terça-feira, 31 de agosto de 2010

A poesia é uma moral

“Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito da verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.

E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética.”

Excerto das palavras ditas por Sophia de Mello Breyner Andresen em 11/7/1964, aquando da atribuição do Grande Prémio de Poesia ao “Livro Sexto”.

(…)
Os ricos nunca perdem a jogada
Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam os erros dos outros
Administram os erros dos outros
São hábeis e sábios
Têm uma longa experiência do poder
E quando não podem usar a própria força
Usam a fraqueza dos outros
Apostam na fraqueza dos outros
E ganham

Tecem uma grande rede de estratagemas
Uma grande armadilha invisível
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um toiro na arena
(...)
Sophia de Mello Breyner Andresen, «Os Gracos»,
Acto I, Cena II, 1968 (excerto), in Ilhas

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Spoken word...

...ou a poesia musical de Ursula Rucker.

Des-encontros

Às vezes a maré do acaso traz-nos encontros – pessoas, situações, conversas, descobertas – que preenchem as fissuras do tédio quotidiano. Mas de vez em quando também arrasta consigo des-encontros que despertam um sinuoso mal-estar, um insidioso prenúncio de ameaça a tudo o que somos, pensamos ou queremos. Como se alguma coisa  em nós pressentisse a presença do Mal (seja lá isso o que for) ali mesmo à nossa frente.

Aconteceu-me há dias um des-encontro assim. E a verdade é que ainda não recuperei da aflição.

domingo, 29 de agosto de 2010

Mudar não só é preciso...

... como também é bom (sobretudo quando se muda para melhor, claro!)

Comparações inevitáveis

Em meados de Agosto fui ao Festival de Ópera de Óbidos ver La Bohème com a Orquestra do Norte, dirigida pelo Maestro Ferreira Lobo, com lotação esgotada, à semelhança de todos os espectáculos do festival. Chegámos ao fim da tarde, com tempo cinzento, húmido e estranhamente fresco para nós que tínhamos deixado para trás uma temperatura de 40º. Estacionámos facilmente o carro num parque mesmo junto à entrada da vila e, logo ali, diversos vendedores de rua coloriam o ambiente, em bancas devidamente preparadas para eles, oferecendo guloseimas, frutos e licores aos visitantes. Percorremos então as ruas limpas, floridas e acolhedoras à procura de um sítio para jantar. Deparámos com uma grande e variada oferta de restaurantes, bares, cafés, pastelarias, lojas várias de artesanato e produtos locais. Escolhido o local, foi com agrado que verificámos que os empregados eram todos jovens, simpáticos e muito profissionais.

Após o jantar, e para ocupar tempo até ao início do espectáculo, fomos beber uma ginjinha ali mesmo em plena rua. Mais uma vez nos atendeu uma simpática jovem que achou por bem alertar-nos para o frio que se fazia sentir já na cerca do castelo onde iria decorrer o espectáculo, o qual se agravaria com o avançar da noite. E, com efeito, passavam já nesta altura pessoas carregadas com mantas e sobretudos para enfrentar a neblina húmida que rodeava a vila e que parecia anunciar chuva. Era perto das vinte e uma horas e todo, mas mesmo todo, o comércio estava aberto. Perguntámos à jovem se, no fim do espectáculo, lá pela meia-noite seria possível tomar qualquer coisa quente, ou mais uma ginjinha. Respondeu-nos que teríamos muito por onde escolher.

Seguimos para o recinto do espectáculo, cuidadosamente arranjado, casas de banho limpas, posto de venda de mantas (a 20 euros cada uma) que praticamente esgotaram tal era o frio que se fazia sentir em pleno Agosto. De casacos vestidos, enrolados numa manta de lã que levámos (lição aprendida na edição do ano passado), preparámo-nos para assistir ao espectáculo. Fomos informados de que o cantor Carlos Guilherme esta com faringite adquirida na noite anterior durante o ensaio geral e que, por esse motivo a sua voz não tinha a potência e clareza habituais. No intervalo fomos brindados pela organização com flûtes de espumante e bombons de chocolate, gesto simpático que era também já um piscar de olhos ao outro festival emblemático da vila: o do chocolate. Enquanto assistia ao espectáculo, enregelada até aos ossos, não me pude impedir de pensar o quanto tudo aquilo também seria maravilhoso numa cidade como Évora, no cenário do Templo Romano, por uma destas nossas noites de verão, tão amenas e quentes que nem apetece ir para casa dormir...

Terminado a ópera decidimos ir beber um chá quente para contrariar o frio que nos repassava o corpo e verificámos com agrado que a informação dada anteriormente estava correcta: passava já da meia-noite mas pastelarias, cafés e bares estavam abertos para quem quisesse ou precisasse de beber ou de comer. Tão diferente daquilo que acontece por cá.

Acho que a vila de Óbidos soube encontrar nisto dos festivais um nicho muito próprio e distinto de tudo o que se faz por aí - daí o grande sucesso de todos eles -, mas essa sucesso também se deve ao facto de oferecer condições adequadas para receber quem a visita, dentro e fora das datas festivalescas que tanta gente chamam à vila.

Bem diferente daquilo que me aconteceu aqui em Évora, nem sequer à noite, mas numa destas banais tardes de sábado(!?) quando decidi ir comprar bolos de arroz para a minha tia octogenária e desisti ao dar com a sexta pastelaria fechada. Acabei por comprá-los na padaria do Modelo. Foi então que me lembrei que estamos em Agosto, certamente o mais forte de todos em termos de turismo. Como é que isto é possível numa cidade que (sobre)vive justamente disso mesmo. É também por isso que, quando ouço as queixas de que o comércio tradicional está a ser posto em causa pelas grandes superfícies confesso que, às vezes, fico surpreendida.

E se um grande evento como o Festival de Ópera de Óbidos se realizasse por aqui? Onde jantaria tanta gente atempadamente antes do espectáculo? Onde poderiam tomar uma bebida ou comer alguma coisa após esse mesmo espectáculo? Provavelmente só nas roulottes junto à Porta de Avis... e vá lá, vá lá...

sábado, 28 de agosto de 2010

Uma naifada de ar fresco na música portugusa

A poesia é para comer

Em A Defesa do Poeta Natália Correia vociferava “Ó subalimentados do sonho! A poesia é para comer!” Mas o que fazer nestes dias que vivemos a tanto subalimentado da alegria e, sobretudo, da esperança?
Haja pois poesia para alimentar tanta alma necessitada! 
Haja mais coragem para ler poesia e perceber que ela também serve para vociferar contra a cor pardacenta dos dias!
Haja mais poetas com coragem de  ser "uma avaria cantante/ na maquineta dos felizes"!

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem 
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Um festival de festivais

O verão é tempo de calor, de férias e, cada vez mais, de festivais de música. Estes têm-se mesmo multiplicado a cada ano que passa e temos agora festivais de todo o tipo e para todos os gostos musicais: Sudoeste, Rock in Rio, Super Bock Super Rock, Delta Tejo, Andanças, FMM de Sines, Paredes de Coura, Festival Gótico, Boom, Noites Ritual, Festival de Ópera de Óbidos, e tantos outros. Esta oferta tão diversificada e numerosa tem contribuído não apenas para formar novos públicos, como para apurar as preferências do público já conhecedor.

Por outro lado, o grande impacto, a notoriedade mediática e as dezenas de milhares de pessoas que alguns deles atraem (Sudoeste ou Rock in Rio, por exemplo) generalizaram de algum modo a ideia de que são uma forma de fazer muito dinheiro, o que, está bom de ver, não tem de coincidir forçosamente com a ideia de que se trata de dinheiro fácil. É que a logística envolvida na realização de um evento como este é complexa, desgastante e exigente, sendo que tudo se joga na antecipação (para a contratação das bandas e artistas, por exemplo), na conquista de patrocinadores generosos, na boa e atempada divulgação, na escolha do melhor local, na planificação adequada do recinto e de tudo aquilo que, estando à margem da música em si (alojamento, transportes, alimentação, higiene, merchandising, actividades lúdicas, etc.) não deixa, contudo, de ser decisivo para o maior ou menor sucesso destes festivais, sendo este, aliás, condição indispensável para assegurar a sua continuidade futura.

Não admira também que cada vez mais as câmaras municipais vejam neles uma espécie de 'receita de sucesso' a qual, aplicada localmente em formato mais reduzido e simplificado, lhes permitiria obter diversos benefícios: distrair os putativos eleitores das suas preocupações quotidianas, poupando-lhes o dinheiro de uma deslocação para outras paragens, para os convidar a gastá-lo localmente, nos comes e bebes disponíveis. E, com sorte, atrair ainda algum público das redondezas para 'abrilhantar' o evento e justificar a sua repetição no ano seguinte.Tudo isto, se possível, com um investimento financeiro não demasiado exigente. Por isso recorrem a bandas que fazem agora carreira à sombra de sucessos passados e que servem de chamariz, à mistura com uma ou duas bandas/artistas nacionais residentes nos tops, para dar um ar mais actual à coisa.

Só que não basta pendurar cartazes às centenas um pouco por toda a parte, com dois ou três nomes sonantes, a informar onde e quando são os espectáculos - tudo submetido à designação de “festival” - para que a coisa funcione de acordo com as expectativas. Sobretudo agora que tantos e tantos municípios, de norte a sul do país, vêem neles uma forma de mostrar trabalho e/ou dinamismo sem ter de despender, de facto, muito esforço. É que as receitas funcionam, mas só enquanto são novidade. Depois tornam-se fastidiosas. E aí, ou se muda de receita ou se enfrenta o fracasso, pois quem vê no sítio Y ou no sítio X, o mesmo que no sítio Z, às tantas farta-se. E como não falta oferta – há mesmo fins de semana em que se realizam simultaneamente dois ou três grandes festivais – está bom de ver o que acontece a estas tentativas desastradas de “fazer também o nosso festivalzinho de verão”...

Évora tentou fazer este ano o seu primeiro e supostamente 'grande' festival de verão. Recorreu para isso a uma receita que já colheu noutras paragens (alentejanas e não só) os frutos que havia para apanhar. Poupou dinheiro no grafismo do cartaz e arranjou uma espécie de recinto que, assim à primeira mais se assemelhava a um estaleiro. Tudo isto num fim de semana em que as alternativas de qualidade não faltavam, ainda por cima aqui bem perto (Sines). Como cabeça de cartaz uma banda cujo sucesso nos anos oitenta não lhe garante propriamente um lugar de destaque na história da música pop e artistas nacionais para preencher o resto do tempo. Tudo assim pela bitola mais baixa do esforço e do empenho. O resultado é de todos conhecido e suficientemente comentado aí pela blogosfera local, mas não é de estranhar: é que o público, mais (in)formado e com tão diversificada oferta disponível, também já não cai assim tanto em certas cantigas. Resta saber se haverá alguém com coragem de assumir os encargos de uma segunda edição nos mesmos moldes, até porque os custos, embora possam não ser muito elevados, quando comparados com os de outros festivais, terão em princípio que ser pagos por alguém, caso o público falhe.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A magia de um violino inquieto e doce ao mesmo tempo


ou a música de Cabo Verde no seu melhor

A interpenetração das artes

Em 1972, Nuno Júdice, ao apresentar o seu primeiro livro de poemas, definia assim a própria poesia: “Eu invento uma poesia que as máquinas poderiam fazer. Baseio-me no princípio de que o sentimento é uma forma gasta de composição Cada uma das minhas palavras é um processo formal. Nada é gratuito ou descurado e eu próprio, ao incluir-me por vontade expressa no poema, me desumanizo e reencarno no rito purificador de emergência lógica. (...)
O que é a poesia senão o conhecimento desmedido da imagem, a transfiguração plena da regra em horizonte, da plástica em consciência? O que é a palavra senão o rio prodigioso dos sentidos, o espaço arquitectural da ordem? O que é a poesia senão palavra dialéctica, coração vivo da totalidade?
Perante os lábios secos da realidade eu afirmo – a escrita começa pelo poema.”

Nuno Júdice, A Noção de Poema, Col. Cadernos de Poesia, nº 23, Publ. D. Quixote, 1972, excerto

E eis, no mesmo livro, o olhar poético sobre uma imagem: precisamente a da praia de Tourgéville-les-Sablons, pintada por Eugène Boudin em 1893. Cada uma com a sua beleza própria, complementam-se na perfeição.


A Praia de Tourgeville
«BOUDIN, Eugène – Pintor do ar
livre, do céu e do mar, foi o primeiro
a procurar fixar os aspectos de constante
transformação da natureza.”


Neste óleo sobre tela, assinado em baixo, à esquerda,
parece-me ver o excessivo amor com que, alguns dias, olho
o horizonte inteiro e as nuvens, como se chovesse, como se o rosto,
sob o peso da humidade, atraísse as suas próprias lágrimas.
Na orla do mar, manchas negras e nítidas, um grupo de mulheres
contempla, em silêncio, em religiosa veneração, a espuma embranquecida
das ondas que rebentam. Não longe de terra, a até à linha das falésias,
a leve impressão do voo das gaivotas, aves marinhas, sombras velozes sobre
o branco escurecido das velas. E o mar, forma enevoada no cinzento
pleno do amanhecer de inverno, atmosferiza em vago e dor o conjunto,
absorve cor, influencia indefinição. Já em terra, no canto inferior
esquerdo, um homem desatola um carro atrelado – e parece imóvel.

Revejo o pintor ao ar livre pintando este quadro. Procurando,
na rigorosa imobilidade dos tons, o movimento natural da paisagem,
não precisou de psicologia, não recorreu à imaginação e ao sonho,
não imitou – reconstruiu um ambiente, perfilizou um horizonte,
fixou, sem liberdade de técnica, com mobilidade sugerida, a praia
de Tourgeville, o mar. A projecção de impressões sobre o solo, a água,
o céu, a intensidade esbatida da luz, tudo o que é efémero,
aqui encontro – sem contrastes violentos, com solidão descendente.

Na origem, a ausência quase de desenho. A sóbria oposição de umas
a outras manchas, o litoral sem o difícil contorno dos rochedos,
formas extensas e assimétricas – isto é, uma arte intimista que,
recusando o barroco, assume a inteira claridade do seu próprio
desenho, recusa o desígnio e a estética, interessa-se, com sábio
misticismo, pela melancolia e pela tristeza, pela fúria tranquila
da composição, pelo estudo da alma e da paisagem, pela descoberta
da sombra e da cor, pelo movimento da realidade, pela pura alusão.
(Idem, pp. 27-29)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Uma lição de vida também é uma música assim

Fugidos à pobreza das ruas do Congo, os Staff Benda Bilili maravilham os ouvidos e espantam os olhos pela diferença, pela coragem e, sobretudo, pelo virtuosismo.

A obra literária no tempo e o tempo da obra literária

Espécie de homenagem ao poeta, cineasta, artista plástico e antropólogo
Ruy Duarte de Carvalho

Em 24 de Abril de 1990, Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) foi entrevistado por José Eduardo Águalusa para o suplemento Leituras do jornal Público. A certa altura, Águalusa colocou a Ruy Duarte de Carvalho a seguinte questão: A guerra, a dramática realidade de todos os dias, afecta o seu trabalho? E o poeta angolano respondeu que “Afecta, sim, e de que maneira, de todos os ângulos e em relação a todos os aspectos do processo, o antes, o durante e o depois, a intenção, a oficina e o produto. Mas eu julgo que toda a obra literária coerente (a obra só existe quando prevalece tal coerência) dá sobretudo notícia de um tempo que não é afinal nem o tempo político, tão-pouco necessariamente o tempo histórico, talvez então o tempo de uma consciência, o tempo da consciência de um tempo, passe a pirueta. O que eu quero dizer é que para além das verdades que se sucedem e se desmentem e se demolem umas às outras, há por certo tempo no tempo de uma vida, biológica ou literária, para reconhecer os termos que informam e confirmam afinal aquilo que é ou aquilo que foi o tempo fundamental de um sujeito, de um grupo, de um povo, da humanidade inteira num preciso período ou momento histórico, dentro de determinado momento político, até. Agora que o tempo político, o tempo social, a guerra, a violência, a tensão, a arbitrariedade, e a prepotência, o disparate, a fome, a falta de informação ou a informação viciada, a luta por vezes quase desesperada no e pelo quotidiano afectam o tempo literário, afectam, sim senhor, está à vista. Para o melhor e para o pior. É que a literatura continua a ser feita de casos, não tem outra maneira, e assim as mesmíssimas condições (limitações ou estímulos, nem sempre umas, nem sempre os outros) deram e estão a dar, entre nós, tanto boa como má literatura. Como haveria de ser de outra maneira? (Itálico meu)

Deambulações e sinestesias

Tenho andado por aí a...

(J. Langevin/Sygma)

e a pensar muito, em muitas coisas.
Talvez até em demasiadas coisas. Mas eu sou assim mesmo: excessiva em (quase) tudo.

domingo, 22 de agosto de 2010

E já que falei em música guineense...

... não podia deixar de citar o extraordinário Manecas Costa, aqui a cantar "Djemia", do album "Fundo di Matu".

Eu e o Facebook

Depois de receber insistentes e numerosos convites inscrevi-me no Facebook, mas não me converti. Ou seja, estou lá, mas não sou de lá e nem sequer vivo lá. Digo isto porque uma rede social com 500 milhões de utilizadores e 25 milhões a aderir todos os meses é algo que, além de me impressionar, não deixa também de me assustar. É que eu sempre tive as minhas reticências relativamente às multidões, estejam elas nos estádios, nos comícios, nos festivais de verão ou... no espaço virtual. Sempre me pareceu que muita gente junta no mesmo sítio aumenta e muito as hipóteses de alguma coisa não acabar bem. E a recente tragédia da Love Parade na Alemanha demonstra claramente que os meus receios não são de todo infundados. Aliás, só a simples prática do moche, tão comum nos festivais de música, já me deixa arrepiada. Sou demasiado territorial e ciosa do meu espaço pessoal e integridade física. Por isso um espectáculo em que cada um ocupe o seu respectivo lugar é o ideal para mim. No máximo, admito ficar de pé junto às pessoas mas sempre posicionada de modo a não me me sentir asfixiada. E confesso que o Facebook me faz sentir assim. Então não é que depois de me inscrever comecei a ser bombardeada por toda a espécie de mensagens do tipo “X gosta disto”, “Y enviou-te uma flor”. Não respondi a uma única por considerar que era piroseira a mais para meu gosto. Depois veio a febre do Farmville e perdi a conta ao número de convites que recebi para ser vizinha de alguém, ao número de ovelhinhas e plantinhas que recebi para “plantar” na minha quinta e outras coisas afins. Confesso que, no início, pensei que ninguém no seu juízo perfeito iria aderir a uma coisa daquelas para passar o dia a regar canteiros, a dar de comer aos porcos e a trocar ofertas de boa vizinhança com os parceiros de jogo. Mas enganei-me redondamente.

Qual não foi o meu espanto quando vi que até as funcionárias da escola aproveitavam todos os momentos livres e escapuliam-se para a biblioteca para se poderem ligar à sua adorada “quinta”, trocando conselhos e sugestões umas com as outras e até com os próprios alunos. È curioso pensar que, no início, esta foi sobretudo uma rede social para adultos mas que, graças precisamente ao Farmville descobriu a fórmula mágica de captar o interesse dos mais jovens que, antes, preferiam sem dúvida uma outra rede, o hi-5. E o número de horas que toda esta boa gente passa online a carregar fotografias de toda a espécie e a dizer que gosta disto, daquilo e do outro é absolutamente impressionante.

Claro que já toda a gente percebeu que eu sou do contra e pararam de me enviar piroseiras. Mas ainda recebo de vez em quando uns estranhos pedidos de amizade de pessoas que não conheço de lado nenhum e sobre as quais não faço a mais pequena ideia de quem são ou do que querem. Todos recusados, claro está. Mesmo assim, ainda consigo ter várias dezenas de “amigos” o que, para um bicho do mato como eu, é verdadeiramente extraordinário. Nunca pensei ser capaz de tal proeza, até porque, na vida real, posso garantir que as coisas são bem diferentes. Ou seja, a noção de “amigo” no Facebook é um mundo à parte, claro está, pois só com algum esforço de imaginação se pode conceber que algumas personalidades tenham milhares de amigos na rede e que haja assim uma espécie de corrida para ver quem tem o maior número de “amigos”.

Mas para mim o Facebook tem sobretudo um mérito: as pessoas deixaram de lado o anonimato mais ou menos fictício dos nick-names, tão característicos da blogosfera e do próprio Twitter. De uma maneira geral são quem dizem ser e, no fundo, a rede dos amigos de cada um confirma mais ou menos a sua identidade (descontados os amigos-kamikaze, é claro). Por esta razão o Facebook tornou-se num ponto de re-encontro de pessoas que tinham perdido o contacto umas com as outras, algumas há dezenas de anos. É este o lado bom do Faceook ou, se calhar, o seu lado menos mau. È que tudo o resto me parece às vezes tão artificial que, por diversas vezes, já estive quase a cancelar a minha conta. Mas o certo é que ainda há poucas semanas consegui encontrar uma pessoa com quem precisava falar e de quem não tinha as referências habituais do tlf, tlm, e-mail, etc. E não é que, em poucos minutos, o consegui fazer? Decidi então dar uma nova oportunidade ao 'Livro dos Rostos'. Mantenho-me por lá, pois nunca se sabe quando faz falta encontrar alguém a quem perdemos o rasto no vendaval dos dias. Mas é só.

sábado, 21 de agosto de 2010

A música guineense...

... na doce voz de Eneida Marta (em crioulo guineense).

O país das oportunidades perdidas

Há tantas ideias perdidas, fracassadas, ignoradas, desconhecidas, desdenhadas... Como explicar o estado quase comatoso em que o país se encontra quando temos tanta gente a ter ideias para o futuro do país? É quase um mistério. Numa entrevista concedida ao Público (5/7/2010), o economista Pedro Pita Barros diz que é, sobretudo, uma questão de mentalidade, de valores e de comportamentos que, ao contrário do que muitos pensam, não se deve a 50 anos da nossa história, mas sim a 800 anos: “Os 50 anos não chegam. Essa mentalidade pequenina também fez desaparecer o ouro do Brasil ou a pimenta da Índia. Não estou a menosprezar o peso dos 50 anos, mas havia coisas que vinham de trás. É por isso que acho que o arejamento internacional do país pode ser fundamental. Os jovens podem libertar-se desse peso.” Pita Barros refere-se ao programa de intercâmbio de estudantes do ensino superior – Erasmus – dizendo ainda que ele é uma verdadeira porta aberta para a mudança: “Já toda a gente percebeu que os miúdos que vão estudar lá para fora não vão ganhar em termos de estudo, mas vão ganhar em termos de uma cidadania europeia. E isso torna-se muito claro quando regressam. Nota-se que foram uma coisa e vêm outra. Que ganharam autonomia e que funcionar no espaço europeu já não lhes faz confusão. Perceberam que há outros hábitos e outras formas de trabalhar. Isso vai criar um choque de mudança. Quando essa geração chegar aos postos de decisão e aplicar alguma dessa vivência, alguma coisa pode começar a mudar. Basta que aqueles que já cá estão não se transformem num travão a essa mudança.”

Claro que esta nova geração – que “já não pensa só em português” - é muito diferente da geração “entalada” que cresceu, estudou e começou a trabalhar já depois do 25 de Abril, mas que se distanciou muito da intervenção política e social, e que é também a minha geração. É uma geração egoísta, muito centrada em si própria e que, por isso, não se empenhou muito na vida pública, mas que também não gerou os grandes empresários e líderes da iniciativa privada, como a geração anterior. Pita Barros descreve-a como uma geração que nunca se conseguiu descolar daquele misticismo do 25 de Abril que os nossos pais (e não nós) viveram intensamente. Talvez também por isso não tenhamos no país uma verdadeira elite no sentido de “pessoas que pensem o país” a médio e longo prazo. Continuamos agarrados ao imediatismo um tanto primário de querermos ver resultados e mudanças rápidas em tudo, até mesmo onde essas mudanças não podem fazer-se assim – como é o caso da educação ou da justiça – e por isso tudo acaba por ficar na mesma ou pior ainda.

Nesta sua entrevista Pita Barros desmistifica também uma certa ideia da universidade e da qualificação superior que anda agora aí em certas cabeças mandantes e que me parece muito pertinente: “A ideia de que as universidades são um sítio de elites onde se pode ir buscar salvadores do que quer que seja é completamente errada. Essas coisas têm de ser construídas todos os dias.”

Também concordo com a visão de Pita Barros sobre a nova geração que aí vem, formada num espírito académico quase “ecuménico”. O problema é que estamos a oferecer-lhes apenas a precariedade: estão permanentemente em estágio ou a recibo verde ou com contratos a prazo. No fundo, estamos a empurrá-los lá para fora e muitos até já foram. Ou seja, estamos quase de certeza a comprometer a tal hipótese – se calhar a nossa melhor hipótese – de mudar as mentalidades e os comportamentos de uma forma mais sistemática e sustentada, levando essa mesma mudança por arrastamento a outras áreas sociais, aconómicas e políticas. A este propósito afirma ainda Pita Barros que “Ou a sociedade sente que este é um problemas de todos, que tems de começar a mudar, que vamos ter benefícios mas também custos – e que os custos têm de ser acautelados, mas que no final todos poderemos ficar melhor -, ou então ficamos conformados com a ideia de que a próxima geração vai viver pior do que a dos pais em todos os sentidos – não apenas em termos materiais mas de precariedade, de incerteza.” O problema é que, olhando para o nosso actual elenco governativo (alguns ministros e secretários de estado são, no mínimo, lamentáveis) e para os que se preparam para governar a seguir e em alternância, não se vislumbra grande mudança, nem sequer grande abertura para que essa mudança se possa começar a fazer, com sentido de responsabilidade e com respeito pelas pessoas.

Na verdade, parece-me que é por estas e por outras que somos, cada vez mais, o “país das oportunidades perdidas”. E é uma pena que assim seja.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Deambulações

O gato preto que gosta de paredes brancas - I
Baleal, 19/8/2010


O gato preto que gosta de paredes brancas - II
Baleal, 19/8/2010
O Sol em dia de folga a descansar no molhe, Peniche, 20/82010



Poleiro para Gaivotas, Molhe de Peniche, 20/8/2010

A Gaivota que queria ser pombo, Peniche, 20/8/2010

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Original é o poema, e o poeta também

Poema Original

Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.

Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.
Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer

Ary dos Santos, Resumo

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Frida Kahlo: pintar como um modo intenso de aguentar viver

Se fosse possível escreviver

Quando comparo escrever e viver, concluo que escrever me tem sido quase sempre mais fácil. Apenas eu e o rosto branco do papel, frente a frente, sem subterfúgios, sem ilusões nem desilusões. Alguma coisa de limpo e, sobretudo, de verdadeiro. Também por isso, essencial. Já não se passa o mesmo com a conjugação do verbo viver.

Se fosse possível juntar ambos e escreviver, acho que tudo seria mais fácil e menos doloroso. É que, como dizia José Gomes Ferreira, Viver sempre também cansa:

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
Folhas, frutos e pássaros
Como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe, automóveis de corrida.

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
“Matou-se esta manhã.
Não o vou ressuscitar
Por uma bagatela.”

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...

José Gomes Ferreira, Militante, vol. I, 1ª ed. Moraes Ed., 1977

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Burn It blue

Caetano Veloso e Lila Downs cantam assim na banda sonora do filme Frida:

A dor maior

Ao Eugénio de Andrade
pelas palavras que sempre me incendiaram os dias e iluminaram as noites

Dizia o nome dele como se o chamasse a si, na ansiedade de regressar sempre a esse misterioso ritual de pertença e de empatia que começa na proximidade dos espíritos e acaba no emaranhado dos corpos. Depois veio um dia que parecia igual aos outros, mas que ao anoitecer os fechou num estranho círculo de silêncio hostil. E ela virou mais uma vez a cabeça para olhar dentro daqueles olhos, para procurar ainda e sempre a imagem de ambos um no outro. Mas no brilho obstinado daquelas pupilas descobriu apenas uma imagem desfocada e grotesca de si mesma no meio de um campo vazio. E, no mais fundo de si, sentiu-se defraudada. Não se reconheceu a si naquele cenário e menos ainda reconheceu aquele olhar de pedra áspera. Compreendeu que, afinal, vivia uma farsa que ali, naquele instante de revelação, embora envolta nas labaredas da raiva e da incredulidade, exibia toda a sua sarcástica cintilância. E foi também ali, naquele mesmo instante, que alguma coisa dentro dela se quebrou. Quase conseguia ouvir os cacos que resvalavam devagar por dentro de si para se amontoarem por fim lá em baixo, rodeando-lhe os pés.
E não mais conseguiu virar a cabeça para se olhar dentro dos olhos dele, nem voltou a chamá-lo a si ao dizer-lhe o nome. Pronuncia-o, mas já não é um chamamento, apenas uma enunciação como qualquer outra. É que dentro dela já nada pede a água que ele, afinal, nunca teve para lhe dar. E, no mais fundo de si, é essa a dor maior.

domingo, 15 de agosto de 2010

Music Box

de Yolanda Soares, mais uma das vozes novas que anda por aí e que gosto de escutar...

Metáforas (quase) naturais - VII

(Evoramonte, 13/8/2010)

Há apenas uma Vida: esta com que acordamos todos os dias pela manhã. Por isso, na transacção dos dias e em caso de insatisfação do vivente, não há possibilidade de trocas ou devoluções. Por isso, tudo o que dizemos ou fazemos com ela, nela, por ela ou para ela não só conta como, tantas vezes, já não tem remédio. E é também por isso que, quando jogamos com ela a roleta russa e perdemos a jogada, é a própria Vida que falhamos.

sábado, 14 de agosto de 2010

Geração (à) rasca

Aí por meados da década de 90, tentava Manuela Ferreira Leite governar esse mastodonte enlouquecido que é o Ministério da Educação quando decidiu, como todos os que a precederam e lhe sucederam, deixar no lombo da besta a marca do seu ferro pessoal. Neste caso particular foi o estabelecimento de propinas obrigatórias para todos os estudantes que frequentavam o ensino superior. E o estribilho “não pagamos, não pagamos” não tardou a fazer-se ouvir por todo o país em manifestações mais ou menos convincentes que tiveram o seu ponto alto em Lisboa, quando os estudantes usaram literalmente o apelido de família da ministra para exibições públicas que chocaram o país dos brandos costumes que prefere fazer e dizer barbaridades e vulgaridades no recesso do lar, ou de outro sítio qualquer, longe da grande multidão. Vicente Jorge Silva, então director do Público, registou essa indignação num editorial que o tornaria famoso, pois foi lá que surgiu a designação que ficaria para sempre – para o bem e, sobretudo, para o mal – colada aos estudantes que, nas ruas, manifestavam o seu descontentamento: a “geração rasca”. Esta era a geração nascida na segunda metade da década de 70, do pós 25 de abril. André Valentim Almeida, nascido em 77, chama-lhe a “geração sanduíche”: a geração dos que não conheceram nem a ditadura, nem a revolução propriamente dita. E sobre ela diz que “Vemos muitos trabalhos sobre o que foi a ditadura e o que foi a revolução, mas sempre na visão daqueles que a viveram de facto. Julga-se que esta geração, nascida por essa altura, não sofre os efeitos desse acontecimento”, mas considera que essa é uma visão muito redutora.

Decidiu por isso fazer um documentário nos seus tempos livres, usando meios amadores e poucos recursos e foi entrevistar personalidades conhecidas, de diferentes áreas – literatura, música, arte, crítica literária, etc - como Gonçalo M. Tavares, Joana Vasconcelos, JP Simões , valter hugo mãe, Jacinto Lucas Pires, Pedro Mexia e outros. O resultado desse seu trabalho intitula-se Uma na Bravo Outra na Ditadura e pode ser visto online no endereço http://go.to/bravoditadura, onde o seu autor decidiu disponibilizá-lo gratuitamente.

É um belo exercício de descoberta de si e dos outros e de como o 25 de Abril, afinal, teve impacto na vida de todas estas pessoas que, por terem nascido em meados da década de 70, estão como que entre o passado e o futuro. No entanto, nenhum dos seus convidados surge identificado, pois André Almeida achou que “devia tratar a geração como um todo e não a queria personalizar. Queria o que estas pessoas tinham para me dizer, mas não queria o peso que vem com os nomes deles. Mas percebo que isso seja polémico.”

André Almeida encontrou uma geração que “sofre de uma crise de identidade não diagnosticada”, que revela um perturbador distanciamento relativamente à política, e que vive uma nostalgia precoce. Comprova-o Nuno Markl, um dos entrevistados, com a sua Caderneta de Cromos (que passa na Rádio Comercial) e que tem revivido todas as referências culturais, musicais e artísticas dos anos 80, com um sucesso impressionante. É a geração que tinha apenas dois canais de televisão para ver – por isso, “toda a gente sabia o que tinha dado ontem” - e que por isso, cresceu numa espécie de monocultura, na qual a revista alemã Bravo – cujos artigos sobre música e cultura pop ninguém conseguia ler – era a grande referência cultural, tendo funcionado até, para muitos dos entrevistados, como “um verdadeiro símbolo da modernidade”.

O rótulo de “geração rasca” paira sempre, mas André Almeida rejeita-o e declara que há mesmo é “uma incapacidade de nomearmos a nossa geração por falta de identidade”. Arrisca apenas, e à semelhança de muitos dos seus entrevistados, a designação de “«geração sanduíche», porque está presa entre duas fatias: uma de antiguidade e outra de modernidade”.

São ao todo sessenta minutos extraordinários de aproximações múltiplas a uma época e ao seu difuso mal-estar que é, afinal, também um pouco ainda a minha geração. E valem bem a pena:
  


Nota: as citações são da entrevista concedida por André Valentim Almeida, autor do documentário, ao Sol (14/8/2010).

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Metáforas (quase) naturais – VI

(Montemor-O-Novo, Agosto de 2010)

Entre todos os que vão caminhando, empurrados ou inclinados contra a força dos quotidianos ventos adversos, entre todos os que vão ficando com o espírito progressivamente amputado pelas motosserras da vida são poucos, muito poucos, aqueles que têm força suficiente para, mesmo vergados pelo peso, manterem a espinha direita.

Escrever: porquê? para quê?

“Um escritor faz o que pode, não o que quer.
Por outro lado, a piada da escrita é tentar caminhos que suspeitamos não ser capazes de trilhar. (E, já agora, tentar dizer por palavras aquilo que muito provavelmente, não pode ser dito por palavras.) Certo, a maior parate do tempo olho para o meu mundo interior e o que vejo não é lá muito bonito: apenas um pequeno mundo interior. Mas há momentos em que... Bolas, ele há momentos em que! É à caça – à espera – desses momentos que um escritor vive. Tomemos a imagem da pesca: nós apenas estamos com uma cana (uma caneta) à superfície das águas (da página) e cabe aos peixes (às palavras) morderem ou não o isco. O mérito de quem está sentado à espera que as palavras apareçam não é, deste ponto de vista, assim tão grande. Mas é preciso estar lá. Essa é a grande chatice, esse é o grande prazer: é preciso estar lá. A pesca e a escrita têm isso em comum, o serem duas actividades onde o tédio e a emoção são indissociáveis, às vezes quase ao ponto de se confundirem. Como a vida, aliás.”

Rui Zink, O Anibaleitor, Teorema, 2010, pp. 117-118

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Capitalismo e economia: leituras e caminhos cruzados

Logo no início do século XX tanto Max Weber (in A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), como Walter Benjamin (in O Capitalismo como Religião) estabeleceram de forma clara, embora por vias distintas, a origem teológica do capitalismo e a sua clara relação com o calvinismo e o protestantismo.

Walter Benjamin encara o capitalismo como um fenómeno não apenas de índole religiosa, mas até como uma religião em si mesmo, como como se depreende das suas máximas mais conhecidas (citadas por Max Weber):

“Lembra-te que o tempo é dinheiro, quem pode ganhar com o seu trabalho dez xelins por dia e vai passear metade do dia, ou fica a preguiçar no quarto, não pode, mesmo se despender apenas seis dinheiros, com os seus prazeres, contar apenas esta despesa, pois acabou, na realidade, por gastar, ou melhor, por deitar fora mais cinco xelins.”;

“Lembra-te que o crédito é dinheiro. Se alguém me deixar ficar com o seu dinheiro depois da data em que eu teria de lho pagar, está a oferecer-me os juros ou tudo o que ele me tiver rendido durante este tempo.”;

“Lembra-te que o dinheiro tem uma natureza reprodutiva e fecunda. O dinheiro pode produzir dinheiro, e assim sucessivamente.”;

“Lembra-te que – como diz o ditado – um homem de boas contas é senhor da bolsa alheia. Quem for conhecido por pagar as suas contas pontualmente pode a todo o momento pedir emprestado todos o dinheiro que os amigos possam dispensar.”

É esta verdadeiramente a religião da avareza ou, como diz o próprio Max Weber, “o ideal do homem honrado e digno de crédito; e sobretudo, a ideia do dever do indivíduo para com o interesse no aumento do seu capital, tomado como um objectivo em si (...), uma «ética» particular, cujo não cumprimento é considerado não apenas loucura, mas uma espécie de falta ao dever.” (p. 49). Para Benjamin sãos os que acumulam dinheiro e riqueza os eleitos de Deus, os capazes de alcançar um estado de graça individual, os homens impregnados pela graça divina.

Max Weber contesta esta visão puramente moral de Benjamin Franklin, encarando o capitalismo como uma secularização do ideal religioso, ou como uma entrada da religião no “mercado da vida” (p.175). Mantendo a ideia de que só a acção e o trabalho – e nunca o ócio ou os prazeres – servem a vontade de Deus, considera contudo que, e citando John Wesley, “sempre que a riqueza aumenta, diminui o valor da religião em igual medida. (...) É que a religião produz necessariamente esforço (industry) e sobriedade (frugality) e, estas só podem causar riqueza. Mas quando aumenta a riqueza, aumentam também a vaidade, a paixão e o amor pelo mundo em todas as suas formas.” (p. 193).

Daqui resulta, segundo Weber, que “Com a consciência de estar em estado de graça e com a bênção de Deus, o empresário burguês, no caso de se manter nos limites da correcção formal, de a sua acção ética não revelar manchas e de o uso da riqueza não ser inconveniente, podia (e era obrigado) a prosseguir os seus interesses económicos. (...) E dava-lhe ainda a certeza apaziguadora de que a distribuição desigual dos bens deste mundo era obra da divina Providência e que tanto essa distribuição como a atribuição da graça divina perseguia fins desconhecidos dos homens. [O próprio] Calvino já dissera, frequentemente, que o «povo», isto é, a massa dos trabalhadores e artesãos, só na pobreza continuava obediente a Deus.” (pp.194-195).

Ainda nesta visão do capitalismo segundo Max Weber, “O sucesso capitalista do membro de uma seita [protestante] era, se justo, prova da sua confirmação e capacidade, aumentando o prestígio e as oportunidades de propaganda da seita e sendo, por essa razão, bem aceite...” (p.311).

Estava assim aberta a porta para o fascínio do dinheiro e da especulação financeira enquanto sistema com um único objectivo: “produzir mais lucro e riqueza para um número reduzido de pessoas (...) no mínimo de tempo” (Samuel Weber, In Expresso-Actual, 7/8/2010), isto é, para o capitalismo tal como o conhecemos hoje. E foi Karl Marx quem melhor descreveu esta tendência - ou mesmo ânsia - muito enraizada na mentalidade capitalista, dizendo que, nesse mesmo capitalismo, cada limite é uma fronteira que deve ser transposta, ou seja, se não se cresce continuamente, diminui-se, podendo mesmo vir a perder-se tudo.

O capitalismo é, assim, e voltando novamente a Samuel Weber, uma “reacção secular a um problema que foi posto primeiro num contexto teológico. O tempo tem duas dimensões: a da autorrealização (self-fulfillement) e a da perda, a do caminho para a morte.” (idem, ibidem) Num certo sentido “a acumulação de riqueza sem limites suscita uma resposta defensiva ao medo de que o tempo caminhe para a destruição do indivíduo e não para a autorrealização.” (idem, ibidem)

As teorias de Walter Benjamin, de Max Weber e de Karl Marx sobre o capitalismo distinguem-se ainda na forma como olham para o dinheiro em si e para os processos de criação de riqueza. Para Walter Benjamin ela vem sobretudo do juro (do dinheiro, portanto) mais do que do trabalho; enquanto este é, para Marx, o factor decisivo na criação dessa mesma riqueza. Já Weber, no espírito da ética protestante, concilia de certa forma as duas visões, pois afirma que o trabalho também dignifica o indivíduo. Na opinião de Samuel Weber “A modernidade europeia, ocidental, é o resultado destas duas coisas: por um lado, a esperança de uma graça individual que nasceu com Jesus; por outro, a desconfiança em relação à via universalista.” (à ideia de que todo o indivíduo é salvável se for à missa, se confessar os pecados, etc.). (idem, ibidem)

Quanto à criação de riqueza através da especulação financeira, marca indelével da nossa época, é óbvio que algo se descontrolou e o monstro se tornou maior que o seu criador, o que originou o colapso que todos conhecemos e abriu uma crise financeira e económica sem precedentes que, para Samuel Weber, ultrapassa, e muito, a simples “razão económica”. Segundo este pensador, “os antecedentes desta crise são muito mais culturais, históricos e mesmo tecnológicos. Para a compreendermos, é importante termos uma perspectiva que coloca também questões psicológicas, além das culturais e teológicas...” (idem, ibidem). A este propósito, Samuel Weber recorda até que “a palavra «crise», não devemos esquecer, está no centro da reflexão filosófica no século XX” e que a própria palavra em si “não é de modo algum do domínio económico”. De certa forma, “o dinheiro (...) poderá ser visto como uma maneira de estabelecer uma mediação entre essa expectativa de um certo destino imortal ligado à origem do mundo, no plano bíblico, e a força do dinheiro para compensar a mortalidade que o pecado instaurou.”

Embora por vias distintas, o dinheiro continua assim, nos dias que vivemos, a ser “um signo do ser eleito, um signo da graça” (tal como descreveu Max Weber) e, por isso, continua a alimentar “o modelo da especulação ilimitada do capitalismo” que, sendo teológico na sua base e na sua origem tem também “razões psicológicas e antropológicas” (idem, ibidem).

Ou seja, deixemo-nos de fantasias ingénuas e demagógicas: a verdade é que não será nada fácil alterar este satus quo, sobretudo quando estão em causa fundamentos tão complexos como estes.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Imaginar

Por estas longas e penosas tardes de excessivo calor só há uma coisa que se pode fazer: imaginar. Tudo o resto é praticamente impossível. Ainda bem que há quem imagine por nós, poupando-nos até a esse esforço: Claire Diterzi, um certo "Tableau de Chasse" e uma tentadora maçã.

Se hoje pudesse ser "Dia do mar no ar"

Aqui pela sulidão o azul não é sinónimo de fresco. O ar, embora de um azul cintilante, parece sólido. Respirar só é possível depois de um enorme esforço, como se fosse necessário primeiro cortar o ar em fatias de tamanho inspirável. Apenas a memória da frescura líquida desse outro imenso azul que é o mar é ainda capaz de enfrentar o calor que abrasa o corpo quase até ao tutano da alma... Oxalá fosse "Dia do mar no ar", como no poema de Sophia de Mello B. Andresen, lido ao som da música de Rodrigo Leão "Deep Blue":

Dia do mar no ar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas

Dia do mar no meu quarto - cubo
Onde os meus gestos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.

Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.

In Coral, 1950

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

All My Little Words

ou uma das 69 Love Songs de Steven Merritt e dos Magnetic Fields

Poema de (des)amor*

Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:

Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.

Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.

Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.

Maria do Rosário Pedreira, In 366 poemas que falam de amor,
Org. Vasco Graça Moura, Quetzal, 2003

* Título meu, não do poema

Provérbiaforística, ou talvez nem tanto

Mais do que tirar conclusões – tantas vezes precipitadas - a partir do olhar dirigido preferencialmente para um dos lados do copo, o cheio ou o vazio, importa talvez perceber se o copo está, ele próprio, a ficar vazio ou se, pelo contrário, começa a encher-se. Depois, e só depois, se podem começar a tecer considerações.

domingo, 8 de agosto de 2010

E agora a viagem onírica e musical de Loreena McKennitt

pelas noites mágicas de Alhambra.

Se o leitor não vai ao livro...

O que aconteceu com os livros em algumas décadas é não apenas surpreendente, mas também exemplar para compreender os tempos de mudança acelerada que vivemos, independentemente de quaisquer juízos de valor sobre a qualidade e as consequências dessa mesma mudança.

Até à década de 60 do século passado, até mesmo depois, o livro permitia-se o luxo de se tornar difícil, digamos assim, obrigando o leitor a abrir-lhe as páginas uma a uma se o queria ler. Era sem dúvida o leitor que buscava o livro e este não era, de facto, para todos. Lembro-me de Saramago contar que, quando ainda era pouco mais do que um simples operário, passava os serões numa biblioteca de Lisboa a ler, tendo sido em boa parte assim que adquiriu a bagagem cultural que lhe serviu de suporte à escrita algum tempo depois.

Veio depois um tempo em que ler um livro se tornou, para muitos, uma coisa chata quando comparada com jogos de video, internet, redes sociais e, sobretudo, telemóvel. Inaugurava-se assim a época de ouro da literatura dita light, que tem tido diversas marés temáticas - estamos agora na fase dos vampiros -, e que sobrevive da fama de ser fácil de ler e pouco chata, pois não será preciso utilizar muitos neurónios em simultâneo para lhe decifrar o enredo. Talvez seja por isso que, mesmo no formato tradicional, em papel, têm tanta saída.

Com tudo isto, o livro, enquanto verdadeiro objecto cultural e literário, viu-se obrigado a ir ele ao encontro do leitor. E esta necessidade, não dos livros em si, mas das editoras que os publicam e, se calhar também dos próprios autores dos livros, tem aguçado o engenho e criado verdadeiras maravilhas tecnológicas que quase metem os livros dentro da cabeça do leitor, evitando que ele se esforce muito. Ele são os audiolivros em cd ou em mp3, ele são os e-books disponíveis na internet, ele são os formatos pdf que também estão na net, em bibliotecas virtuais ou em sítios como o Scribd e tantos outros, e ele é, sobretudo, o Kindle Wireless Reading Device da Amazon (Ver aqui) que, embora recente, já vai na segunda geração, para quem tenha dinheiro para o adquirir e manter, claro está.

Ironicamente, o consumismo frenético em que vivemos mergulhados impele à compra destes gadgets electrónicos para se estar in, só que eles custam o dinheiro que muitos já não têm disponível. Voltámos assim, de certo modo e por vias bem distintas, atrás: tal como em meados do século anterior nem todos tinham dinheiro para comprar livros, agora, no início de século XXI e de um novo milénio, também nem todos têm dinheiro para adquirir Kindles. Antes, valia aos livros a vontade que os leitores tinham de os ler. Agora, talvez lhes valha a vontade de muitos em possuir o último gadget da moda. Ou talvez o que  antes era apenas sede de saber e cultura seja agora, para muitos, mera ânsia de status. E claro, os leitores compulsivos não entram aqui porque esses, embora em número reduzido, são de todos os tempos e mantêm-se constantes nos seus hábitos.

Ao terceiro dia

Fui assistir a um dos espectáculos do segundo dia do "Jazz na cidade": noite convidativa e amena, muita gente na rua (e por isso também, muito barulho), música ao vivo em diversos pontos estratégicos do centro histórico, repertório ao estilo "promenade", escorreito e de fácil entrada no ouvido, adequado para tão heterogéneo público. No fundo, receita de sucesso quase garantido numa terra que, em termos culturais, está cada vez mais empobrecida. Mas não deixa de ser, apesar de todas as suas virtudes inegáveis, um tanto morna.

Ontem, voltei ao "Jazz na cidade". Depois do ambiente musical um tanto frouxo que se viveu no segundo dia do evento (no primeiro não estive e, por isso, não me posso pronunciar), foi ao terceiro dia que, na minha opinião, ele alcançou a sua justa e melhor medida, tanto de público, como de entusiasmo e convicção dos próprios músicos, Às 21.30, a algarvia The Messy Band aqueceu, e bem, o ambiente para a eborense, multinacional, jovem e ainda mais prometedora The Jungle Jazz Orchestra que, às 23.30, com os seus quinze músicos, encerrou da melhor forma o festival no Chão das Covas com toda a gente a oscilar e a bater o pé ao ritmo empolgante do swing. É claro que a noite esplendorosa no seu bafo morno e apetecível foi uma parceira importante nisto tudo e a decadência cultural da cidade também.

Para mim, o "Jazz na cidade" valeu sobretudo pela noite de ontem e pelo esforço que a Associação Cultural Imaginário fez para justificar os apoios financeiros que recebe anualmente da câmara e, sobretudo, para cumprir os objectivos (culturais e comunitários) que realmente  deviam sempre presidir à criação e existência deste tipo de entidades (o que nem sempre acontece, como bem sabemos).