poema que tem tudo de bom na vida só podia ser para eles. Para os de maio. E para as excepções também.

Síntese da felicidade

Desejo a você...
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 14 de maio de 2011

A Poesia (Não) Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Manuel António Pina, in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde", 1974, primeiro livro de poesia do vencedor do Prémio Camões 2011.

Money is time / Time is a currency



Money is time
Time is a currency
You and I both now
You're spending yours all

And you are the one
You cried for infinity
But you can't have it all
No, no... No you can't have it all

Jamie Woon, In Mirrorwriting, Polydor, 2011

"Como viver?"

"...cada vez mais, é a pergunta que mais vale a pena fazer, não é? Quando nos estamos a afogar num dilúvio de informação e ansiedade?"

Jonathan Franzen, em entrevista ao Ípsilon (6/5/2011)

Travessia do deserto

Tenho feito um esforço quase sobre-humano para ouvir os debates televisivos desta pré-campanha eleitoral no intuito de tentar perceber quais são as propostas, contrapropostas e despropostas dos vários partidos que se apresentam agora a eleições. Sobretudo, para tentar entender de uma vez por todas qual é a lógica de negociar um empréstimo gigantesco para pagar dívidas passadas e poder contrair dívidas futuras.

Porém, quanto mais ouço explicar as troikas e baldroikas do (des)governo com o FMI, quanto mais tomo consciência do que elas realmente me/nos vai custar nos próximos anos - aumento brutal dos impostos, da carga fiscal e do custo de vida, mais cortes no salário, ainda menos regalias sociais (saúde, irs), expectativas de carreira desfeitas, reforma sabe-se lá quando e com que dinheiro - mais acho que isto precisa é de uma verdadeira perestroika e não de eleições que vão levar a mais-do-mesmo-ou-pior-ainda.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

6ª feira, 13

Momentos monty python - III

Com esta dos "pentelhos" até o próprio John Cleese ficava com os ditos em pé. Para já não falar da questão das "confidências" que Teixeira dos Santos lhe terá feito durante as negociações para o Orçamento de Estado  e que o fulano fez questão de revelar com a maior desfaçatez.
E é esta figura caricata que se auto- anuncia como o futuro ministro das finanças !!!????
Isto promete, de facto.

Momentos monty python - II

Pedro Passos Coelho, inflamado, discursava às "bases" algures aí pelo país pró-fundo para garantir que, com ele no governo, seriam escolhidos os projectos "mais económicos" para não agravar a dívida pública.

Julgo que se inicia assim a era dos projectos de "marca branca" nas obras públicas.
Isto promete, de facto.

No meio do caminho

René Magritte, Le Chateau des Pyrénées, 1959

























No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

Carlos Drummond de Andrade, In Alguma poesia,
Ed. Pindorama, 1930

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Epítome

Na palavra ESTAR mora um SER. Só que é um ser dilacerado pelas circunstâncias que o rodeiam. Um ESR ao contrário. Um ESR que ainda não conseguiu, de facto, SER (consegui-lo-á?) e, por isso, se limita a ESTAR.

Esta forma peculiar de grafar a paravra ESR pode encarar-se como uma espécie de corolário daquilo que Sartre, Nietzsche e os outros todos disseram. Na verdade, ela representa bem a ferida existencial que cada um de nós transporta dentro de si.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Uma síntese musical...

...harmoniosa e quase panteísta, uma espécie de ponte entre o passado (a folk dos anos 60/70) e o presente, como há muito não se ouvia. Caramba, até a voz de Robin Pecknold tem aquele extraordinário timbre límpido que lembra água corrente.
A música destes Fleet Foxes é sem dúvida um dos (meus) achados musicais desta primavera.


terça-feira, 10 de maio de 2011

Sim, e porque não um poema de amor?

Sobretudo se ele usar, de facto, a linguagem do amor. Aquelas palavras que nos entram pelos olhos dentro exactamente como o sol quente da tarde entra pelas janelas abertas e inunda a casa de luz brilhante e quente ao mesmo tempo. 
Sobretudo se, mais do que um poema, for quase um belísssimo metapoema de amor.

Paráfrase

Este poema começa por te comparar
com as constelações,
com os seus nomes mágicos
e desenhos precisos,
e depois
um jogo de palavras indica
que sem ti a astronomia
é uma ciência infeliz.
Em seguida, duas metáforas
introduzem o tema da luz
e dos contrastes
petrarquistas que existem
na mulher amada,
no refúgio triste da imaginação.

A segunda estrofe sugere
que a diversidade de seres vivos
prova a existência
de Deus
e a tua, ao mesmo tempo
que toma um por um
os atributos
que participam da tua natureza
e do espaço criador
do teu silêncio.

Uma hipérbole, finalmente,
diz que me fazes muita falta.

Pedro Mexia, in Menos por Menos - Poemas Escolhidos, Dom Quixote, 2011

Assim uma espécie de "toda a verdade" sobre as obras de requalificação da Parque Escolar, EPE, ou melhor, sobre os seus custos reais

Na minha escola, já é assim: gelámos no inverno e agora é um calor que não se aguenta. O sistema de ventilação está desligado porque é incomportável financeiramente. São as tais PPP (Parcerias Público-privadas) a (dis)funcionar. Mas sobre isto não se fala. Nem sequer a oposição. E, nesta fase  de troikas e baldroikas nem convém muito que se levante tal poeira. Afinal estamos em pré-campanha eleitoral e todos - da direita à esquerda - querem é o poder. O país real, esse, que se desenrasque como puder.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Mundo Moderno

"Mundo maluco, máquina mortífera, mundo moderno melhore, melhore mais, melhore muito, melhore mesmo. Merecemos... maldito mundo moderno, mundinho merda."

Chico Anysio