segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Grande Silêncio

No ano de 1083, o arcediago alemão São Bruno, que era Reitor dos Estudos Cardinalícios na cidade francesa de Reims, descontente com a igreja do seu tempo, sempre envolvida em eternas querelas de poder e riqueza, decide afastar-se de tudo para se tornar monge. Faz então a sua primeira experiência monástica na abadia de Molesme, então governada por São Roberto, futuro fundador da ordem de Cister. Contudo, aquela vida em comunidade ainda não é o que procura e sai. O que pretende é um sítio ermo, humilde e rústico onde possa dedicar-se por inteiro e sem quaisquer interferências à vida comtemplativa, à oração e à penitência.

Encontra-o em 1084 num vale deserto e selvagem, de difícil acesso, rodeado de montanhas, chamado La Chartreuse, a norte de Grenoble. Aí, juntamente com seis companheiros, funda uma comunidade que se assume como um novo modo de viver no deserto: “unir a uma parte predominante de vida solitária um mínimo suficiente de vida cenobítica ou comunitária que fornecesse ao eremita as vantagens mais prezadas desta última, sem prejudicar aquela” (São Bruno na Cartuxa de Évora, p. 18).

Numa carta dirigida a um amigo do cabido de Reims – Raúl le Verd - e datada de 1096, São Bruno descreve, numa linguagem simbólica e literária, os objectivos da vida e da rigorosa disciplina cartusiana: “O que a solidão e o silêncio do deserto proporcionam de utilidade e gozo divino a quem os ama, só o sabem os que o experimentam.

Aqui, com efeito, podem os varões esforçados recolher-se em si quanto queiram, e morar consigo, cultivar com afã os germes das virtudes, e alimentar-se com alegria dos frutos do Paraíso. Aqui se adquire aquele olhar, cuja visão serena fere de amores o Esposo e cuja pureza e limpidez permite ver a Deus. Aqui se pratica um ócio bem ocupado, se repousa numa sossegada actividade. Aqui, pelo esforço do combate, dá Deus aos seus atletas a desejada recompensa: «a paz que o mundo ignora e a alegria no Espírito Santo» (Rom. 14,17).”

La Chartreuse não era uma Ordem Religiosa e não se regia por nenhuma Regra escrita, sendo o seu método de vida transmitido oralmente, situação que se manteve durante os primeiros quarenta anos da sua existência. Porém, à medida que outros mosteiros foram adoptando idêntica vivência religiosa, tornou-se necessário passar a escrito as orientações espirituais do fundador, São Bruno. É o quinto prior da comunidade – Guigo – quem redige os “Costumes de La Chartreuse”, os quais “serão para sempre a base e fundamento da vida e da legislação cartusiana, subjacentes mesmo à renovação promovida pelo Concílio Vaticano II” (Idem, p. 18). O nome do lugar fundacional - La Chartreuse –, adaptado a cada língua, passou a designar também a Ordem e os próprios monges que a integram. Assim, na língua portuguesa designam-se “monges cartuxos” e “Ordem da Cartuxa”.

A Ordem estabeleceu-se no nosso país graças aos esforços de D. Teotónio (1530-1602) - filho de D. Jaime, Duque de Bragança e de D. Joana Mendonça – que, em 1587, conseguiu que um grupo de monges da Cartuxa espanhola de Scala Dei viesse fundar uma nova Cartuxa em Portugal. O paço real de Évora foi então cedido para a sua hospedagem provisória. Uma missa celebrada na igreja de São Francisco, no dia 8/9/1587, constitui o acto simbólico e fundacinal da Ordem Cartusiana em Portugal, assinalado oficialmente com a redacção e assinatura, dois meses mais tarde, de uma acta pública perante escrivão, onde se registaram todas as concessões e condições para a instalação dos monges. Em 1593 inicia-se a construção extramuros do mosteiro Santa Maria Scala Coeli (Escada do Céu), assim designado em memória da Cartuxa espanhola de onde provinham os monges fundadores. Rodeado de uma extensa propriedade agrícola, na qual os monges trabalhavam, e com os proventos de muitas propriedades entregues à comunidade pelos monges professos, o mosteiro garantiu desde sempre a sua autonomia económica.

Apesar do seu enorme prestígio, após a vitória liberal de 1834, os Cartuxos de Évora conheceram  o mesmo destino de todas as outras ordens religiosas do país: a extinção e a apropriação de todos os seus bens pelo Estado.

Depois de longos anos de abandono e incúria – chegou a ser Escola Agrícola -, o edifício, praticamente em ruínas, foi adquirido pelo Conde de Vil’alva e reconstruído pelo seu neto Eugénio de Almeida, que o devolveu à Ordem Cartusiana em 1960 e onde se vieram então instalar sete monges, para viverem de acordo com as estritas regras da sua ordem: clausura, solidão e silêncio. E por aqui continuam.



O mosteiro já não está, contudo, isolado. Vários bairros têm crescido e, com o tempo, alcançaram os limites da sua cerca. Apesar da ganância falar sempre mais alto quando se trata de construção e urbanismo, julgo que, apesar de tudo, tem havido algum pudor e não se tem assistido, nesta zona de Évora, à construção frenética das aberrações arquitectónicas que são já a marca distintiva de quase todo o resto da cidade, inclusivamente na zona circundante às muralhas. Espero que se saiba respeitar (aceitar seria talvez excessivo nos dias que vivemos) a diferença e a dignidade que aquele espaço representa e que tem tanto direito a existir como qualquer outro, embora os rumos que a cidade (e os seus decisores têm tomado nestes últimos anos) me deixem algumas dúvidas.

E vem tudo isto a propósito de ter estado a ver “Die Große Stille” ou "O Grande Silêncio", o extraordinário filme-documentário de Philip Gröning sobre a vida monástica dos monges Cartuxos na Casa-Mãe da Ordem: La Chartreuse. É um filme avassalador, por causa do silêncio apenas quebrado pelos cânticos litúrgicos dos monges, e sobretudo pela força das imagens. Revela-nos uma outra forma de vida, tão humilde, frugal e exigente que só alguns, dos poucos que sentem o apelo da vocação, aguentam a dureza do convento, os sacrifícios e a rígida e exigente disciplina que a Regra impõe para se conseguir a verdadeira depuração espiritual que os monges pretendem alcançar. Contudo, a serenidade estampada no rosto dos que resistem diz quase tudo sobre o que pretendem alcançar nesta espécie de cápsula do tempo tão distanciada das turbulências exteriores como se não estivesse neste mundo que é o nosso. De repente, é como se os rituais faustosos e teatralizados do Vaticano fossem de uma outra religião. É um filme quase doloroso, mas também fascinante.

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