sábado, 30 de abril de 2011

Reavivar memórias

Esta geração que agora se autodenomina "à rasca", nascida  já bem nos anos 80 quando o país começou a ficar encharcado em dinheiro fácil por via da nossa adesão à então CEE, nunca conheceu, como todas as anteriores, a pobreza extrema aliada ao trabalho duro, a privação de tudo e até mesmo a fome.

Bem pelo contrário. Esta é a verdadeira geração da "révanche" nacional sobre tantas décadas de limitações de toda a espécie.  A geração a quem os pais deram quase tudo - dinheiro, cursos superiores, liberdade, vida folgada, quase sempre de excessos -, vivendo por vezes acima das suas possibilidades para poderem satisfazer, não as necessidades básicas, mas sim todos os caprichos dos filhos. Ironicamente, esta geração que, apesar das condições favoráveis em que cresceu e sempre viveu se diz "à rasca" é, por todas as razões, a verdadeira golden generation portuguesa.

É uma geração de pequenos tiranos familiares que, descomplexadamente, vivem à custa dos pais até bem tarde. Superprotegidos e mimados são de uma imaturidade impossível de descrever em palavras. Nunca ouviram dizer que não ao mínimo capricho e, pior ainda, nunca tiveram que esperar muito tempo para satisfazer os apetecimentos mais absurdos. Por isso, a única estratégia que conhecem para lidar com a frustração é a que aprenderam nas muitas e longas noites de copos: brigar ou escavacar qualquer coisa, a cadeira, o carro estacionado na rua ou a cara da namorada. Já deram na rua sinais óbvios dessa dificuldade, que são também os de uma revolta natural relativamente a um país que lhes deu a formação e lhes criou elevadas expectativas mas que, agora, de repente, lhes retira de uma só vez as saídas profissionais e a vida fácil (esta sobretudo por via das dificuldades financeiras dos pais).

Sobre as extremas dificuldades em que viveram tantas gerações dos seus antepassados, em especial no interior rural e atrasado, nada sabem nem querem saber lá muito. É por tudo isto que, quando a SIC decidiu desenterrar as memórias dessas vidas em crise fez um excelente trabalho, não apenas em termos jornalísticos, mas também em termos sociológicos e antropológicos. Até porque a vida dos muitos pobres sempre andou arredada dos livros de história por ser "pouco interessante" (nem os cravos de abril conseguiram mudaram muito esta atitude).

E para os tais jovens "à rasca" é também bastante pedagógica para que possam ter uma noção clara de como as dificuldades de que agora se queixam parecem bem relativas, quando comparadas com a vida duríssima desta gente que atravessou as décadas de 30 e 40 do século passado no norte alentejano. No fundo, a excelente reportagem de Hugo Alcântara é uma imersão naquela que foi a verdadeira realidade do país durante quase toda a sua história. As últimas três décadas é que foram, de certo modo, a excepção a essa regra. E é bom estarmos conscientes disso para não nos deixarmos iludir tão facilmente com falsas promessas, por mais sedutoras que sejam.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Em resumo: "Homem com H", claro

Homem - II

"INSOFRIDO TEMÍVEL ADAMADO PURO SAGAZ INTELIGENTÍSSIMO MODESTO RARO CORDIAL EFICIENTE CRITERIOSO EQUILIBRADO RUDE VIRTUOSO MESQUINHO CORAJOSO VELHO RONCEIRO ALTIVO ROTUNDO VIL INCAPAZ TRABALHADOR IRRECUPERÁVEL CATITA POPULAR ELOQUENTE MASCARADO FARROUPILHA GORDO HILARIANTE PREGUIÇOSO HIEROMÂNTICO MALÉVOLO INFANTIL SINISTRO INOCENTE RIDÍCULO ATRASADO SOERGUIDO DELEITÁVEL ROMÂNTICO MARRÃO HOSTIL INCRÍVEL SERENO HIANTE ONANISTA ABOMINÁVEL RESSENTIDO PLANIFICADO AMARGURADO EGOCÊNTRICO CAPACÍSSIMO MORDAZ PALERMA MALCRIADO PONDEROSO VOLÚVEL INDECENTE ATARANTADO BILTRE EMBIRRENTO FUGITIVO SORRIDENTE COBARDE MINUCIOSO ATENTO JÚLIO PANCRÁCIO CLANDESTINO GUEDELHUDO ALBINO MARICAS OPORTUNISTA GENTIL OBSCURO FALACIOSO MÁRTIR MASOQUISTA DESTRAVADO AGITADOR ROÍDO PODEROSÍSSIMO CULTÍSSIMO ATRAPALHADO PONTO MIRABOLANTE BONITO LINDO IRRESISTÍVEL PESADO ARROGANTE DEMAGÓGICO ESBODEGADO ÁSPERO VIRIL PROLIXO AFÁVEL TREPIDANTE RECHONCHUDO GASPAR MAVIOSO MACACÃO ESFOMEADO ESPANCADO BRUTO RASCA PALAVROSO ZEZINHO IMPOLUTO MAGNÂNIMO INCERTO INSEGURÍSSIMO BONDOSO GOSMA IMPOTENTE COISA BANANA VIDRINHO CONFIDENTE PELUDO BESTA BARAFUNDOSO GAGO ATILADO ACINTOSO GAROTO ERRADÍSSIMO INSINUANTE MELÍFLUO ARRAPAZADO SOLERTE HIPOCONDRÍACO MALANDRECO DESOPILANTE MOLE MOTEJADOR ACANALHADO TROCA-TINTAS ESPINAFRADO CONTUNDENTE SANTINHO SOTURNO ABANDALHADO IMPECÁVEL MISERICORDIOSO VOLUPTUOSO AMANCEBADO TIGRINO HOSPITALEIRO IMPANTE PRESTÁVEL MOROSO LAMBAREIRO SURDO FAQUISTA AMORUDO BEIJOQUEIRO DELAMBIDO SOEZ PRESENTE PRAZENTEIRO BIGODUDO ESPARVOADO VALENTE SACRIPANTA RALHADOR FERIDO EXPULSO IDIOTA MORALISTA MAU NÃO-TE-RALES AMORDAÇADO MEDONHO COLABORANTE INSENSATO CRAVA VULGAR CIUMENTO TACHISTA GASTO IMIRALÃO IDOSO IDEALISTA INFUNDIOSO ALDRABÃO RACISTA MENINO LADRADOR POBRE-DIABO ENJOADO BAJULADOR VORAZ ALARMISTA INCOMPREENDIDO VÍTIMA CONTENTE ADULADO BRUTALIZADO COITADINHO FARTO PROGRAMADO IMBECIL CHOCARREIRO INAMOVÍVEL..."

Alexandre O'Neill, In Entre a Cortina e a Vidraça, 1972

Homem - I

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão, In Movimento Perpétuo, 1956

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Nha vida

Poema dum(/a) funcionário(/a) cansado(/a)

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estrita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa noite só comprida
num quarto só.

António Ramos Rosa, Viagem Através de uma Nebulosa, Ed. Ática, 1960

quarta-feira, 27 de abril de 2011

E, de vez em quando, alguém escreve e canta algo assim

Um "demotivator" por dia, nem sabe o bem que lhe fazia. Até dois. Ou mesmo três.

1. Toda a verdade sobre as negociações do governo com a tal troika do FMI



2. Toda a verdade sobre "O Segredo" do sucesso de Sócrates, apesar de...

Passos Coelho, pelo que se tem visto, já comprou e os restantes líderes da oposição andam a pensar no caso.

Conclusão: é por estas e por outras que precisamos MESMO de uma mudança urgente. Até porque...
Imagens do site www.despair.com

terça-feira, 26 de abril de 2011

Obter permissão


"Toda a gente consegue ouvir o que as pessoas dizem - mas serás capaz de te acalmar o suficiente para escutares aquilo que elas querem mesmo dizer?"
John Ford Noonan, in Música no Vale (Music from down the hill), 1994

Ou seja, "Alguém disse, certa vez: "Para sobrevivermos, precisamos apenas de duas coisas: comida e atenção!". A comida é óbvio; a atenção necessita de ser um pouco explicada. Por atenção não nos referimos apenas às nossas necessidades de uma vida inteira, que vão desde a necessidade que um bébé a chorar tem que lhe peguem, até à necessidade que um cidadão idoso tem de água, quando não se consegue deslocar e precisa de tomar um comprimido que lhe sustente a vida. Posto de maneira ainda mais simples, quando choramos, com dor, aterrorizados, angustiados com a nossa saúde, precisamos de ter alguém ao lado - mesmo que seja uma alma solitária - para reconhecer que existimos, para nos aliviar, oferecer-nos simples atenção humana.

Mas e então a vida que aspira a mais do que a existência simples e a sobrevivência elementar? E então uma vida que quer ser especial? Haverá algo que possamos acrescentar à nossa equação original? Proponho uma palavra: PERMISSÂO. Assim, a nossa formulação tem agora a seguinte redacção: PARA VIVER UMA VIDA ESPECIAL, PRECISAMOS DE COMIDA, ATENÇÃO E PERMISSÃO.

O que queremos dizer com permissão? Não estaremos a falar desse sentido de boa vontade e de ávida vontade, pela qual damos caça, perseguimos e arrebatamos aquilo com que sonhamos e ambicionamos? Todos nós, novos ou velhos, somos levados a sentirmo-nos especiais através dos nossos sonhos e aspirações: o desejo de dinheiro, companhia, sucesso, amor, um lugar à beira da água, um livro que nos tire da cama. É isso que nos torna humanos e únicos. Mas considerando esta simples noção, por que é que tão poucos de nós passam as suas vidas atrás dos seus sonhos e tantos de nós nem sequer dão um primeiro passo? Para mim, tudo se resume a uma palavra: permissão. A óbvia pergunta que se segue: onde é que damos com ela? Num sonho? Numa gaveta? Num anúncio, na capa de um jornal? É algo com que se nasce?

No meu caso, a luz surgiu quando tinha vinte e quatro anos. Sempre tinha sonhado ser escritor, mas nunca tinha tido permissão para o ser a sério. Era professor de Latim. Estava a corrigir um teste de vocabulário. Em fundo, tocava música dos Rolling Stones. O Mick Jagger uivava em "Satisfaction". A voz dele fez-me sorrir. O poder da música dele fez acender a minha luz. Obtive permissão. De repente, ouvi na minha cabeça duas personagens a falarem. Agarrei num pedaço de papel em branco e anotei várias páginas de diálogo. Naquele momento, aconteceu que o rock-n-roll me deu permissão para escrever. Todos nós ouvimos pessoas a conversar, mas só poucos anotamos o que dizem. (...) Não importa o estado de espírito em que me encontre, o rock-n-roll põe-me sempre a escrever. (...) Se estou desanimado, é a humilde humanidade de Springsteen que me permite pegar num lápis e começar a garatujar. Não importa onde possa estar, o rock oferece-me concentração, obtém-me permissão. (...)

O poder do rock é o poder de qualquer outra coisa. Pode ser um livro, uma oração, ou uma pessoa. (...)
Outro dia, ouvi alguém dizer: "Hoje em dia, as pessoas estão tão cheias de dúvida. A quase ninguém restam sonhos". Eu digo que não. Eu digo: liguem a música bem alto, alimentem o sonho. Agarrem a energia. Passemos todos a viver segundo um novo lema: "Não julguem as pessoas pelo que elas ouvem; julguem-nas por aquilo que elas levam a cabo."

John Ford Noonan (1994)

E hoje em particular que seja também uma velha canção do Springsteen (exactamente pelas mesmas razões de Noonan) a dar-me, a mim, a "permissão" de que preciso para atravessar este longo dia:

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Era uma vez um país

A revolução por dentro

Às primeiras horas do dia 25 de Abril de 74, o MFA emitia um comunicado em que solicitava à população que aguardasse em casa o desenrolar dos acontecimentos.

 

Mas a alegria e a esperança transbordaram e todos sairam em massa à rua para festejar em tempo real a revolução em curso. Nesta ordem/apelo não cumprido está, simbolicamente, o que falta fazer ainda hoje: a revolução "por dentro" de cada um de nós, a revolução das mentalidades. E também a capacidade de autodisciplina e de perseverança, em detrimento do impulso momentâneo. Continuamos a ser um povo demasiado submisso e a ter muito medo do que é novo e/ou diferente. Continuamos a ser muito os chico-espertos que tudo fazem para garantir o seu mínimo e os outros que se lixem. Embora, depois, porque apenas conseguimos o tal mínimo, continuemos aí pela vida fora amargos e mesquinhos, criticando tudo e todos apenas porque sim.

Em 1974 fizemos sobretudo a festa "por fora", na rua, mas não fizemos a tal revolução "por dentro" e talvez seja também por isso que hoje, 37 anos depois, continuamos a andar aos círculos, sem sair muito do mesmo lugar.
Mas, apesar dos pesares, viva o 25 de Abril!

domingo, 24 de abril de 2011

O "24 de Abril" de 1974

A SIC passou hoje uma das suas habituais "Grandes Reportagens". Intitula-se "24 de Abril" e é da autoria da jornalista Sofia Arêde. Abordou um tema que, de certa forma, se foi tornando tabu no nosso país: o brutal "modus operandi" da PIDE/DGS:
"A 24 de Abril de 1974 a polícia política tinha 2626 funcionários. A PIDE/DGS ocupava 39 edifícios do Estado e arrendava 60 outros. Nalguns desses edifícios, portugueses torturavam portugueses. É difícil de imaginar o que será passar 31 dias e 31 noites sem dormir, sob a tortura do sono. Fernando Vicente sabe o que isso é. Este engenheiro civil sofreu, na cadeia de Caxias, uma das mais longas torturas do sono de que há registo na História de Portugal.

Aurora Rodrigues tinha 21 anos quando foi presa pela PIDE/DGS, a 3 de Maio de 1973. Participava num encontro de estudantes. Foi levada para a prisão do Forte de Caxias, onde permaneceu quase três meses sem a assistência de um advogado e em isolamento. Durante este tempo foi sujeita à tortura do sono, a humilhações e a espancamentos.

A 27 de Maio de 1962, a PIDE prendia Maria Custódia Chibante, no Couço, uma localidade ribatejana onde o Partido Comunista Português estava fortemente implantado. Esteve detida durante seis meses em isolamento, sem direito a visitas e sob tortura." In http://sic.sapo.pt/online

Excelente e pertinente trabalho sobre a história recente do nosso país. Verdadeiro serviço público numa televisão privada. Testemunhos impressionantes e tocantes de gente que sofreu no corpo e no espírito a violência da tortura e da prisão política.
É bom que, de vez em quando, se avive a memória das gentes para que não se branqueie o passado e porque me parece ser essa uma das melhores formas de garantir que certas coisas não se repitam, de facto, nunca mais.

Um "redondo vocábulo" cheio de arestas

Campeões! Campeões!


Todos os dias vêm a público mais e mais provas de que o actual governo PS é um verdadeiro campeão. Conseguimos alcançar  a taxa de desemprego mais elevada de sempre, a economia entrou oficialmente em recessão, os juros cobrados pela aquisição de dívida pública bateram todos os recordes imagináveis (12%), o FMI já tem os seus emissários em Lisboa a trabalhar e todo o gás para ver onde é que vão cortar mais e mais ainda e, de cada vez que o Eurostat revê as contas do défice a coisa fica ainda mais negra. Agora, graças às parcerias público-privadas, no caso três novas auto-estradas (Norte litoral, Costa de Prata e Marão) o défice das contas públicas saltou assim, de repente, de uns brutais (e oficiais) 8,6% para uns colossais 9,1%. O que dá a bela percentagem de 93% do PIB. E o pior é que esta mui triste história das parcerias público-privadas está apenas a começar...  Campeões, mesmo!

Entretanto o nosso cavaleiro andante da demagogia, perdão, primeiro-ministro, desdobra-se em declarações e em entrevistas televisivas onde insiste que tudo está bem e, por isso, acabará bem também. Com ele à frente do governo, claro está. Até porque a culpa disto tudo é ainda e sempre do PEC, ou melhor, do seu chumbo por parte dos mauzões da oposição. Aliás, o tom das entrevistas é, primeiro, de donzela que viu a sua honra manchada pelo atrevimento da oposição em questionar a sua mais que óbvia desgovernação e, depois, de um tal optimismo que convence até os mais cépticos. Só nos falta saber é se os patrões da Europa (Merkel & Cª) se deixam convencer através dos enviados do FMI.

Claro que o bom povo português – quem, afinal, vai ter que pagar todos estes desvarios e respectivos juros – continua a acreditar, ainda e sempre, nos belas tiradas de José Sócrates. E a melhor prova disso são as sondagens que, a poucas semanas das eleições legislativas, começaram novamente a dar vantagem ao PS em detrimento do PSD. Contudo, observando os tiques de Passos Coelho (o tom mavioso da voz, os maneirismos, a pose, etc. etc) e, sobretudo, o seu enorme esforço para passar a imagem de uma espécie de anjo redentor caído na sacristia, ninguém pode levar a mal. No fundo, parece-me que o povo continua muito agarrado à velha sentença popular - Mais vale o mau conhecido que o bom por conhecer - e às suas variantes: Mal com ele, pior sem ele ou Mal conhecido com o seu dono morre.
No dia 5 de Junho, logo veremos como é que o país vai ficar: se mal, ou se pior.
 
Até lá, as sondagens e a sua respectiva evolução podem ser seguidas aqui

sábado, 23 de abril de 2011

O lento ondear das searas também é uma voz assim

Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes

(e de pré-campanha eleitoral)

1
Não te ataques com os atacadores dos outros.
Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.
O mesmo deves fazer com os açaimos.
E com os botões.

2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.


Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.
Depois, faz um berreiro.
Quando tiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor...
Esta deve ser a tua filosofia.

5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.
Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.

6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.
É provável que te sintas logo muito melhor.
Sai, então, de baixo da pedra.

7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.
Mas dá sempre um "Bom dia!" ao pessoal do estaleiro.
Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.


Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!
(...)

11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa

Alexandre O'Neill, In A Saca de Orelhas

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O mistério

Convidado por Ana Sousa Dias a dizer o que sabe sobre as mulheres, André Gago (46 anos, actor e encenador) escreveu: “As mulheres são lindas, monstruosas, tórridas, frias, gloriosas, miseráveis, pequenas, desmedidas, feias, bonitas, feias-bonitas, magnânimas, parciais tolerantes, implacáveis, incompreensíveis, claríssimas, perversas, cândidas, femininas, maria-rapaz, curiosas, indiferentes, meigas, cruéis, maternais, madrastas, gordas, magras, inteligentes, desentendidas, pulposas, torneadas, espampanantes, discretas, leais, pérfidas, grutas inexpugnáveis, vulcões flamejantes, rocha inquebrantável, seda coleante, rubras, plúmbeas, fáceis, difíceis, gostosas, acrimoniosas, inteligentíssimas, burríssimas, espertíssimas, sonsas, charmosíssimas, banalíssimas, queridíssimas, detestabilíssimas, castas, impudentes, reservadas, inconfidentes, férteis, estéreis, indomáveis, submissas, descartáveis, imprescindíveis, divertidas, chatas, triunfantes, frustradas, cheias de curvas, cheias de rectas, impenetráveis, totalmente abertas, incalculáveis, calculistas, selectivas, indecisas, demoradas, rápidas, suculentas, frugais, vistosas, lineares, insatisfeitas, fastidiosas, autênticas, fingidas, inconformadas, conformistas, ruidosas, moderadas, poderosas, fragilíssimas, rocha coleante, seda inquebrantável...

O que eu sei sobre as mulheres? Sei que, se escolher metade destes qualificativos, por muito disparatados e por mais estereotipados que pareçam ser, esboçarei, ainda assim, um perfil que corresponderá a um ideal de mulher.

Ou seja: sei muito pouco.”

(In Pública, 17/4/2011)

Reconheço(-me) até certo ponto (n)esta galáxia contraditória e complexa. Mas não por ser mulher e sim por ser pessoa. Isto, embora tenha gostado da admissão, por parte do autor, de que sabe “muito pouco” sobre as mulheres, o que, numa sociedade machista como a nossa, é de “homem”. E embora este chavão do “mistério feminino” também já tenha conhecido melhores dias e seja muitas vezes uma desculpa de mau pagador, não deixa de ser verdade que, provavelmente, a consciência dessa limitação é um bom ponto de partida para conseguir entender que, afinal, o “mistério feminino”, não é assim tão obscuro quanto isso.

É que não há "o" mistério da mulher. Há, isso sim, o mistério do outro, seja ele homem ou mulher. Já agora, pergunto: e os homens não serão também assim, cheios de meandros, autênticas galáxias de contradições, tal como as mulheres?  
 
(Contudo, às vezes, ao observar tamanha previsibilidade masculina no mundo à minha volta, interrogo-me: mas que raio terá acontecido ao mistério masculino?...)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

"combustível prà cabeça"

Esta é para aqueles pequenos pontos de luz que, mesmo na maior escuridão, insistem em brilhar, como pequenos pirilampos da alma e do coração: os amigos.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

E às vezes os sentidos enchem-se de sons assim

É sempre a mesma estória...

O Lobo Mau ou a FMInha da Dívida
 
Cartoon de António, in Expresso, 2/10/2010

Estarão a querer matar a galinha dos ovos de ouro?

Razões urgentes levaram-me ontem, ao fim da tarde, a optar pela auto-estrada em detrimento da habitual N18, que começa notoriamente a sofrer os efeitos dos chamados movimentos pendulares ao início e ao fim do dia. Contudo, e apesar da hora, no breve percurso entre Estremoz e Évora não me devo ter cruzado com mais de uma dezena de veículos, na maioria camiões e comerciais. Foi só à saída, na altura de fazer o pagamento que compreendi a razão dessa ausência de tráfego: quarenta e poucos quilómetros custaram-me uns inacreditáveis 2.55€?! E já nem sequer é preciso pagar o ordenado aos portageiros pois é o próprio condutor que faz todas as operações. No entanto, acredito que a Brisa tenha alegado que os dispensou porque o pouco movimento da via não justificava os elevados custos anuais com o pessoal. Mas, se pensarmos bem, estes preços demovem até os mais persistentes.

Claro que, terminada a grande orgia de alcatrão, betão e corrupção patrocinada pelos milhões caídos de páraquedas da CEE/UE durante toda a década de 90, é agora preciso pagar duas coisas: a construção das auto-estradas e a sua custosa manutenção. No entanto, com preços destes, não estou lá muito bem a ver como é que vão conseguir captar clientes em número suficiente para pagar isso tudo e garantir ainda os lucros que financiem os belos vencimentos e benesses do conselho de administração das empresas concessionárias e afins. A não ser que tenham decidido sugar o dinheiro todo aos poucos palermas que – por distracção ou por absoluta necessidade – tenham a infeliz ideia de transitar por elas, à semelhança do que o Estado faz aos tansos que não podem ou não sabem escapar ao fisco.

Parece-me mas é que a Brisa e outras grandes empresas portuguesas detentoras de monopólios diversos – electricidade, refinação de petróleo, etc, etc – estão a recorrer a uma estratégia que configura algo de semelhante àquele velho caso da morte prematura da galinha dos ovos de ouro...

terça-feira, 19 de abril de 2011

A pré-campanha eleitoral para tótós

Com a abertura dessa autêntica corrida ao ouro que é a campanha eleitoral que se aproxima as máquinas da propaganda partidária começam já a aquecer as turbinas e a tentar medir a temperatura do eleitorado na tentativa óbvia de testar a receptividade daqueles que serão depois os grandes slogans da corrida eleitoral. Sinal evidente disso mesmo foi a recente renovação de outdoors, especialmente junto às rotundas um pouco por todo o lado. O Bloco de Esquerda foi, aliás, dos primeiros a fazê-lo.

O outdoor colocado há meia dúzia de dias tem, sobre um fundo vermelho, uma frase em letras garrafais que diz - "Com o FMI quem paga és tu” -, à qual se segue a afirmação: "Há alternativa: governo de esquerda".

Ora eu acho que esta autêntica pérola da argumentação político-partidária só pode significar uma de duas coisas: ou os iluminados do BE acham que somos todos tolinhos e ainda não perceberam que já todos estamos fartos de saber que NÓS é que pagamos, de qualquer maneira, com ou sem FMI. Ou então acham que é desta que chegam ao governo.

Ainda que o FMI não viesse quem é que, de qualquer forma, teria que pagar a colossal dívida externa do país, a não ser nós e os nossos filhos, netos, bisnetos, trinetos, tataranetos...? Ou quererá isto dizer que, se votarmos no Bloco de Esquerda e este chegar ao governo se acaba o FMI e, sobretudo, não seremos nós a pagar a dívida externa? Com uma vantagem suplementar para o BE (que o PS espera também aproveitar ao máximo): é que o ónus dos sacrifícios vai ser empurrado para as costas largas do FMI. Eles é que nos obrigaram, caso contrário a segunda tranche o dinheiro não vinha... Aliás, que momento conveniente para marcar eleições antecipadas, assim em jeito de quem passa uma esponja sobre os erros do passado e espera (re)começar tudo do zero, fazendo votos para que à terceira seja de vez e tudo corra pelo melhor, é claro. Mas será que esta gente acha que o povinho é assim tão estúpido e ainda acredita no bicho-papão?

Certo, certo, é que, com este tiro no pé, a coisa começa mal (e ainda nem sequer começou verdadeiramente). E se são estas as ideias que se apresentam como alternativa ao desvario do (des)governo que nos conduziu a este beco sem saída, então o Sócrates bem pode começar já a refrescar o espumante com que brindará em privado com os seus boys e girls dilectos numa suite do Altis logo à divulgação das primeiras projecções eleitorais.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A propaganda tem tantas formas...

... e tantos nomes que, às vezes, até nos confundimos...  Por isso convém, de vez em quando, refrescar a memória dos cidadãos sobre qual é o papel que têm a cumprir numa sociedade dita "democrática", como é o caso da nossa. Sobretudo agora que se avizinha uma nova campanha eleitoral com todo o seu cortejo de promessas, belas palavras e discursos apelativos. E embora isto seja tão propagandístico como outra coisa qualquer, não deixa de ser interessante. Até porque está bem feito.

domingo, 17 de abril de 2011

Uma voz embriagada de milonga

Pôr o dedo na ferida

Na sua habitual crónica dominical do Público, Frei Bento Domingues reflecte sobre a atitude dos cidadãos face à política e aos políticos dizendo: "Hoje, está na moda fazer dos políticos os bodes expiatórios de todos os nossos males, precisamente, porque transferimos, para eles, de forma mágica, a salvação do país, distraindo-nos da nossa intransferível responsabilidade cívica. Alienamo-nos, repetindo que eles não deixam espaço à sociedade civil, mas é esta que se demite da sua vocação e entrega tudo na mão dos partidos, que, por natureza, são apenas parte da acção política.
A vida em sociedade tem muitas dimensões e expressões e, por vezes, os meios de comunicação, cegos pela poeira dos acontecimentos políticos e por tudo o que corre mal, roubam, aos cidadãos, o país real, na sua complexidade. A verdade passa a ser a representação que eles nos distribuem. Por outro lado, a publicidade torna as pessoas infelizes, se não comprarem as suas propostas. Ora, é a civilização expressa nessas propostas que está falida."
In "A triste figura dos discípulos"

É o que se chama "pôr o dedo na ferida". Não apenas subscrevo, como, no que à  "intransferível responsabilidade cívica" diz respeito, faço até um mea culpa (até porque estamos em plena época quaresmal).

sábado, 16 de abril de 2011

Som, fúria e nada

Uma destas noites fui ao cinema, velho hábito há muito perdido, para ver um filme de Woody Allen (e também já nem me lembro há quanto tempo não via um filme dele sentada numa sala de cinema). Anunciava-se uma "comédia romântica", etiqueta que no nosso país é posta em quase tudo quanto é filme e que, tantas vezes, nos deixa um sabor amargo na boca pelo tempo perdido a ver tais "coisas".

Chama-se então You Will Meet a Tall Dark Stranger, foi rodado em Londres no ano passado e procura demonstrar uma premissa proferida por Macbeth: a de que a vida "it is a tale/ Told by an idiot, full of sound and fury,/ Signifying nothing" (William Shakespeare, Macbeth, Acto 5, Cena 5).

Todo o filme se constrói à volta de uma família  - pais, filha e genro - e de todos os que com ela se vão cruzando. No momento em que a narrativa se inicia as coisas já não correm lá muito bem, mas vão-se paulatinamente complicando à medida que o enredo avança. E nada escapa à "fúria" destrutiva deste vendaval que sopra baixinho ao longo de todo o filme: profissão, casamento, família, amigos, relações amorosas... No final, ninguém escapa e nada fica de pé. Todos ficam mal e mesmo quem já não estava bem logo de início, fica pior ainda no fim. Exactamente como na vida, afinal. Ou seja, Woody Allen faz-nos aqui uma demonstração brilhante de como a premissa de Macbeth/Shakespeare está, afinal, assustadoramente certa.

Podemos sempre questionar para que serve um filme assim quando ele é sobretudo a arte imitando a vida ("uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria e que, no fim, não significa nada"), quando desta estamos já todos saturados. Mas nem é preciso pensar muito para encontrar várias boas razões: diálogos bem construídos, inteligentes e plenos de uma ironia de veludo que se saboreia longamente, um enredo-puzzle que é,  na verdade, uma farsa sofisticada, em que as peças se vão encaixando na perfeição, uma fotografia soberba, cenários fantásticos, actores excelentes e, sobretudo, convincentes, uma banda sonora de luxo. Um filme de Woody Allen, portanto.


sexta-feira, 15 de abril de 2011

Linhas cruzadas

por estes dois rapazes de Beja sob o sol abrasador da sulidão, plenas de subentendidos e de uma alegria como só a música pode transmitir a quem a faz e a quem a ouve: ora sente-se aqui menina à sombra do nosso chapéu e cante connosco...


Estamos sempre na encruzilhada

Estamos sempre na encruzilhada.
Cada dia é vários caminhos
Possíveis.
Cada hora é mais que uma estrada.
Nós, os sozinhos
De nada.

Nem escolhemos, nem queremos:
Vamos...
E, seja a via pelo areal que vemos
Ou na floresta pela qual andamos,
Vamos para onde não sabemos,
E não sabemos onde estamos.

E a cada hora, a cada hora,
Há que virar para a direita ou esquerda
Segundo uma lei que se ignora
Ou um impulso cujo instinto se não herda.

Sempre tantos caminhos!
E nós, sem tempo para os escolher,
Apressados, ignaros e sozinhos,
Tomamos o que tem que ser.

Se é bom, se é mau o por onde ir,
Ninguém o sabe ou saberá...
Tudo é não saber e seguir:
O resto Deus dará, ou não dará.

25-8-1934

Fernando Pessoa, in Quadras e Outros Cantares, 1997

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O sorriso

“Mããeee?!"

Sento-me aqui ao teu lado durante uma boa parte do dia. Entre ti e o mundo à tua volta há agora a máscara que te fornece o oxigénio que respiras, os tubos e cateteres que injectam nas tuas veias o soro e os medicamentos de que necessitas.

E sempre que o longo silêncio, apenas quebrado pelo ruído intermitente do monitor cardíaco, se torna pesado, apetece-me invariavelmente gritar: “Mããeee?!”. Exactamente como costumava fazer há já muito tempo, na velha infância, quando acordava de manhã e não sentia a tua presença na casa: “Mããeee?!”, gritava logo. E se tu não respondias de imediato eu continuava a chamar-te, cada vez mais alto, já com voz esganiçada, até que tu, lá do fundo da cozinha, para me fazeres calar, respondias por fim: “siim? o que é que queres?”

Este chamamento, que repeti tantas vezes ao longo dos anos, e que sempre pensei que era uma coisa só minha, afinal não é. É que quase todas as manhãs bem cedo sou acordada por idêntico apelo do miúdo que vive no andar de baixo: “Mããeee?!”. Até o tom esganiçado da voz, sempre que ela demora mais a responder-lhe é semelhante. Logo que a mãe responde ele cala-se como se, de repente, o seu mundo todo estivesse novamente no lugar certo. Exactamente como eu fazia.

E é justamente isso que me apetece fazer agora, aqui. Chamar-te "Mããeee?!", até que acordes e me respondas, já agastada com a minha insistência: "siiim?"... Só mesmo para saber que o meu pequeno mundo ainda continua a estar no lugar certo. Só mesmo para deixar de sentir este vazio cá por dentro.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Tristes europeus

Da centralidade em política

As centralidades estão na ordem do dia. É preciso estar hoje no centro de tudo para se ter direito a existir: no centro das grandes cidades e metrópoles, no centro da Europa, no centro do mundo e por aí fora. Em nome destas "centralidades" ou da criação de novas "centralidades" têm-se gasto milhões e construído aberrações de todas as espécies e feitios.

A ideia tem feito um tal caminho no espírito dos europeus que contaminou até a própria política e, por isso, quase todos os países europeus estão hoje confrontados com governos que, independentemente dos seus matizes de esquerda ou de direita, são sobretudo "centrais". Muitos deles são até do chamado "centrão" que é uma espécie de saco azul onde bons anos. E o grande problema é que este centrão funciona como os eucaliptos: seca tudo à volta. O que, aliás, é uma estratégia de sobrevivência altamente eficaz. A prova disso é que estamos sem grandes alternativas viáveis e credíveis ao tal centrão: a esquerda radical? a direita ainda mais radical? Não, obrigado.

Estalou agora a polémica sobre os ditos "entalados das presidenciais". Mas, polémicas sobre os ex-candidatos Manuel Alegre e Fernando Nobre à parte, a verdade é que, queiramos ou não, estamos mesmo todos, enquanto entidade colectiva ou país, entalados entre o PS e o PSD. Ou seja, estamos tramados. Sócrates e Passos Coelho sabem-no bem. Melhor até do que muitos de nós. E é por isso que se dão ao luxo de nos fazer o que fazem. Fazem-no porque sabem que podem. Sabem, sobretudo que, no fim, e apesar de tudo o que nos têm feito, é entre eles os dois que se dividirá o bolo.

Certo é que, de dentro destes partidos-centrão, seja lá isso o que for, não saem soluções. Apenas contradições e a "jangada de pedra" está a afundar-se em águas cada vez mais turvas e perigosas.  Quanto e até quando seremos nós -  cidadãos comuns, vítimas destes esquemas partidários - capazes de aguentar a crescente pressão, assim, calados, a ver o que acontece, é que eu ainda não sei. Mas parece-me que não será ad aeternum, não...

Estado de graça

Conheci há tempos alguém que vivia na ilusão de que a desilusão, mais do que algo que apenas acontecia aos outros, era sempre e invariavelmente os outrosNunca lhe ouvi uma única palavra de dúvida ou de interrogação sobre quantas vezes já tinha ele próprio sido uma desilusão para alguém.

De alguém assim pode dizer-se, com propriedade, que não vive apenas feliz, vive em estado de graça.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Estado de alma - VI

Falsas esperanças, certas desesperanças

... para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história da minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra

Chegam às centenas, todos os dias, com o coração em sobressalto. Carregam consigo apenas a morte que lhes encheu os olhos e o rosto marcado pelo sofrimento. Ninguém sabe ao certos quantos chegam nem quantos ficam pelo caminho. Sabe-se é que muitos mais (talvez perto de 1 milhão) esperam a sua vez de tentar a sorte. A miséria e a guerra em todos os graus, matizes e variantes possíveis são a adrenalina que lhes dá forças e coragem para atravessar continentes, afrontar mares alterosos e tentar fintar todas as barreiras físicas e legais impostas pelo acordo de Schengen, na perseguição desesperada de um sonho: poder (sobre)viver num país europeu.

Nunca esperei muita coisa (...)
Sabia que no rosário
de cidades e de vilas, (...)
não seria diferente
a vida cada dia:
que sempre pás e enxadas (...)
o meu braço esperariam

Uma vez desembarcados em Lampedusa aceitam de bom grado quase tudo: desde viverem em condições indignas nos sobrelotados centros e campos de acolhimento, a serem tratados como criminosos e indesejados. Estão sobretudo dispostos a tudo para não terem que regressar ao inferno de que, sabe-se lá a que preço, conseguiram fugir. Vêm dispostos a fazer os trabalhos mais duros, sujos e perigosos, aqueles que muitos europeus - talvez a maioria - já há muito tempo não quer fazer.

Mas (...) esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca, (...)
ou meu aluguel com a vida

Mas a Europa, apesar de envelhecida e esclerosada, não quer cá estas hordas de sangue jovem, pois não tem capacidade de resposta nem sequer para os seus próprios e cada vez mais escassos jovens. Fecha-os, por isso, nos tais centros de acolhimento que, de acolhedor só têm o nome. Na verdade são centros de detenção altamente vigiados. É para não perder a face, vai vociferando ou disparando mísseis contra os tiranos deste mundo cão e apregoa por aí que é preciso defender os supremos valores da Liberdade, da Democracia, da Tolerância, da Justiça e da Solidariedade, nem que seja pela força das armas.

E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia

Centenas destes homens, mas também muitas mulheres e crianças, são forçados a embarcar todos os dias em gigantescos ferry-boats - fretados pelo governo italiano e pagos com dinheiro da UE - que os despejam noutros centros espalhados um pouco por toda a costa italiana onde aguardarão, como lixo varrido à pressa para debaixo de um tapete, vigiados de bem perto pela polícia ou pelos militares, a ordem de expulsão ou a aceitação do pedido de asilo num qualquer país europeu, cada vez mais relutante em concedê-lo.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida (...)
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta, (...)
de fome um pouco por dia

São homens e mulheres como nós estes sem-terra, sem documentos, sem dinheiro, sem eira nem beira. Só têm sonhos e grandes esperanças. Bem iguais às nossas, aliás. Querem trabalhar, constituir família e (sobre)viver com um mínimo de dignidade. Só que, para a maior parte deles a Europa é como a Medusa: transforma-lhes os sonhos em pedra mal a avistam.  Muitos dos que aguardam o retorno à Líbia e a outros países falam em voltar a atravessar o Mediterrâneo. Asseguram que regressarão uma e outra vez até conseguirem cumprir o seu sonho de viver na Europa, ou até perderem a vida a tentar fazê-lo.

Tudo indica que, depois de rechaçar as esperanças dos europeus periféricos (os tais PIGS, como Portugal ou a Grécia, por exemplo), a Europa se prepara agora para, em força, rechaçar as esperanças dos que a imaginam ainda como um espécie de último refúgio da civilização ocidental no sentido humanista do termo.


Nota: Em itálico, excertos de Morte e Vida Severina - Auto de Natal Pernambucano (1966) de João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A feitiçaria de uma voz única...

a de Fátima Miranda

(In)classificável anúncio

Anónima pessoa mandou publicar na secção de Classificados do jornal Público de ontem o seguinte anúncio:
Público, Classificados de 10/4/2011
Desconheço o verdadeiro intuito da publicação que se me afigura ser sobretudo uma denúncia ou até mesmo um grito de alerta para chamar a atenção a quem de direito. Contudo, não posso deixar de fazer alguns breves reparos:

Cara "Madalena"
 
Andam de facto distraídos os cidadãos. E com o quê? Certamente com o seu próprio umbigo e com a porcaria lá acumulada ao longo do tempo.

E a melhor prova de que não é de agora que os cidadãos andam demasiado distraídos está num outro pequeno classificado, publicado não sei onde nem quando, no qual uma certa brasileira de nome "Sheila" deixa transparecer a sua amargura em relação àquilo em que transformou, apesar das muitas e extraordinárias qualidades pessoais que afirma possuir:


Ora, se o mal da distracção fosse apanágio dos cidadãos da capital eu aconselhá-la-ia a mudar-se o quanto antes para a província. Contudo, neste particular, e contrariando aquilo que é mais habitual por cá, o país profundo não é apenas mera paisagem. Bem pelo contrário.

Assim sendo, recomendo-lhe alguma prudência, cara "Madalena", não vá, à conta das distracções alheias, acabar amargurada como a tal "Sheila". É que, sabe, os distraídos têm infelizmente uma irreprimível tendência para confundir as coisas e as pessoas, por vezes até de uma forma grotesca...

domingo, 10 de abril de 2011

A vida num segmento de recta

Escoou-se-me o dia, como água por entre os dedos, num segmento de recta traçado a alcatrão no verde da paisagem: num dos seus extremos espera-se placidamente que a morte venha chamar; no outro, pelo contrário, é a morte que, impaciente, aguarda o momento de ser chamada.
Regresso depois ao ponto médio deste segmento rectilíneo - ponto de partida e de chegada de um percurso não tão linear assim e que, para já, parece ser infinito - com uma estranha sensação de vertigem como se, em vez de ter andado em linha recta, tivesse andado a rodopiar sobre mim mesma.

O preço de acreditar

Não custa muito acreditar em alguém de e com o coração. Custa muito é acreditar no elevado preço a pagar, depois, por essa autêntica leviandade.

Paguemos então o preço e cara alegre, se possível.

Estado de alma - V

Pouco é um homem...

Pouco é um homem e, no entanto, nele
cabe tudo o que existe e fica ainda
espaço bastante para poder negá-lo.

Armindo Rodrigues, "XC", in Beleza Prometida, 1950

sábado, 9 de abril de 2011

Estado de alma - IV

XVII Cursilho de Cristandade Socialista...

...ou  como as semelhanças não são pura coincidência

Várias centenas de diligentes militantes socialistas de todo o país reúnem-se durante três dias para o XVII Congresso Nacional do PS, ou seja, para ouvirem os discursos inflamados de uns quantos dirigentes socialistas escolhidos a dedo que lá vão "dar o seu testemunho" como se diz na linguagem dos tais cursilhos de cristandade*.

Tudo se inicia (e se conclui) com o testemunho mais importante de todos: o do Pastor das almas militantes do partido, o qual se apresenta falando (às vezes até mesmo confidenciando) longamente (quase 1 hora) a forma como tem sido posto à prova pela oposição, em especial pelo PSD, quando ele apenas procura espalhar a concórdia entre os povos e a palavra de Deus, perdão, governar o país. E tudo corria tão bem, exactamente como previsto, até ao momento fatídico em que que os fariseus e os vendilhões do templo vieram e conspurcaram a palavra do Senhor (primeiro-ministro) com falsos argumentos, em nome, ainda por cima de uma falsa religião, também conhecida como sede de poder... Mas ele, mesmo perseguido e vilipendiado, prosseguirá firme e corajosamente na sua acção evangelizadora. E para que isso possa acontecer só necessita do beneplácito dos militantes fervorosos da causa socialista e do bom povo português, pois ele, apenas ele, é o autêntic e o único salvador da pátria.

O longo discurso,  verdadeiramente capaz de fazer chorar as pedras, pode ser visto e escutado aqui  É uma peça magistral de propaganda política, escrita da primeira à última linha tanto para dentro da sala de congressos, como para as vastas audiências que o observavam pela televisão: um homem só a puxar por todo um país, tendo toda a oposição a puxar em sentido contrário na outra ponta da corda. E como é dura a sua vida. Ao ouvi-lo assim, de coração aberto e olhos brilhantes, com o discurso empolgado e a voz emocionada, percebemos que estamos claramente perante um êxtase místico à Santa Teresa de Ávila.

Empolgados pelo testemunho magistral do "pároco", a sala cai também ela em êxtase e aplaude freneticamente, enquanto grita por Portugal e... pelo PS, claro. Está até capaz de fazer fila para ir beijar o pézinho delicado deste autêntico menino-deus nascido para trazer a palavra do senhor aos ímpios. Os testemunhos que se seguem - como os de Manuel Alegre ou António Costa por exemplo - pegam cirurgicamente em alguns dos argumentos, apelos e questões retóricas lançadas pelo grande líder espiritual e dão-lhes, não apenas continuidade, mas sobretudo amplificação, explorando e expondo de forma sistemática todos os argumentos possíveis da tal oposição, até mesmo a de esquerda, que acaba, segundo os cursistas do socialismo a ajudar ... a direita. E depois há, claro, vozes embargadas pela emoção, lágrimas catárticas e abraços empolgados.Só visto, mesmo.

Depois desta lavagem cerebral, os socialistas militantes sairão de convicções renovadas e tudo farão para garantir que o seu líder espiritual continuará a oficiar as missas da paróquia durante mais algum tempo. E com um pouco de sorte, ou melhor, se eles se portarem bem e cumprirem rigorosamente todas as ordens da máquina partidária, o líder manterá a confiança nos muitos acólitos que, por bons serviços prestados à causa, serão novamente convidados para o acompanhar no altar.

*Os Cursilhos de Cristandade têm, também eles a duração de 3 dias e têm por objectivo, "através dum método próprio, proporcionar a vivência e a convivência do fundamental cristão, através de pessoas seleccionadas previamente, em virtude da sua influência nos ambientes da vida, para divulgar, consciencializar e testemunhar os valores do Evangelho e o rosto de Cristo". Qualquer semelhança com os Congressos partidários não é, de facto, pura coincidência...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Reacender a memória

Enquanto cidadã de pleno direito, confrontada com a colossal leviandade e lgeireza da actual classe política portuguesa e a preparar-me para, através do voto, escolher quem irá (des)governar esta choldra nos próximos tempos, sinto-me verdadeiramente numa encruzilhada. Tenho contudo uma única certeza em relação ao actual elenco governativo: "Obviamente, demito-o!"*. Para mim e para já, é quanto basta.

* Frase incendiária proferida por Humberto Delgado durante a campanha eleitoral numa conferência de imprensa realizada em 10 de Maio de 1958 no café Chave de Ouro, em Lisboa, quando lhe foi perguntado por um jornalista que postura tomaria em relação ao Presidente do Conselho Oliveira Salazar e respondeu com a frase "Obviamente, demito-o!".

Estado de alma - III

Questões de género: indiálogos

"Lídia imaginou um corpo deitado numa praia, ao lado de outro corpo. Eram um homem e uma mulher e falavam. E o que diziam, ou o que a mulher dizia, era a tentativa de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se trava, ao nível do corpo, entre uma mulher e um homem. Ela procurava uma forma de encontro, atrav+es das palavras, um encontro que era, antes de mais, consigo própria, e só depois com o homem que escutava. Ou era apenas um jogo de palavras? Hesitou de repente, sem ver claro. Em algum lugar, é verdade, a falsidade começava. Talvez porque a mulher imaginada pressentia que o homem estava parcialmente fora do diálogo e lhe resistia, com se ele representasse, de certo modo, um perigo, e se pudesse finalmente converter numa agressão contra ele próprio. Talvez por medo, som (pensou), o homem recusasse participar e levar a sério o que a mulher contava, aceitava-o apenas como um passatempo, compreensível numa praia em que todas as horas eram iguais e vazias. Ele estabelecera, portanto, limites tácitos a todas as palavras, verificou, e, se a mulher que falava tentasse ultrapassá-los, ele obrigá-la-ia a retroceder e a alegar que estava mentindo.
(...)
É que ela esperava que o amor fosse uma ponte para outra coisa, disse Afonso, outra coisa que não existia, não existiria nunca, ela forçava obscuramente um caminho atrav+es do amor, através dele, uma saída, uma porta, uma passagem, como se o universo fosse de repente abrir-se, alargar-se em direcções diversas- mas não havia no universo dimensões sonhadas, existia apenas o quotidiano, exacto e transparente."

Teolinda Gersão, in O Silêncio, Lx: Sextante Ed., 2007, 5ª ed.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Temos o que merecemos...

ou seja, um primeiro-ministro que, forçado pela oposição a demitir-se de forma menos honrosa e com o país mergulhado numa crise para a qual ainda não se sabe se haverá saída no actual contexto da economia global, se assume como o calimero da pátria: eles, eles é que são os culpados, pois não aprovaram o PEC4.

Nem D. Sebastião finalmente regressado em manhã de nevoeiro faria melhor. Ou seja, apela desde já ao calimerismo nacional daqueles que o elegeram porque quer continuar no governo depois das próximas eleições. O pior é que, se calhar, até conseguirá alcançar o seu objectivo. Afinal, sempre gostámos muito de ser coitadinhos.

Estado de alma - II

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Estado de alma - I

Um "filme" para a minha vida...

ou, pelo menos, um dos filme possíveis para descrever a confusão em que a minha minha vida se tornou de há uns anos a esta parte, poderia muito bem ser este extraordinário "Almoço a 15 de Agosto" (Pranzo De Ferragosto, 2008), de Gianni Di Gregório. De um momento para o outro, o protagonista (Gianni, um desempregado de meia-idade bloqueado por ciscunstâncias que não consegue controlar) vê-se rodeado de "velhinhas simpáticas e levadas da breca" que transformam a sua vida num caos e põem à prova a sua capacidade de resistência. Filme surpreendente do cinema contemporâneo italiano (tão pouco conhecido por cá) que aborda as questões da velhice e da solidão de uma forma quase poética, para além de estar maravilhosamente bem feito. É, verdadeiramente, uma pérola. Agradeço a sua descoberta à Pat que, ao saber da minha azáfama familiar (quase um filme, também, daqueles italianos neo-realistas), me deixou o dvd na gaveta da sala de professores com a recomendação de que o visse pois ia gostar. Foi uma pausa amena e bem vinda na angústia quotidiana das corridas para o hospital. É bom saber que há por aí pessoas com um coração como o do Gianni (ainda que só nos filmes...).

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terça-feira, 5 de abril de 2011

De metáfora em metáfora (até à anástrofe final?)

Íamos a meio da primeira década deste século quando o actual presidente Cavaco Silva escreveu publicou no Expresso (2004) um artigo que aplicava de forma metafórica a lei de Gresham (1558) ao então governo de Santana Lopes. Dizia ele então que "a moeda má expulsa a moeda boa". A metáfora fez autêntico furor nos media e junto dos "fazedores de opinião" e comentadores que a dissecaram e interpretaram quase até à exaustão e acabou por, indirectamente, provocar as eleições antecipadas que levaram Sócrates ao poder com uma maioria absoluta. A história - de uma forma bem retorcida - acabou assim por dar razão a Cavaco Silva e todos nós estamos hoje a viver as consequências disso mesmo no nosso quotidiano. 

E agora que estamos novamente num impasse, à espera de eleições, mergulhados numa crise sem precedentes, com os candidatos e respectivos partidos a esgrimir argumentos e contra-argumentos, com uma desfaçatez e um cinismo assinaláveis, parece-me bem que entrámos definitivamente na era da "má palavra que expulsa a boa palavra", quem é como quem diz, a época dos homens sem palavra. Vamos então esperar para ver a quem serve a carapuça, ou melhor, a metáfora.

domingo, 3 de abril de 2011

Ao piano...

António Victorino d'Almeida enche o final das tardes de domingo com uma espécie de digressão musicada pelas histórias e memórias dos livros (os seus), das pessoas, dos programas já feitos anteriormente, da música, dos sonhos e frustrações, da beleza de Viena. No fundo, um pouco de tudo aquilo que tem feito a sua vida. E que vida!

A biblioteca de Alexandria e a torre de Babel num só clique

Desde que a internet nos tomou de assalto e modificou a nossa vida de forma irreversível que as questões dos direitos de autor, do consumo de bens culturais; do acesso aos dados mais díspares está na ordem do dia. A indústria da música e do cinema andam há anos às voltas para tentar arranjar uma forma de ganharem dinheiro com o livre e fácil acesso dos cibernautas à música, aos filmes e às séries de televisão, às vezes escassas horas depois de estrearem nas salas. Claro que a apetência por livros disponibilizados online, tanto no formato e-book como no formato digitalizado, não tem cessado de aumentar. O Kindle, brinquedo para cibernautas endinheirados e mais ansiosos por dar nas vistas do que, se calhar, ler livros em qualquer sítio e a todas as horas, aí está para o comprovar.

Têm sido várias as experiências de bibliotecas digitais disponibilizadas online. No que à língua portuguesa se refere, o Brasil foi também aqui pioneiro, disponibilizando online centenas de títulos de obras do domínio público nos portais Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br/) e Biblioteca Nacional Digital (http://bndigital.bn.br/).

Acompanhando a acção de diversos países que foram criando e disponibilizando bibliotecas nacionais digitais, como a da nossa lisboeta Biblioteca Nacional (http://purl.pt/index/geral/PT/index.html), também a União Europeia lançou em 2008, o portal Europeana (http://www.europeana.eu/portal/) com o objectivo de “tornar o património cultural e científico da Europa acessível ao público.” Sedeada na Koninklijke Bibliotheek (Holanda), este portal digital trabalha em parceria com mais de 180 organizações ligadas ao património e ao conhecimento e permite pesquisar milhões de itens, incluindo livros, imagens, filmes, mapas e muitos outros documentos, com base em quatro grandes critérios:

  • Quem: Nomes de actores, autores, arquitectos, artistas, coreógrafos, compositores, maestros, bailarinos, cineastas, músicos ou fotógrafos.
  • O quê: Palavras de títulos de livros, poemas, jornais, pinturas, fotografias, filmes ou programas de televisão.
  • Onde: Nomes de cidades ou países da Europa ou de todo o mundo.
  • Quando: Datas (por exemplo, 1945), como o ano em que nasceu, uma data célebre na história ou um período (por exemplo, romano ou medieval).
Assim, a pesquisa da palavra “Lusíadas”, por exemplo, permite-nos aceder a diversos documentos como este - https://bdigital.sib.uc.pt/bg5/UCBG-Cofre-2/UCBG-Cofre-2_item1/index.html - que corresponde à digitalização de um exemplar da primeira edição da obra maior de Camões, existente na biblioteca da Universidade de Coimbra.

Mas a Europeana é só mais um andar acrescentado ao já enorme edifício desta verdadeira biblioteca universal online que tem sido construída sobretudo ao longo da última década.

A Google, esse imenso e assutador big brother que pesquisa tudo, incluindo as preferências, escolhas e históricos de navegação na rede de todos, mas mesmo todos nós, começou a digitalizar e a disponibilizar livros online bem mais cedo, em 2004, na Google Books (http://books.google.pt/bkshp?tab=mp). Começou por digitalizar obras que pertenciam ao domínio público e que integravam o acervo de bibliotecas um pouco por todo o mundo. Alguns eram exemplares únicos, outros eram exemplares raros que não se encontram à venda. Ao todo, a Google já digitalizou (e disponibilizou) até hoje mais de 12 milhões de cópias digitais de livros, e ao que parece tem obtido lucros originados pelos anúncios que publica nas páginas do serviço. Mas rapidamente a empresa passou a disponibilizar também excertos de obras ainda sujeitas a direitos de autor, o que lhe valeu desde logo várias acções judiciais movidas tantos por autores, como por editoras. A proposta de acordo entretanto negociada pela Google com os autores foi agora rejeitada por um juíz americano sob a alegação de que ia longe demais. Todos consideram agora a hipótese de recorrer desta decisão e iniciar uma batalha judicial que se adivinha morosa, complexa e muito dispendiosa (nada que assuste o império Google). No entanto, as vozes críticas afirmam que essa recusa foi, na verdade, uma vitória, já que impede a Google de monopolizar o acesso a uma herança cultural da humanidade, decidindo de forma arbitrária quem receberia os lucros ou garantindo para si a exclusividade dos lucros obtidos com obras não reclamadas pelos autores ou em relação às quais não se sabe a quem pertencem esses mesmos direitos.

Agora há que reconhecer que o sonho da Google de construir uma biblioteca pública digital e universal com acesso livre por parte dos leitores de todo o mundo é bem apelativo. Não deixa é de ser de uma megalomania prodigiosa querer fazer ao mesmo tempo a biblioteca de Alexandria e a nova torre de Babel, acessíveis em qualquer parte do mundo com meia dúzia de cliques. No fundo, um objectivo grandioso bem à (des)medida da Google e da sociedade da informação em que estamos mergulhados.