segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A dor maior

Ao Eugénio de Andrade
pelas palavras que sempre me incendiaram os dias e iluminaram as noites

Dizia o nome dele como se o chamasse a si, na ansiedade de regressar sempre a esse misterioso ritual de pertença e de empatia que começa na proximidade dos espíritos e acaba no emaranhado dos corpos. Depois veio um dia que parecia igual aos outros, mas que ao anoitecer os fechou num estranho círculo de silêncio hostil. E ela virou mais uma vez a cabeça para olhar dentro daqueles olhos, para procurar ainda e sempre a imagem de ambos um no outro. Mas no brilho obstinado daquelas pupilas descobriu apenas uma imagem desfocada e grotesca de si mesma no meio de um campo vazio. E, no mais fundo de si, sentiu-se defraudada. Não se reconheceu a si naquele cenário e menos ainda reconheceu aquele olhar de pedra áspera. Compreendeu que, afinal, vivia uma farsa que ali, naquele instante de revelação, embora envolta nas labaredas da raiva e da incredulidade, exibia toda a sua sarcástica cintilância. E foi também ali, naquele mesmo instante, que alguma coisa dentro dela se quebrou. Quase conseguia ouvir os cacos que resvalavam devagar por dentro de si para se amontoarem por fim lá em baixo, rodeando-lhe os pés.
E não mais conseguiu virar a cabeça para se olhar dentro dos olhos dele, nem voltou a chamá-lo a si ao dizer-lhe o nome. Pronuncia-o, mas já não é um chamamento, apenas uma enunciação como qualquer outra. É que dentro dela já nada pede a água que ele, afinal, nunca teve para lhe dar. E, no mais fundo de si, é essa a dor maior.