quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A interpenetração das artes

Em 1972, Nuno Júdice, ao apresentar o seu primeiro livro de poemas, definia assim a própria poesia: “Eu invento uma poesia que as máquinas poderiam fazer. Baseio-me no princípio de que o sentimento é uma forma gasta de composição Cada uma das minhas palavras é um processo formal. Nada é gratuito ou descurado e eu próprio, ao incluir-me por vontade expressa no poema, me desumanizo e reencarno no rito purificador de emergência lógica. (...)
O que é a poesia senão o conhecimento desmedido da imagem, a transfiguração plena da regra em horizonte, da plástica em consciência? O que é a palavra senão o rio prodigioso dos sentidos, o espaço arquitectural da ordem? O que é a poesia senão palavra dialéctica, coração vivo da totalidade?
Perante os lábios secos da realidade eu afirmo – a escrita começa pelo poema.”

Nuno Júdice, A Noção de Poema, Col. Cadernos de Poesia, nº 23, Publ. D. Quixote, 1972, excerto

E eis, no mesmo livro, o olhar poético sobre uma imagem: precisamente a da praia de Tourgéville-les-Sablons, pintada por Eugène Boudin em 1893. Cada uma com a sua beleza própria, complementam-se na perfeição.


A Praia de Tourgeville
«BOUDIN, Eugène – Pintor do ar
livre, do céu e do mar, foi o primeiro
a procurar fixar os aspectos de constante
transformação da natureza.”


Neste óleo sobre tela, assinado em baixo, à esquerda,
parece-me ver o excessivo amor com que, alguns dias, olho
o horizonte inteiro e as nuvens, como se chovesse, como se o rosto,
sob o peso da humidade, atraísse as suas próprias lágrimas.
Na orla do mar, manchas negras e nítidas, um grupo de mulheres
contempla, em silêncio, em religiosa veneração, a espuma embranquecida
das ondas que rebentam. Não longe de terra, a até à linha das falésias,
a leve impressão do voo das gaivotas, aves marinhas, sombras velozes sobre
o branco escurecido das velas. E o mar, forma enevoada no cinzento
pleno do amanhecer de inverno, atmosferiza em vago e dor o conjunto,
absorve cor, influencia indefinição. Já em terra, no canto inferior
esquerdo, um homem desatola um carro atrelado – e parece imóvel.

Revejo o pintor ao ar livre pintando este quadro. Procurando,
na rigorosa imobilidade dos tons, o movimento natural da paisagem,
não precisou de psicologia, não recorreu à imaginação e ao sonho,
não imitou – reconstruiu um ambiente, perfilizou um horizonte,
fixou, sem liberdade de técnica, com mobilidade sugerida, a praia
de Tourgeville, o mar. A projecção de impressões sobre o solo, a água,
o céu, a intensidade esbatida da luz, tudo o que é efémero,
aqui encontro – sem contrastes violentos, com solidão descendente.

Na origem, a ausência quase de desenho. A sóbria oposição de umas
a outras manchas, o litoral sem o difícil contorno dos rochedos,
formas extensas e assimétricas – isto é, uma arte intimista que,
recusando o barroco, assume a inteira claridade do seu próprio
desenho, recusa o desígnio e a estética, interessa-se, com sábio
misticismo, pela melancolia e pela tristeza, pela fúria tranquila
da composição, pelo estudo da alma e da paisagem, pela descoberta
da sombra e da cor, pelo movimento da realidade, pela pura alusão.
(Idem, pp. 27-29)