terça-feira, 12 de abril de 2011

Falsas esperanças, certas desesperanças

... para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história da minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra

Chegam às centenas, todos os dias, com o coração em sobressalto. Carregam consigo apenas a morte que lhes encheu os olhos e o rosto marcado pelo sofrimento. Ninguém sabe ao certos quantos chegam nem quantos ficam pelo caminho. Sabe-se é que muitos mais (talvez perto de 1 milhão) esperam a sua vez de tentar a sorte. A miséria e a guerra em todos os graus, matizes e variantes possíveis são a adrenalina que lhes dá forças e coragem para atravessar continentes, afrontar mares alterosos e tentar fintar todas as barreiras físicas e legais impostas pelo acordo de Schengen, na perseguição desesperada de um sonho: poder (sobre)viver num país europeu.

Nunca esperei muita coisa (...)
Sabia que no rosário
de cidades e de vilas, (...)
não seria diferente
a vida cada dia:
que sempre pás e enxadas (...)
o meu braço esperariam

Uma vez desembarcados em Lampedusa aceitam de bom grado quase tudo: desde viverem em condições indignas nos sobrelotados centros e campos de acolhimento, a serem tratados como criminosos e indesejados. Estão sobretudo dispostos a tudo para não terem que regressar ao inferno de que, sabe-se lá a que preço, conseguiram fugir. Vêm dispostos a fazer os trabalhos mais duros, sujos e perigosos, aqueles que muitos europeus - talvez a maioria - já há muito tempo não quer fazer.

Mas (...) esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca, (...)
ou meu aluguel com a vida

Mas a Europa, apesar de envelhecida e esclerosada, não quer cá estas hordas de sangue jovem, pois não tem capacidade de resposta nem sequer para os seus próprios e cada vez mais escassos jovens. Fecha-os, por isso, nos tais centros de acolhimento que, de acolhedor só têm o nome. Na verdade são centros de detenção altamente vigiados. É para não perder a face, vai vociferando ou disparando mísseis contra os tiranos deste mundo cão e apregoa por aí que é preciso defender os supremos valores da Liberdade, da Democracia, da Tolerância, da Justiça e da Solidariedade, nem que seja pela força das armas.

E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia

Centenas destes homens, mas também muitas mulheres e crianças, são forçados a embarcar todos os dias em gigantescos ferry-boats - fretados pelo governo italiano e pagos com dinheiro da UE - que os despejam noutros centros espalhados um pouco por toda a costa italiana onde aguardarão, como lixo varrido à pressa para debaixo de um tapete, vigiados de bem perto pela polícia ou pelos militares, a ordem de expulsão ou a aceitação do pedido de asilo num qualquer país europeu, cada vez mais relutante em concedê-lo.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida (...)
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta, (...)
de fome um pouco por dia

São homens e mulheres como nós estes sem-terra, sem documentos, sem dinheiro, sem eira nem beira. Só têm sonhos e grandes esperanças. Bem iguais às nossas, aliás. Querem trabalhar, constituir família e (sobre)viver com um mínimo de dignidade. Só que, para a maior parte deles a Europa é como a Medusa: transforma-lhes os sonhos em pedra mal a avistam.  Muitos dos que aguardam o retorno à Líbia e a outros países falam em voltar a atravessar o Mediterrâneo. Asseguram que regressarão uma e outra vez até conseguirem cumprir o seu sonho de viver na Europa, ou até perderem a vida a tentar fazê-lo.

Tudo indica que, depois de rechaçar as esperanças dos europeus periféricos (os tais PIGS, como Portugal ou a Grécia, por exemplo), a Europa se prepara agora para, em força, rechaçar as esperanças dos que a imaginam ainda como um espécie de último refúgio da civilização ocidental no sentido humanista do termo.


Nota: Em itálico, excertos de Morte e Vida Severina - Auto de Natal Pernambucano (1966) de João Cabral de Melo Neto

2 comentários:

Hernâni Matos disse...

Francisca:
Quando antes de Abril, a "Morte e Vida Severina" veio a Portugal, ao Cinema Império, num ano que não sei precisar, eu estava lá. Aquilo era uma ilha, rodeada de Pides por todos os lados. Todavia, os antifascistas sabiam com quantos vimes se faz um cesto e em pleno espectáculo, as luzes apagaram-se e do galinheiro houve aves que lançaram panfletos contra o regime. Na época, alguns de nós pertencíamos ao clandestino Movimento Associativo, importante frente estudantil anti-fascista. Pertencíamos ao meio, mas essa agit-prop, meticulosamente preparada, era por questões de conspiratividade, conhecida apenas por alguns, o que não era o meu caso, um clandestino anónimo entre muitos que ajudaram a meter areia na engrenagem e que à sua maneira, deram um contributo, ainda que modesto, para aquilo a que Ari chamou “As Portas que Abril abriu”. Passados estes anos todos e pese embora o desencanto e a raiva causada por esta canalha que nos desgoverna, acho que mereceu a pena e a minha postura continua a ser a mesma:
- VAMOS A ELES!

FM disse...

Caro amigo:

Parafraseando - muito livremente - aquele velho poema do Vinicius: me desculpem, mas memória é fundamental.