sábado, 2 de abril de 2011

Extrapolações em discurso directo livre

Figueira e Barros, 2/4/2011
Acompanhei esta tarde uma amiga ao funeral de um familiar próximo. Família desavinda, de olhos no chão a fingir que são gente estranha, olhares de soslaio da gente da aldeia, vozes sussurradas, constrangimento notório de todos os presentes. No fundo, ninguém sabia muito bem o que fazer com o dilema que, de repente, quase à hora do funeral, tinha ali desembocado: cumprimentar a recém-chegada era dar um sinal negativo para os outros; mas não o fazer era talvez demasiado, dadas as circunstâncias. 

O cortejo fúnebre seguiu silencioso e apeado, sob um céu escurecido pelos augúrios de provável tempestade. Quando chegámos junto ao portão do cemitério, reparei de imediato na locução latina que o encimava: "Parce sepultis" - Enterrado, perdoado. Não me pude impedir de pensar o quanto a expressão estava adequada para aqueles que ali seguiam acompanhando a urna e o quanto, ao mesmo tempo, era irónica, pois há ódios familiares que podem bem mais do que a morte, ainda que sejam perfeitamente inúteis. Olhando para os rostos crispados à minha volta, percebi que aquela era uma máxima bem intencionada, mas verdadeiramente "letra morta" naquelas vidas distanciadas pelos mal entendidos não esclarecidos e pelo rancor de partilhas mal resolvidas. Tão morta, afinal,  quanto a língua em que está escrita. (E, por falar nisso, se calhar até não era mal pensado colocar uma legenda a traduzir estas máximas e locuções latinas que (ainda) estão um pouco por todo o lado nos espaços públicos e que não fazem hoje qualquer sentido para a maioria dos falantes. Isto, não vá alguém ter a"brilhante"  ideia de as substituir por outra coisa qualquer, mais "moderna".)

"Parce sepultis". Locução perfeitamente aplicável também a memórias, (res)sentimentos, situações ou vivências que nos assombram os pensamentos e as horas. Também elas, depois de "enterradas" poderão ser perdoadas, isto é, esquecidas e ultrapassadas. E dou comigo a demorar-me na dúvida de saber se não o fiz ainda porque elas são difíceis de sepultar - por serem, ainda, demasiado significativas ou dolorosas - ou porque eu, numa espécie de negação infantil, tenho relutância, ou talvez até receio de as sepultar e ter que retomar depois a longa jornada solitária.

Por outro lado, na breve homilia que antecedeu o funeral o padre dizia convictamente que as flores murchavam, as lágrimas secavam e o corpo se corrompia. E que da vida terrena só sobrava o espírito que agora iniciava uma nova etapa feita de luz e, talvez, de redenção. Olhava então à sua volta, para os familiares cabisbaixos, e continuava dizendo que nenhum dos bens materiais que tivéssemos amealhado ou conquistado ao longo da vida seguiria connosco, que todas as canseiras e esforços para garantir a sobrevivência se revelavam inúteis na hora derradeira. Depois concluiu que todos (os cristãos, entenda-se) temos o dever de cuidar dessa única coisa que que fica para além da morte: o espírito ou a alma. Ouvi e compreendi - à minha maneira, claro está - a sua mensagem: no fundo, é ela a adaptação da antiga ode horaciana do "carpe diem" ao espírito do catolicismo.

Homilias à parte, a verdade é que a locução "parce sepultis" também está foneticamente muito próxima da expressão "parca sepultura" e, na verdade, queiramos ou não, estejamos preparados ou não, a "sepultura" é o fim último de tudo e de todos: dos imensamente ricos aos despudoradamente miseráveis, dos tiranos mais infames aos altruístas mais assumidos, independemente de serem sepultados em campa rasa, em vala comum ou em sumptuoso mausoléu. E será tanto mais parca quanto menos se tiver vivido a vida. Talvez fosse uma boa ideia espalhar pelas ruas e praças das cidades e vilas a locução horaciana "carpe diem" - Colhe o dia antes que seja demasiado tarde -  tal como escreveu o poeta nas suas Odes:

Carpe diem quam minimum credula postero.
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi finem di dederint.
Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros.
Ut melius, quidquid erit, pati.
Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam, quae nunc oppositis
debilitat pumicibus mare.
Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi spem longam reseces, dum loquimur,
fugerit invida.
Aetas: carpe diem quam minimum credula postero.


Traduzindo: "Não procures, Leuconóe, - ímpio será sabê-lo -
que fim a nós os dois os deuses destinaram;
não consultes sequer os números babilónicos:
melhor é aceitar! E venha o que vier!
Quer Júpiter te dê inda muitos invernos,
quer seja o derradeiro este que ora desfaz
nos rochedos hostis ondas do mar Tirreno,
vive com sensatez destilando o teu vinho
e, como a vida é breve, encurta a longa esp'rança.
De inveja o tempo voa enquanto falamos:
trata pois de colher o dia, o dia de hoje,
que nunca o de amanhã merece confiança."

(Trad. de David Mourão-Ferreira, in
Imagens da Poesia Europeia, Artis, 1971)

Sábio o poeta que, um dia, há mais de dois mil anos, pensou e escreveu tais palavras. O problema é que, agora, já nem no presente se pode confiar, quanto mais no futuro. Quando muito, "carpe instantem" - colhamos o instante, porque o dia quem sabe...
E quanto ao resto, a tudo o resto, apliquemos, se tivermos forças e coragem para isso, a máxima "Parce sepultis".

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