domingo, 31 de julho de 2011

É de veludo esta música

Um reality show que talvez possamos ver por cá

É sobejamente conhecido o seguidismo acrítico dos nossos canais de televisão, especialmente os privados, no que aos reality shows diz respeito. Bons exemplos disso mesmo são o grotesco "Peso Pesado" (Biggest Loser) na SIC, ou o indescritível "Perdidos na Tribo Famosos"  da TVI. Face a este panorama é legítimo pensar que, mais cedo ou mais tarde, todo e qualquer reality show que passe lá fora, há-de também ser feito cá dentro. E não é muito difícil adivinhar qual será um dos próximos: The Apprentice (ou O Aprendiz), claro. Na versão original da NBC é apresentado e dinamizado (ou feito à medida do ego desmedido?) por Donald Trump, o rei dos patos-bravos, ou melhor, «o» pato-bravo. Está no ar desde 2004 e, ultimamente, também tem tido a inevitável (e intragável) versão "Famosos".


Por cá, é possível ve-lo na SIC Radical. Resume-se em poucas palavras: durante um ano, 16 ou 18 pessoas competem em eliminatórias na gestão e desempenho de cargos numa das empresas de Trump. A eliminação dos concorrentes é sempre anunciada pelo empresário em tom ríspido com a frase-refrão do programa: "Está despedido/a!".

Agora que estamos em grande crise financeira e económica e que é preciso arranjar formas de dinamizar as empresas nacionais, antes que elas se apaguem todas, julgo que esta era uma esplêndida proposta para ajudar a combater a dita crise, criando uma espécie de «clima» mais optimista no espírito das audiências televisivas. Talvez até surgissem algumas ideias (ou piadas) interessantes para animar o pessoal.

E o empresário português capaz de levar por diante tal empreendimento - até porque tem empresas em número suficiente para poder "emprestar" uma por quantia razoável (digamos assim) seria, claro está, o incontornável Joe Berardo. Já estou mesmo a imaginar os animados diálogos à volta da mesa na sala de reuniões e a frase "Está despedide!" a concluir a sessão! Ou o mais que provável "Fuck you!" Era só ver as audiências a crescer (para cima, como dizia o outro).

Donald Trump / Joe Berardo

sábado, 30 de julho de 2011

Womanifesto

"A poesia é a vida? Pois claro!"

Este (auto)retrato de um poeta através dos poetas de um país não é para todos. Pela lucidez desapiedada e pela integridade que revela, só podia ter sido escrito pelo O´Neill.

Autocrítica

Ninguém ma pediu e já não está na moda,
pelo menos aquela pressurosa contrição
feita com cálculo e unção, aquela hipócrita
autoflagelação despudorada,
mas já é tempo (para mim) de deitar contas
ao verso e ao seu reverso, de mostrar a língua
a esse médico de quem tenho um pouco,
para ver como vai o foro íntimo
e, por consequência, o verso público.

“Nado e criado em Lisboa...” era um começo
não autocrítico, mas autobiográfico.
Sei muito bem que a biografia
explica muita coisa (até a azia!)
mas para quê esquadrinhar os anos
(joguei berlinde, joguei pião e juro aqui
que nunca o fiz para os americanos!)
à cata da raiz, se o que vivi,
para o mal e para o bem, está aqui?

“Nado e criado em Lisboa...” rejeitado
por excessivamente circunloquial.

(Comecemos sem mais delongas, prima,
ó volta e meia prima pobre, rima,
que a questão é simples: a poesia
dum tal...)

Dizem que me junqueiro, que me tolentino
e até que me paulino,
que tenho tudo e todos no ouvido
e não sou nada original.

Sim senhores, tem visos de verdade!

Serei eu, meu Deus, um ser reminiscente,
um desses semblantes ante os quais manda a prudência
que se pergunte ao botão antes de mais:
- Onde é que eu já vi este tratante?

Se pensar bem, o Junqueiro não me diz lá grande coisa.
O seu anticlericalismo fica-se pela batina;
o seu verso é tribunício e eu gosto da surdina
(ou do simulacro de estentor quando ele ajuda à crítica).
O 5 de Outubro já veio e já se foi,
mas não é a lata-de-travões junqueiriana
que estamos a pedir na circunstância épica
que se aprò... que se aprò... que se aproxima.

Liguei sempre ao Junqueiro (sei porquê)
a conversa de advogado e a conversa de barbeiro.

Um tio advogado recitou-mo quando eu tinha treze anos
e não era mudo e só na rocha de granito;
um barbeiro anarquista, que me fazia a barba
com a estropiada mão bombista,
impingia-me “A Lágrima”, mas só ele é que se comovia
com aquela aguadilha que tremia
e ainda hoje deve tremer, tremeluzir
em certas almas litográficas, singelas.

Depois vi o Sérgio desmontar
as peças duma máquina que nem sequer havia
e perdi o Junqueiro de vista.

Será que eu me Junqueiro? Pode ser,
já que tenho comido, sem saber,
de muita alpista...

Quanto a esse Tolentino, esse faceto,
devo dizer que nada lhe roubei
mas que podia ser seu neto.

Como neto podia muito bem
ser de Paulino, desse abade
que com certeza me arranjaria mãe...

(Continua o desfile, ó prima, já que a prosa
vai bonita a pretexto da autocrítica...)

Cesário diz-me muito: gostava de ferramentas, como eu,
e vê-se que para ele o ser feliz
era lançar, originais e exactos, os seus alexandrinos,
empunhar ferramental honesto
cuja eficácia ele sabia que
não vinha da beleza, mas da perfeita
adequação.
Não tem halo, tem elo e o seu encadeado
É o verso habilmente proseado.

(Que feliz eu seria, ó prima, se o Cesário
me tivesse deixado uma garlopa!)

António Nobre, embora seja muito em inho,
é o grande Só que somos nós,
por isso gosto dela (ai de mim, coitadinho!)

(E em conclusão do megalómano discurso,
ó prima, um bilhete-postal para o Pessoa,
a quem devemos todos tanto, a prima inclusive!)

Muito querido Pessoa, saberias agora
que não basta ser lúcido, merda, que não basta
a gente coser-se com as paredes
e cercar de grandes muros quem se sonha,
que não basta dizer basta de provincianos!

Bem sei que tenho sido, não poucas vezes, derrotado pela pressa,
que me espojo na anedota ou a embalo
na folha-de-flandres da conversa,
bem sei que muitos dos meus versos
nem para atacadores.
Sei que não se deve, que não é táctico cuspinhar contra o vento,
que logo, a jusante, um sujeito nos berra:
- Ó cavalheiro sua besta e se faz obséquio fosses cuspir na tua irmã!
Sei que não é bonito jogar ao chinquilho nos salões,
onde há tocheiros, santos, meninada, abstracções, tias
que a minha malha pode ofender, partir.
Sei que o sal das palavras
vai saraivar, às vezes, carne viva.
Sei que a rapariga que vem forrar os cantos
onde os homens se juntam, magote de pexotes,
com a sua esquivança de felino,
não aguenta a palavra com que eu lhe pego na palavra
e à queima-roupa lhe atiro.

A poesia é a vida? Pois claro!
Conforme a vida que se tem o verso vem
- e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertinura, pegas no paleio;
o mais é isto: o tolo dum poeta
a beber, dia a dia, a bica preta,
convencido de si, do seu recheio...
A poesia é a vida? Pois claro!
Embora custe caro, muito caro,
E a morte se meta de permeio.

De permeio, a morte? Sim, a arrenegada,
venha rebuçada ou escancarada,
a que te ceifa inteiro ou se deita, primeiro,
de esperança, na tua lástima de cama.
De permeio, pois pois, que isso de morrer
Não faz parte de nenhum programa.
E podia fazer?

Alexandre O'Neill, in Feira Cabisbaixa, 1965 

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Das (ir)razões de o mundo não ser, de facto, a preto e branco

1. Razão de serem negros os corvos



2. Razão de serem brancas as barbas do pai natal

I
Como toda a gente sabe, e os meninos melhor que ninguém, o Natal é uma coisa muito velha. O que nem toda a gente sabe é que, no princípio, ele não era pai; nem era velho, e não tinha, portanto, barbas brancas. Assim, quando o menino Jesus nasceu, já todos os meninos punham o sapato na chaminé.
A única diferença era que a chaminé não tinha, como hoje, fogão de gás ou fogareiro. Depois, com o menino Jesus, veio outra diferença: também ele punha o sapatinho, que, por acaso, era uma sandália.
Isso durou pouco? Não, porque o menino Jesus só cresce e se faz homem quando os outros meninos crescem e julgam que se fazem homens. O que, e lá isso é verdade, não acontece a toda a gente, como os meninos terão muito tempo para ver. Mas isso é já outra história, que os meninos aprenderão, sem que ninguém lha conte.
A que vou contar começa quando o menino Jesus ia fazer sete anos, idade que é muito importante, visto que são sete as maravilhas do mundo. O menino Jesus, como os outros meninos, tinha vontade de crescer e não acreditava no Natal. Ele bem sabia quem punha os brinquedos na san­dália (era a Mãe), e, por não haver então lojas de brinquedos, e, mesmo que houvesse, não terem os pais do menino Jesus dinheiro para os comprar (os brinquedos já eram muito caros), ele bem vira S. José estar a fazer uma carrocinha, às escondidas. Por isso, naquela tardinha, sempre muito com­prida, que há antes da noite de Natal, noite que, por sua vez, é a mais comprida do ano, o que lhe valeu ser ela a Noite de Natal; por isso, como ia dizendo, o menino Jesus, que estava à espera de lhe darem a carroça, fingia que se não importava, fingia, até, não esperar coisa alguma. A tarde estava muito bonita, segundo me disseram, e é natural que estivesse: o Natal ia ser pai e, o que é muito mais, ganhar as suas barbas brancas. O céu fazia-se verde e amarelo e cor-de-rosa, que são cores que as pessoas grandes não gostam de ver no céu, e que todos os meninos sabem que lá se vêem muito bem. O menino Jesus, é claro, via-as melhor que nin­guém. E, então, para disfarçar, começou a contar as nuven­zinhas soltas, que estavam todas paradas, muito quietas de propósito para ele contar - mal imaginavam o que lhes ia acontecer. O menino Jesus sentara-se numa pedra (pedra que ainda lá está na terra dele, embora ninguém saiba qual é à beira do caminho, e, com uma varinha (que não era de condão, pois só as fadas precisam desses objectos), fazia riscos na poeira. A poeira, coitada, era mais lama que outra coisa, porque chovera de manhã, e o sol não tivera tempo de a secar. Ora, o menino Jesus, umas vezes olhava para o céu, outras olhava para o chão, e qualquer pessoa com dois dedos de testa logo perceberia que ele estava a desenhar as nuvens. Mas parece que estas coisas são muito difíceis de perceber, como os meninos sabem pelas perguntas parvas que muitas pessoas crescidas costumam fazer.
- Que estás tu para aí a riscar, pequeno?
O menino Jesus voltou-se (quando nos fazem perguntas destas, a gente está sempre de costas), e viu um homem muito bem vestido que até parecia mentira. O menino não se deixou enganar, porque a pergunta estragara o fato do homem, e era como se estivesse todo rasgado e com a fralda de fora.
- Estou a fazer riscos.
- Isso vejo eu. Que riscos?
 - Só riscos.
O homem mostrou uma cara muito má, e o menino Jesus foi pondo os pés a jeito, para o caso de ser preciso levantar-se de repente e fugir a correr.
- Estás a armar em esperto, mas a mim não me enganas. O menino Jesus, que estava farto de enganar imensa gente, riu-se, mas só por dentro, por causa da má cara do homem.
- É mal fazer riscos? - perguntou.
- Se é! Ora experimenta lá.
O menino Jesus ficou desconfiado, e traçou um risco, um muito pequenino. E qual não foi o seu espanto ao ver a varinha ficar presa ao chão! Ver não viu, mas quis tirá-la e não pôde.
Claro que, dessa feita, quem se riu foi o homem. Ora é sabido que o diabo não se pode rir muito alto, porque lhe sai enxofre pelos intervalos do riso. E assim aconteceu. O menino Jesus sentiu o cheiro, viu o fumozinho a sair da boca do homem, era quase noite (anoitecera quase de repente), não passava ninguém na estrada, ele estava um bocado longe de casa, e, apesar de ser quem era, teve medo, um medo enorme, um medo ainda maior que o diabo.
Estão a ver o menino Jesus nestes assados. Que faria qualquer menino? Evidentemente, não mostrava medo, que é a melhor maneira de assarapantar o demónio. Foi o que ele fez. Fingiu que não queria a vara para nada (e queria porque era uma bela vara, muito direita), e disse:
- Bem, são horas de voltar para casa.
- Ah, sim? E porquê? - (o diabo a ver se ele caía).
- Tenho lá o Natal à minha espera.
O diabo sentiu vontade de rir; mas, aflito com o fiasco do fumo pelos intervalos do riso, mordeu os lábios e per­guntou:
- O Natal? Mas que Natal é esse?
- Se calhar não sabe o que é! - exclamou o menino Jesus, e tentou levantar-se. Aí é que foram elas! Estava pregado à pedra, como a vara à lama! Um caso sério! Se ao menos passasse alguém! Mas qual! Nem vivalma, que o diabo não conta, não é gente. E como nessa altura ainda não havia santos por quem chamar, a Nossa Senhora estava em casa, e o menino Jesus, apesar de saber que era menino Jesus, não sabia que era filho de Deus, não havia salvação possível. Não havia! ... Nisto, porque era um menino igual aos outros meninos, teve uma ideia luminosa. Era perigoso, mas o único remédio.
- Dá-me a sua mão? Ajuda-me a levantar daqui? Mesmo o que o diabo queria! E com os olhos a luzir de gozo, o diabo estendeu-lhe a mão. O pior foi esquecer-se - e o diabo nestas alturas é muitíssimo esquecido - de fir­mar-se bem nos pés. O menino, mal lhe deu a mão, pôde levan­tar-se ... e zás: meteu uma perna entre as do diabo e deu-lhe um encontrão. O diabo desamparado (é como ele está sem­pre, não se esqueçam), esbracejou e estatelou-se na lama, que, naquele sítio, estava muito bem amassada pelas rodas dos carros, mesmo destinada a traseiros do diabo. E quando se ergueu, furioso, todo sujo, o menino Jesus já ia longe, e até parecia que levava asas nos pés. Ao entrar em casa, ofegante, o menino Jesus voltou-se para trás e ainda viu, na noite escura, um clarão de raiva.

II
O menino Jesus não disse nada a ninguém. Sentia-se tão contente por ter feito o diabo estatelar-se em plena estrada! Mas uma coisa o preocupava: o diabo ficara sabendo que ele estava à espera do Natal, porque lhe tinha dito que o Natal estava à sua espera - ora o diabo percebe tudo ao contrário, e ficara portanto a saber a verdade. Era inevitável que apa­receria, pela calada da noite, e vestido de outra maneira, para não ser conhecido. Viria com toda a certeza. E agora? Agora...

III
Alta noite, o menino Jesus, que se fora deitar a dormir com um olho aberto e outro fechado, ouviu os pais levan­tarem-se, e irem, pé ante pé, para a lareira, onde ele, é claro, antes de deitar-se, pusera a sandália do pé direito. Como se sabe esta sandália é sempre melhor que a outra, e deve preferir-se em tudo: chaminés, pontapés, etc., a menos que se seja canhoto dos pés, o que é muito raro.  
O menino Jesus estava de costas voltadas à lareira, por­que fazia frio, e porque, também, se estivesse de frente, logo se veria que não dormia e espreitava. É evidente que a casa era muito pequena e pobre, e os quartos eram um só, divi­dido em dois, por cortinas muito velhas, que Nossa Senhora se cansava a remendar e o menino Jesus a esburacar. Ora, o menino Jesus, mal os pais se recolheram, sentou-se na cama, que, pela mesma razão de a casa ser pequena, era um col­chão no chão, com pouca roupa, tão pouca, que o menino raras vezes se despia, muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume, mas também o Inverno é um mau costume, que, além de ser preciso para a terra descansar, se repete invariavelmente todos os anos: e o menino Jesus apesar de ter só sete, já muito bem sabia que, quando tinha frio, era mesmo frio o que tinha. Sentou-se, pois, na cama. O lume, na chaminé, apagava-se pouco a pouco; viam-se as faúlhas correndo pela madeira, umas atrás das outras, en­quanto as pontas dos troncos iam ficando brancas. O diabo não tardava aí. Um estalido. O menino Jesus olhou para a porta. Não era nada. Depois sentiu passos na terra batida. Olhou: era um rato. O rato andou de um lado para o outro (e se o rato fosse o diabo disfarçado?), até se convencer que tais pobretões nem na noite de Natal deixavam cair miga­lhas. Passou muito tempo - ao menino Jesus parecia imenso tempo - tanto, que nunca mais acabava de passar. Eis senão quando - ... vinha alguém pela chaminé abaixo. Oh se vinha! Com o lume assim a apagar-se, não se via nada; mas, para quem entrasse pela chaminé, ainda era luz que chegasse. E chegava: apareceram umas sandálias, umas pernas, uma fímbria de túnica vermelha (é o diabo, pensou o menino Jesus), mais túnica vermelha, ainda mais túnica vermelha, até que uma figura ficou de pé, ao lado do fogo, e deu uns passos para dentro de casa. Trazia um saco às costas. Era o diabo! O menino Jesus ficou ... calculem como ele ficou, porque, no fundo, muito lá no fundo, não esperava que o diabo voltasse. E ali estava ele, com saco e tudo. Viu o diabo abaixar-se e pegar na carrocinha, que estava mesmo em cima da sandália. É preciso dizer-se que a carroça não era muito grande, mas também não era muito pequena, e mais caberia a sandália na carroça, do que a carroça na sandália. Não, lá isso não! Nunca tinha um brinquedo senão os que inventava e fazia, e aquele, tão bonito, o diabo vinha buscá-lo! E mesmo que não fosse bonito, não lho dava. Brin­quedos a diabos! Toda a gente sabe que o diabo não brinca e, por isso, faz asneiras! Não, lá isso não! E saltou da cama, correu para a chaminé ... e tirou a carrocinha da mão do diabo, que, já a abrir o saco, nem dera por ele.
- Boa noite! - disse o diabo, com voz maviosa.
- Boa noite ... Por que é que não entrou pela porta? Era só bater, que eu abria - perguntou o menino Jesus, pondo a carroça debaixo do braço.
- Para não acordar ninguém ...
- Eu estava acordado.
E o diabo, muito ingenuamente, como se não fosse ele: - Ai que linda carroça! Quem lha deu?
- Tem alguma coisa com isso?! Que é que o senhor quer?
- Eu só queria brincar com a carroça. Deixa-me brin­car um bocadinho?
- Não tem vergonha de ser tão grande e querer brincar ainda? - (era o que a mãe lhe dizia, quando ele andava pela casa a fazer das suas).
- Eu? Vergonha? - e o diabo ia rir-se, mas tornou a lembrar-se do fiasco do enxofre pelos intervalos do riso. - Então não me deixas brincar?
O menino Jesus dava voltas à cabeça, e não achava maneira de livrar-se dele. Só se fosse ...
- Sempre quer? Mas só um bocadinho.
- Como? Como? - (O diabo todo satisfeito).
- Eu faço de carroceiro e o senhor faz de cavalo.
- Vamos a isso! Vamos a isso! - e o diabo logo de gatas,para ele o atrelar à carroça.
A carroça estava muito bem feita; não lhe faltava nada, até arreios tinha. Foi nessa altura que o menino Jesus, ao reparar nas barbas brancas que o diabo trazia (barbas, aliás, de uma brancura imaculada), viu bem o que lhe convinha fazer. Muita gente julga que o diabo pode esconder tudo o que é e tem, menos os pés de cabra; manifestamente isso não é verdade, como se depreende desta história, em que ele aparece de sandálias, com a perna à vela. Se as pernas eram dele ou emprestadas, o menino Jesus tinha muito mais em que pensar. E pensou e disse:
- Não te posso pôr a cabeçada (corno o diabo fazia de cavalo, tratava-o por tu - não era por ser o diabo), as tuas barbas são tão compridas! E tão bonitas, que se estragam!
E o inimigo, muito convencido, a cofiá-las:
- São bonitas, não são? Bem me custaram a arranjar. O menino Jesus então ficou logo a saber o que queria.
E tornou a dizer: - Não te posso pôr a cabeçada; e, se não ponho, como hás-de puxar a carroça?
O diabo, que não tem paciência nenhuma (e por isso é tão fácil de reparar, quando começa a estorcer-se), o que queria era acabar com aquela paródia, tanto mais que lhe parecia o menino Jesus já ter dado por ele (e só parecia, porque o diabo nunca tem a certeza). E, por isso, propôs: - Mas eu levanto as barbas, e tu passas a cabeçada ...
Assim se fez, e o menino Jesus, quando ele as levantou, viu a barba de chibo, pêra retorcida, que o diabo nunca pode tirar, como se está a ver. As barbas brancas, tão imaculadas, é claro que eram postiças.
Mal o atrelou bem atrelado, o menino Jesus, convencido de que o diabo desapareceria e deixaria a carroça, disse uma palavra secreta que sabia (todos os meninos sabem palavras dessas, só não sabem qual serve). O diabo ficou na mesma. O menino Jesus então disse outra. O diabo, nada. Ia o menino Jesus a dizer a terceira, pergunta o diabo, já abor­recido, corno era de calcular:
- Que raio de brincadeira é esta que nunca mais começa? O menino Jesus puxou-lhe pelas barbas e gritou a ter­ceira palavra, a mais forte de todas ... O diabo deu um estoiro, como os automóveis quando querem arrancar, e saiu pela porta fora, com tanta força, tanta, tanta, tanta, que a atravessaram ele e a carroça, de uma vez - e a porta ficou inteirinha no mesmo sítio.
O menino Jesus, com as barbas postiças na mão, abriu cautelosamente a porta. Não se via um palmo adiante do nariz, mas não se viam também, nem o diabo nem a carroça ... Nisto, as barbas soltaram-se da mão do menino, e começa­ram a subir ao céu, e a crescer, a crescer, a crescer, e, quando chegaram lá acima, já chovia a cântaros. Está-se mesmo a ver que as barbas eram as nuvens que o menino Jesus contara.
O menino voltou para dentro e fechou a porta bem fechada; em casa não se via nada, porque o lume se apagara de todo. O menino Jesus, muito devagarinho, meteu-se na cama. Estava ele a pensar na carroça, ouviu S. José dizer: - Não ouviste um estoiro? E a voz de Nossa Senhora a responder: - Ouvi. Dorme descansado. São coisas do diabo.
Sua mãe sabia! O menino Jesus ainda ficou, se é possível, com maior admiração por sua mãe.

IV
Como a noite de Natal é muitíssimo comprida, a his­tória não acaba aqui; tanto mais que ainda se não ficou a saber a razão de o pai Natal ser pai e ter enormes barbas brancas.
O menino, se, quando se deitara a primeira vez, ficara com um olho aberto outro fechado, agora, sem a sua carroça, não conseguia fechar nenhum deles. E estava nessa aflição ... começou a ouvir barulho dentro da chaminé. Um barulho de nada, pela chaminé abaixo. Era de mais: aquele desca­rado já levara a carroça, e ainda voltava!
O menino Jesus levantou-se, foi para ao pé da chaminé, e pegou num ferro muito grande que lá havia para arrumar as achas. Vinha pela chaminé abaixo uma claridade esqui­sita. E vinham umas sandálias ... e umas pernas ... e uma fímbria vermelha (é ele, pensou o menino Jesus) e mais túnica vermelha e ainda mais túnica vermelha ... até que uma figura ficou, ali mesmo, ao lado das cinzas. O menino Jesus levantou o ferro ... e o homem (parecia um homem) disse: - Assim tu me recebes? Assim te ensinaram a receber o Natal?
Foi então que o menino reparou que ele não tinha bar­bas, nem brancas, nem pretas, ou só assim uma coisa muito rala que nem barba parecia. Não era, portanto, o diabo. Em todo o caso, não largou o ferro.
- Mas tu és verdade? E sempre vens? - (não o tra­tava por tu por ele ser o Natal, mas pela alegria de ele não ser o diabo).
- Eu, em pessoa. E venho, como vês.
- Essa é boa! E trazes-me alguma coisa?
- Nunca trago nada ... Eu troco os brinquedos por outros. E esses é que eu trago comigo.
- Então, este ano, fico sem nada, porque tinha aqui uma carroça e o diabo levou-ma.
- O diabo?!
- Sim. Veio vestido como tu, só trazia barbas brancas, e levou-me a carroça. - E deixaste?
- Que remédio tive! Ele estava atrelado, e não se ia embora ...
- E agora, como há-de ser? Eu trazia uma carroça para trocar.
- Tu não dás brinquedos aos meninos que não têm brinquedos?
- Não posso dar.
- Por quê?
- Porque só troco.
- Por quê?
- Porque não posso dar.
O menino Jesus não perguntou mais; logo viu quais eram as respostas, e que o Natal não tinha outras, pelo menos para dar. Ali estava um, que não dava nada a ninguém. Mas ficar sem carroça não ficava.
- Tu tens a minha carroça.
- Tenho? Aonde?
- Anda por aí, atrás do diabo.
- Lá isso é verdade.
- Então, dá-me a que trazes.
- E a outra?
- A outra, quando encontrares o diabo, dizes que é tua, e pronto .
- E se o não encontro?
- Ora tens tanto tempo! Eu é que não tenho outra carroça!
- Bem ... Parece que me convenceste.
E o Natal - pois era ele - pousou no chão o saco que trazia às costas (como se vê, o patife do diabo até um saco arranjara), e tirou de dentro uma carroça exactamente igual à outra. Mas igual, igual, nem a cabeçada faltava. E deu-lha. O menino ficou - imagina-se - contentíssimo. Tão contente, que se lembrou logo de uma coisa.
- E se o diabo, agora, anda a fingir de ti pelo mundo fora?
- É fácil. Custa um bocado mas é fácil.
- O que é que é fácil? Como te vais arranjar?
O menino Jesus bem via o Natal atrapalhado, sem saber como se havia de arranjar. Teve pena dele, que lhe dera a carroça, e, em troca, deu-lhe uma ideia, que é muito mais de dar do que uma carroça.
- Deixas crescer as barbas brancas. Das duas uma: ou o diabo anda com a barba dele, e toda a gente o conhece; ou põe outras barbas postiças, e basta puxar por elas para se ver se são de verdade.
- Bela ideia, sim senhor, que bela ideia! - Mas depois de pensar um bocado, o Natal acrescentou:
- Não chega. Tenho de ser o Pai Natal.
- Porquê?
- Porque o diabo não pode ser pai.
- Não?
- Não. Os filhos do diabo são sempre filhos de outras pessoas.
- Então passas a ser o Pai Natal e a ter barbas brancas. Palavras não eram ditas, e o Natal logo Pai e com umas barbas quase a chegarem aos pés, tão brancas, tão brancas, que a claridade agora era das barbas.
Depois deste milagre (foi um milagre, evidentemente), o menino Jesus sentiu-se com imenso sono, o sono da noite toda e mais algum. O Pai Natal percebeu, sorriu, ajudou-o a deitar-se... E o menino Jesus nem chegou a ver como ele saiu, porque, apesar da curiosidade, adormeceu logo. Com a carroça debaixo do braço, é claro, não voltasse o diabo... (e é a razão de os meninos dormirem agarrados ao brinquedo de que gostam mais).

V
No dia seguinte, dia de Natal, era feriado, tal qual como hoje. Andava muita gente a passear nos campos, e o menino Jesus andava na estrada, a brincar com a carroça. Claro que olhava, com desconfiança, para todas as carroças que passavam, a ver se alguma delas era igual à sua. Mas nenhuma era. Foi brincando, brincando, e já se esquecia desta história toda, quando viu um homem, lá ao longe, num sítio onde andava menos gente, sentado numa pedra e a fazer riscos no chão, com uma varinha. O menino Jesus teve pena dele, quis avisá-lo e aproximou-se.
Ora, o menino Jesus falava uma língua esquisita - o aramaico - que muitos dos judeus não entendiam, e ainda hoje, segundo parece, não entendem. Mas ele não tinha culpa; era a que lhe ensinaram em pequeno, mal começara a estender os braços... Os meninos ainda se lembram de querer agarrar nas coisas que estão longe? É isso.
Aconteceu, então, que o homem não só não percebeu o que o menino lhe dizia, como se zangou e o enxotou, ameaçando-o com a vara. É claro que o menino Jesus deitou a fugir. Quando já estava suficientemente longe quis ver... E o que viu?
Ao lado do homem, parara uma carroça exactamente igual à sua, puxada por um tipo que já metera conversa com o outro sentado. E parecia que a conversa era engraçada, porque ambos se riam muito. Só da boca do que fazia de cavalo saía um fumozinho branco, que o menino Jesus muito bem conhecia.
Por tudo isto é que o Natal é pai e tem barbas brancas, para se distinguir do outro, que traz brinquedos do inferno, brinquedos que, como os meninos também sabem, são feitos neste mundo, tal qual como os outros brinquedos.
Ora como se vê por esta história, e ao contrário do que até eu próprio julgava quando comecei a escrevê-la, houve, não uma só, mas inúmeras razões, para o Natal ser pai e ter barbas brancas. Para acabar, não me perguntem de quem ele é pai. Não façam perguntas tolas, como as pessoas cres­cidas. Muito em segredo, sempre digo que não sei ao certo, o que sei não posso dizer... e, de resto, talvez os meninos venham a saber mais do que eu.

Jorge de Sena, "Razão de o Pai Natal ter barbas brancas", in Antigas e Novas Andanças do Demónio, 1944

quinta-feira, 28 de julho de 2011

A vida é uma cadeia de acontecimentos e uma estrada sinuosa

(a morte também)

Pequenas infâmias que enformam grandes ignomínias

Entre o abundante material "apreendido" nas aulas e ao longo deste ano lectivo - sobretudo pequenos gadgets mais o menos electrónicos - havia este ano uma revista dita "de humor" que me chamou a atenção, pois achava eu que com o advento da internet e do telemóvel, já ninguém se interessaria por este tipo de publicações, muito populares sim, mas aqui há uns bons anos atrás. Intitula-se "Só rir" e, por diversas razões, é quase um objecto "vintage": datada de fevereiro de 2008, já ia então no terceiro ano de publicação e custava então o módico preço de 2,45€. Desconheço se ainda é publicada e qual o preço actual.

São ao todo 67 páginas de anedotas supostamente engraçadas sobre sexo, mulheres, bêbados, mais bêbados, cornos, mais cornos ainda, maricas, futebol e, claro, alentejanos. Até, imagine-se, anedotas com isto tudo mais ou menos misturado. Contém  ainda  vasta e relevante jnformação  do tipo "Tudo o que sempre quiseram saber sobre peidos" ou "Tudo o que sempre  necessitei saber, aprendi com a minha mãe", sempre intercalado com imagens absolutamente extraordinárias de bom gosto e de inteligência. Como estas, por exemplo:

O título que acompanha a imagem da direita é "Sou um animal de estimação humano!"
O texto conta depois um episódio rocambolesco ocorrido num autocarro e sintetiza a 'comovente' história deste casal inglês que à cultura gótica acrescenta, sempre que se passeia pelas ruas, este toque muito pessoal que se vê na imagem: ela é passeada por ela à trela. Parece-me até que eles se passeiam bastante pelas ruas - há diversos vídeos no Youtube - porque, afinal, o que é bom é para ser bem mostrado e melhor visto. Tudo se conclui com este parágrafo apoteótico: "Comporto-me como um animal e tenho uma vida bastante calma. Não cozinho nem faço limpezas e não vou a lado nenhum sem o Dani", explicou. Tasha defende o seu estilo de vida acrescentando que "não fere ninguém" e que o casal é feliz assim... " Só faltou mesmo dizer que, ao contrário da carochinha, viveu feliz para sempre. Certamente por falta de espaço há detalhes importantes que, com pena minha, ficaram omissos. Comportando-se a jovem de 19 anos como um "animal de estimação" comerá numa gamela colocada no chão os restos do "dono" ou é alimentada a ração? apanha quando faz o que não deve? faz as necessidades na rua enquanto é passeada à trela?

É mesmo "Só rir", mas o certo é que ainda estou em choque com a descoberta. Que belas leituras e melhores valores andam os meus jovens alunos de 14 e 15 anos a absorver... Sorte a deles que eu só agora me apercebi disto e assim se livraram do sermão.

Além de poder certamente aumentar a já vasta lista de parafilias que existem por aí, há aqui mais coisas a acrescentar. Embora não seja de excluir que esta bizarra exibição pública de vícios privados possa muito bem ser apenas mais uma forma de alcançar os tais "15 minutos de fama", o certo é que é bem triste ver como esta juventude "aisée" faz muitas vezes apelo ao pior que a humanidade tem para fazer a sua inscrição na sociedade e no mundo, ainda por cima em nome da liberdade, do direito à diferença e à não-discriminação.

É por estas e ainda por outras razões que, enquanto professora, me sinto triste por perceber que as esperanças de conseguir, através da educação e da formação, umas " gerações novas" (novas sobretudo em termos de mentalidade), é afinal uma utopia. Como mulher fico muito, mesmo muito zangada com as minhas companheiras de género por aceitarem submeter-se a coisas como esta. Afinal, chamamos atrasadas às desgraçadas que são forçadas a usar burka e depois prestamo-nos a ser o "animal de estimação" do namorado? 'Tá mas é tudo doido!

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O poder da música (mesmo sem palavras)

O poder das palavras

Psicografia do poema


E. M. de Melo e Castro, Retratos Metamíticos, s.d.







































Todos os poemas são visuais
porque são para ser lidos
com os olhos que vêem
por fora as letras e os espaços
mas não há nada de novo
em tudo o que está escrito
é só o alfabeto repetido
por ordens diferentes
letras palavras formas
tão ocas como as nozes.
Os olhos é que vêem nas letras
e nas suas combinações
fantásticas referências
vozes sobretudo da ausência
que é a imagem cheia
que a escrita inflama
até ao fogo dos sentidos
e que os escritos reclamam
para se chamarem o que são
ilusões fechadas para
os olhos abertos verem.

E. M. de Melo e Castro, in Máquinas de Trovarpoética e tecnologia,
Intensidez, 2008

terça-feira, 26 de julho de 2011

"Carta ao futuro" sobre os dias de agora

William M. Davis (1829-1920), A Canvas Back, s.d.
Meu amigo:

Escrevo-te para daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos... É quase certo que esta carta te não chegará às mãos ou que, chegando, a não lerás. Pouco importa. Escrevo pelo prazer de comunicar. (...)

Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto contra os outros como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa máscara que é de comédia ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os olhos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. (...)

Quem nos define a vida e a pessoa que não somos? A vida e a pessoa que estamos sendo é única e sem margens. (...)  (...) A evidência que nos resiste é a de que a vida é um valor, porque é a própria essência da terra toda e dos céus, e a de que é o sabê-lo que salva essa vida para a vida: é ao nosso olhar humano que existem as pedras, os astros, os cães... A nossa pequena glória é responder à grandeza do que foi grande e morreu com o pequeno valor surpreendido entre os escombros. (...) A vida, o seu preço e grandeza, nós os reconhecemos nos limites que nos couberam. (...)
Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traição que eu faltasse à sua entrevista - essa entrevista combinada desde toda a eternidade. Por isso eu a procuro à minha vida, em toda a parte onde sei que ela me espera com uma palavra a dizer. (...)


Évora, Dezembro de 1957

Vergílio Ferreira, Carta ao Futuro, Quetzal, 2010

Todo este céu de pássaros e tons

Endurance

para te desamar preciso desarmar o coração
fazê-lo em peças até que a raiva escorra pelos poros
peá-lo para que não possa prosseguir caminho
afogá-lo na dor até ficar dormente

para te desamar preciso desarmar a vontade
cerrar os maxilares até asfixiar as lembranças
secar as lágrimas até que a boca
saiba a terra queimada

para te desamar preciso de me desarmar
até tudo o que antes fazia sentido não o fazer mais
até deixar de saber quem era então ou o que fazia ali

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Andorinha, se voaras mais ao perto...

I (too) will keep Broken Things


Broken things

...
I will keep
Broken
things:
In my house
There
Remains
An
Honored
Shelf
On which
I will
Keep
Broken
Things.

Their beauty
Is
They
Need
Not
Ever
Be
“fixed.”

I will keep
Your
Wild
Free
Laughter
Though
It is now
Missing
Its
Reassuring
And
Graceful
Hinge.

I will keep
Broken
Things:

Thank you
So much

I will keep
Broken
Things.

I will keep
You:

Pilgrim
Of
Sorrow.

I will keep
Myself.

Alice Walker (ver aqui)

Proverbiais e aforísticas

Há por aí quem prefira fazer a aproximação à máxima "amai-vos uns aos outros" pela via do "comei-vos uns aos outros" (e não, não é de alimentos que falo).

Nestes casos, pouco mais valerá a pena dizer para além de desejar que nunca lhes falte bom e variado material para ingerir e que seja leve a sua posterior digestão.

domingo, 24 de julho de 2011

Life is a losing game

Extremos que geram extremistas

Sociedades altamente individualistas em que cada um vive isolado na sua própria bolha pessoal, cada vez mais extremadas do ponto de vista social e económico, decadentes do ponto de vista civilizacional, em crise de valores, mais ainda do que em crise económica e financeira, têm certamente maiores probabilidade de gerar figuras como a de Anders Breivik. A frase que registou no Twitter - “Uma pessoa com convicções equivale à força de 100 mil pessoas que só têm interesses” - tornou-se ontem uma amarga realidade mas é, sobretudo, de uma força e de uma verdade arrepiantes. Nela ecoa a frase pronunciada por Timothy McVeigh a propósito do atentado de Oklahoma: “O importante é que uma pessoa pode fazer a diferença” (para pior, sobretudo). Não só, mas também por isso, há um claro paralelismo entre os dois atentados.

Mas a tal frase revela ainda como as sociedades ditas desenvolvidas, altamente organizadas e estruturadas, estão, afinal, tão vulneráveis à violência sem sentido como quaisquer outras. Só que esta violência, gerada no silêncio e no anonimato das próprias nações, dói mais ainda. É mais fácil lidar com ela quando há um bode expiatório exterior para onde canalizar a raiva e a revolta das pessoas. Porém, como as coisas estão, infelizmente, o mais provável é que seja só uma questão de tempo até aparecer o próximo extremista interno aí num outro país qualquer. Até no nosso.

Mas para que precisamos nós de um Acordo Ortográfico

quando temos por cá falantes com este nível de criatividade linguística?

Zona Industrial de Évora, 24-7-2011
Quando encontro uma pérola destas fico sempre a pensar que o dito Acordo (dis)Ortográfico mais não é do que uma forma disfarçada de censura. Se querem renovar a ortografia ponham os olhos aqui, senhores! Aliás, nem sei por que razão temos de importar um Acordo Ortográfico tão mal amanhado quando temos material nacional desta qualidade! E, ainda por cima, genuíno.

O Delito de Opinião tem vindo a publicar uma bela série de "Cinquenta bordoadas na língua de Camões" que tenho seguido com toda a atenção, mas eles que me desculpem, esta vale bem por duas.

sábado, 23 de julho de 2011

Viagem musical

Desvios e desvarios

Suponho que é uma inevitabilidade: todos os governos se vêem, mais cedo ou mais tarde, a braços com um “desvio colossal”, feito de equívocos muito bem explorados pelos media. Neste caso em particular a partir da (des)informação claramente vinda do interior do próprio PSD. E sobre isto eu diria que quem tem “amigos” assim não precisa de inimigos.

As imagens entretanto divulgadas deixam claro que, afinal, a expressão “desvio colossal” não foi pronunciada (pode confirmar-se aqui). O que não está ainda claro é como devemos então designar os bem reais 2 mil milhões de euros em falta (a sua existência ainda não foi negada por ninguém até agora). É que, não podendo já chamar-lhe “desvio”, só nos resta uma hipótese: desvario. E que colossal desvario! Mais um que teremos de pagar, queiramos ou não.

Sobre os desvarios do governo anterior já estamos bem elucidados. Sobre os do actual governo ainda é cedo para falar, mas talvez seja sensato não cuspirem muito para o ar, pois o mais provável é que lhes acerte em cheio na testa.

A Árvore da Vida

tem raízes no Mal e alimenta-se da pequenez mesquinha das famílias. Não há redenção possível. Resta-nos aguentar o confronto com as avassaladoras memórias até perceber que, no fim e até ao fim, elas são tudo o que nos resta.

E há ainda o Deus criador, mas ausente. Ausente sobretudo quando (nos) faz mais falta. Deus implacável, portanto. A certa altura, a mãe (Jessica Chastain) murmura a pergunta que sintetiza tudo: "Que somos nós para Ti?" 

No fundo já o sabia, mesmo antes de ver o filme de Terrence Malick. Perturbador, ainda assim. E belíssimo também.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

A música na árvore da vida

A emocionante banda sonora de Zbigniew Preisner já conheço. O polémico filme de Terrence Mallick vou vê-lo hoje no grande écran (que é onde os filmes devem ser vistos).

"E lembro, por diferença, a semelhança que há"


Eliseu d'Angelo Visconti, Estendendo Roupa, c. 1940






















A roupa estendida ao vento
Parece gente a viver
Move-se em gestos sem tento
Perante o meu pensamento
Que não sabe senão ver.

Mas o que fazem no mundo
Os homens nos gestos seus
Nada é mais firme ou profundo
Que este ar nas roupas ao fundo
Dos grandes quintais de Deus.

E eu no meu solene estudo
De como as cousas não são,
No qual compreendo tudo,
Vejo o branco agitar mudo
Da roupa sem coração.

E lembro, por diferença,
A semelhança que há
Entre a agitação intensa
Da roupa livre e suspensa
E aquela em que o homem está.

Ao sol e ao vento da vida
Livre e preso sob os céus
Oscila, coisa movida,
Mas é só roupa estendida
Nos grandes quintais de Deus.

7-12-1932

Fernando Pessoa, In Poemas de Fernando Pessoa,
Visão/JL, 2006

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O mundo é pequeno e o global ainda é mais

Descobri a música Fito Paez em meados da década de 90. Até ao passado sábado, nunca tinha conhecido ninguém por cá que conhecesse a sua música. Mas o mundo global é bem pequeno: não é que o João Gobern passou umas das músicas dele no Hotel Babilónia, cantada em parceria com a extraordinária Mercedes Sosa? Eu própria não o ouvia há muitos anos (só tenho um cd) e esta semana apeteceu-me voltar a ouvi-lo. O que me vale é que, para estes "apetites", o Youtube é uma autêntica lâmpada de aladino.  

Aprender a fazer nada com a gata Nika

Já tinha ouvido falar de "nadismo" e decidi ir à procura de informação. Descobri que a expressão "fazer nada" significa, afinal, fazer alguma coisa de bastante terapêutico: parar, com dia e hora marcada, para ficar simplesmente algum tempo a fazer NADA, para não adoecer de stress e de exaustão física e psicológica. Algo que, na sua pior forma, toma o nome de "burnout", uma das doenças que mais afecta os professores e a que ninguém está imune, seja qual for a sua profissão. Nem sequer eu, que tenho consciência disso.

Embora tenha uma base budista, o nadismo não é uma prática de meditação. Ele é "um fim em si mesmo, embora também possa levar a um estado meditativo", conforme explica Marcelo Bohrer, o designer brasileiro que fundou o "Clube de Nadismo" em 2006, depois de ter lutado contra uma severa síndrome de Burnout que o obrigou até a uma passagem pelo hospital.

No sítio do oficial do clube - http://www.clubedenadismo.com.br/ - pode ler-se "Quem está buscando mais qualidade de vida sabe que a correria do dia-a-dia é o principal fator de stress. Quando não temos mais tempo pra nada, quando estamos sempre ocupados e com pressa sentimos que é impossível ficar sem fazer nada mesmo por um minuto. Por isso é tão difícil parar, desligar, desconectar... É como se fosse proibido! Ficar sem fazer nada parece perder de tempo, parece ser algo inútil e ao mesmo tempo nos gera ansiedade e sentimento de culpa.
Viver nesse ritmo é muito ruim e acabamos tristes e doentes. O nadismo é essa mudança de consciência. É se dar conta de que é importante parar. É perceber que as pausas são vitais para a nossa saúde e que todos devem ter o direito de ficar sem fazer nada de vez em quando.
Isso precisa mudar!
O Clube de Nadismo foi criado com o objetivo de divulgar essa nova proposta e de criar momentos especiais que oferecem a oportunidade rara e preciosa de parar de verdade e fazer absolutamente nada."

O movimento nadista tem já no Brasil um dia nacional - 13 de Dezembro - que é comemorado em espaços públicos por grupos de pessoas que ficam deitadas sobre a relva durante algum tempo, sem fazer nada.

Contudo, Bohrer faz questão de sublinhar que o nadismo nada tem que ver com simples preguiça: "Preguiça não é fazer nada. Preguiça é a não vontade de fazer algo, o que pode resultar, às vezes, em fazer nada. (...) Para praticar nadismo não é preciso largar o seu trabalho ou os seus compromissos, mas sim criar espaços vazios no meio e entre eles." É por isso que o logótipo do clube é um cubo branco e vazio. Também uma espécie de tenda em forma de cubo, branca e completamente vazia, é muitas vezes usada nos eventos oficiais, promovidos sobretudo em parques e outros espaços aprazíveis nas grandes cidades onde o mais difícil é, justamente, parar, de forma completa e sem nenhum objectivo em mente.

Claro que o conceito de nadismo tem, nos dias que vivemos, muito de utópico, para além de ser difícil explicá-lo por palavras que todos possam entender, até porque os equívocos são muito frequentes. Segundo Marcelo Bohrer "As pessoas confundem muito parar com esperar, distrair-se, descansar, com uma prática meditativa, etc." e acrescenta que é um "assunto um tanto controverso, pois o nadismo é cem por cento fazer nada": "Ver TV, fazer palavras cruzadas e dormir não contam. É importante não confundir distracção, lazer, esporte ou qualquer coisa que se faça com o nadismo, que é o não fazer coisa alguma."  

Nadear é, basicamente, ficar deitado, imóvel, a contemplar o céu e as nuvens, por exemplo (tal como mostra a imagem na página de entrada do sítio). Embora seja difícil de explicar por palavras, e de entender, eu sei exactamente o que é o nadismo, embora não por experiência própria, e sim por observar os gatos. Eles são ancestrais cultores desta ideia, e quem sabe até se não será essa a origem da sabedoria que possuem e do sentimento de tranquilidade que despertam em nós (pelo menos nos que gostam de gatos, como é o meu caso). Passo a exemplificar com esta imagem da gata Nika a fazer nadismo num sítio muito especial, escolhido por ela para aí fazer isso mesmo: NADA (nem sequer está a dormir, como é fácil de verificar).

Estremoz, 1993
A gata Nika pertencia a uma colega da escola que, na altura, lutava contra um cancro e era forçada a passar ums temporadas em Lisboa para fazer tratamentos. Como morava na mesma rua em que eu e uma outra colega partilhávamos uma espécie de "casa de função", deixava sempre a bichana ao nosso cuidado. No verão, a casa era muito quente e a gata passava horas deitada no bidé, local que, como é fácil de perceber, para além de ergonómico, era bastante mais fresco que o sofá, por exemplo. Era então no bidé que a Nika dormia as suas alongadas sestas, mas também lá ficava muitas horas assim, acordada, quietinha e silenciosa, sem fazer nada. Ou melhor, a praticar nadismo.

Estou seriamente a considerar a hipótese de me inscrever no Clube de Nadismo. Estou até a pensar nadear bastante durante as férias que agora se avizinham, a bem da minha sanidade mental e do novo ano lectivo que me espera logo no início de setembro. Estou também a pensar em enviar ao Marcelo Bohrer esta imagem da gata Nika, a qual bem poderia ser acrescentada ao vídeo de divulgação/explicação do conceito, já que o exemplifica na perfeição. E claro, ganhei mais uma razão para admirar mais ainda os gatos, esses sábios e fascinantes seres que tanta alegria dão às nossas vidas.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Pelos vistos, a moda dos "dress codes" pegou

Mesmo a braços com a crise económica e o aperto financeiro ainda sem fim à vista, o novo governo da nação ainda tem tempo para pensar no dress code dos funcionários do Ministério da Agricultura: sem gravata para, supostamente, poupar no ar condicionado. Só ainda não percebi como é que vai ser no inverno para poupar no aquecimento, mas talvez uma mantinha para as pernas ou algo assim... E, claro, os secretários de estado apressaram-se a dar o exemplo, já que a Sra. Ministra está, naturalmente, fora desta questão de indumentária (ver aqui).

Talvez aproveitando a onda, também a Universidade Católica sugeriu agora aos seus alunos  que se vistam com "a dignidade indispensável a uma universidade e a uma instituição da Igreja", ou seja, com menos partes corporais ao léu. E apela até a que os infractores sejam chamados à atenção pelos seus pares: "todos os responsáveis pela salvaguarda do ambiente e da imagem da universidade nas suas instalações e no espaço Campus universitário, devem chamar a atenção dos que se apresentarem de maneira imprópria". Só não percebi ainda muito bem é a relação existente entre a maior ou menor informalidade do vestuário e a qualidade das aprendizagens dos estudantes. Mas alguma deve existir, nem que seja só nas cabeças pensantes do Conselho Académico que emitiu a recomendação...

Assim sendo, podemos concluir que se alguma aluna se apresentar na universidade com um véu de renda sobre os cabelos, como  faziam as senhoras quando iam à missa, ou como fazem ainda hoje quando estão perante o Papa, será apontada como um bom exemplo de recato, muito adequado, aliás, a uma instituição católica?

Então e se uma aluna muçulmana se apresentar com um véu integral, ou mesmo uma burka, numa qualquer universidade portuguesa, dizendo que o faz porque a sua religião assim o determina?  Ou um aluno sique de turbante e longas barbas? Ou uma aluna de sari colorido? Ou um hare krishna, envolto apenas numa tira de pano branco?  E já agora, se algum funcionário do ministério da agricultura gostar de usar gravata? Qual vai ser o dress code a aplicar nestas situações?

Num país socialmente estratificado - os cada vez mais pobres e os cada vez mais ricos -, tudo isto pode até ser apenas ridículo e /ou mesquinho, mas também pode ser o primeiro sinal de intolerância característica de uma sociedade em grande aperto financeiro. É pois, a todos nós, cidadãos, que cabe a responsabilidade de não permitir que tudo isto seja outra coisa que não apenas ridículo e/ou mesquinho.

E deixo já aqui o meu contributo pessoal: que me dizem então, senhoras e senhores, deste "dress code"? Mais fresquinho, logo ecológico e económico, não há. Qual é o ministério que vai aproveitar a bela da ideia? LOL!

terça-feira, 19 de julho de 2011

Navio de espelhos

Um homem que não pensa o pior possível

sobre as mulheres, que revela conhecê-las bem e que, ainda por cima, escreve isso mesmo no jornal é coisa rara por cá. Deve, também por isso, ser saudado. Pela parte que me cabe nesse retrato feminino (onde me reconheço e muito): Obrigada, Rui Zink!


In Metro, 8/03/2010


segunda-feira, 18 de julho de 2011

Uma espécie de epifania

O sucesso de valter hugo mãe na edição 2011 da FLIP tem tido um tal destaque na imprensa nacional que me decidi a procurar na net o tão falado vídeo (aqui). É uma história simples da adolescência que conta, na primeira pessoa e não sem uma certa ironia, o fascínio nacional por uma realidade televisiva mais avançada - a das telenovelas dos anos 80 - e a descoberta dos outros e de si mesmo, através da novidade e do fascínio de uma cultura diferente. O mais engraçado é que o escritor, obviamente nervoso, ou talvez apenas emocionado por estar ali, se atrapalha, perdendo-se na leitura das frases e, a certa altura, parece mesmo um dos meus alunos de 9º ano a ler. Uma delícia.

É uma singela declaração de amor ao Brasil, o qual retribuiu calorosa e generosamente o cumprimento transformando-o no momento epifânico do Festival. O jornal "O Globo" chamou-lhe até o "muso" da FLIP. Uma saudável troca de piropos, pouco comum nos dias que vivemos, coincidente com o início da minha leitura de "o remorso de baltazar serapião". E, para começar, logo na contracapa, um outro elogio, este feito por Saramago, à obra que foi também vencedora do prémio literário homónimo: "Este livro é um tsunami, não no sentido destrutivo, mas no da força. Foi a primeira imagem que me veio à cabeça." Elogios não faltam a valter hugo mãe e que ele ainda se esforce por fazê-los é prova de uma humildade já pouco habitual.

Agora que fui à Índia e voltei - demorada e acidentada viagem esta - vamos ver o que sai desta história que se anuncia "de família" e "de viagem" também.