sábado, 30 de janeiro de 2010

A conta do tempo

E se, um dia, alguém me pedir conta do tempo que passo por aqui a escrever, a ver, a ouvir ou, sobretudo, a procurar? Que poderei eu responder? Talvez a dificuldade maior nem seja o que dizer. O problema está mais no como começar. Por isso, pensei que um pequeno passeio pelas contas do tempo que outros já fizeram me pudesse avivar as ideias. E os clássicos parecem-me ser a melhor forma de iniciar esta viagem. Encontrei logo este soneto de Camões:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

São palavras que exprimem uma dor existencial profunda e sem esperança, nas quais o poeta distingue “o tempo natural, (…) do tempo humano irreversível, instável, que muda as coisas sem uma lei ou uma razão, apenas com um sentido: para pior. Um tempo «errado». A reflexão sobre o tempo resulta numa análise imbuída de cepticismo sobre a consistência do bem passado. (...) Duvida-se de que alguma vez ele tenha existido e não seja mais do que um efeito de contraste perante a infelicidade presente, uma ilusão da memória que inventaria uma felicidade passada que não existiu. Ou, se existiu, serviu apenas para «semente» de mal.” (Maria Vitalina Leal de Matos, in Introdução à poesia de Luís de Camões)

Dou então um salto ao século vinte para ouvir “Avec le temps” de Leo Ferré. Para além da dor e da solidão, a pungente voz de Ferré fala de desamparo e de perda. É quase como um eco musicado das palavras de Camões.


Ora, dar conta de tempos assim, para além de doloroso, é para mim quase impossível, pois quando acabasse de escrever já tudo estaria mudado e as palavras não fariam sentido nessa nova realidade. Seria preciso recomeçar. Só que não disponho de muito tempo, e muito menos tenho o poderoso engenho lírico de Camões ou a força vocal de Ferré para me poder permitir o luxo da permanente (re)criação de tudo até encontrar «um tempo certo» para mim. Decidi, assim, avançar na minha busca.

Novo flashback até ao século dezassete e aos seus elaborados jogos conceptuais e linguísticos, muito centrados nos dilemas da existência. Foi lá que encontrei este soneto bem curioso, de autor anónimo:

Deus me pede do tempo estreita conta!
É preciso dar conta a Deus do tempo;
mas quem gastou, sem conta, tanto tempo
como dará sem tempo tanta conta?

Para fazer a tempo a minha conta
Dado me foi, por conta, muito tempo:
mas não cuidei na conta e foi-se o tempo...
Eis-me agora sem tempo, eis-me sem conta!

Ó vós que tendes tempo sem ter conta,
não o gasteis sem conta em passatempo,
cuidai, enquanto é tempo, em terdes conta.

Pois, se quem isto conta do seu tempo,
houvesse feito a tempo, apreço e conta,
não chorava sem conta o não ter tempo.

Aqui está em causa a consciência amarga de um tempo desbaratado em vão e do qual, depois, sentimos falta para realizar outras coisas que, percebemo-lo demasiado tarde, são as mais importantes. Embora tenha ficado encantada com o artifício engenhoso desta resposta, e considere que mais cedo ou mais tarde todos passamos um pouco por aqui, considerei que este soneto ainda não se enquadrava totalmente nas minhas necessidades pessoais, até porque, de amarguras, já bastam as que me atormentam o espírito.

Foi então que me recordei de uma antiga lengalenga infantil: O vento perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao vento que não tem tempo para dizer ao vento que o tempo do tempo é o tempo que o tempo tem.

Este é daqueles enunciados que responde, mas não diz nada. Para algumas pessoas ou em algumas situações pode até ser o mais conveniente. O tempo que o interlocutor leva a tentar digerir o que escutou, é mais do que suficiente para permitir a fuga para um tema menos polémico ou comprometedor das nossas pessoas. Resolvi, por isso, guardá-la na manga.

Foi por acaso, ao ler o jornal, que encontrei a resposta que mais me convém: O tempo que gostas de perder não é tempo perdido. Quem a disse foi Bertrand Russell e quem sou eu para contestar a sua afirmação? Bem pelo contrário, apropriei-me logo dela porque serve muito bem os propósitos desta minha demanda e tem ainda uma outra vantagem: com ela posso neutralizar algumas vozes que, eventualmente, venham a inquietar-se com o tempo dispendido nas minhas andanças blogosféricas, nomeadamente, a da minha própria consciência (que, ainda por cima, é chata como tudo).

Esta perspectiva inovadora e optimista de que «não é tempo perdido, desde que se goste» faz-me sentir tão leve que só posso acompanhar Gilbert Bécaud a cantar “Et maintenant que vais-je faire de tout ce temps que sera ma vie?”, e ficar bem com isso.