sábado, 22 de dezembro de 2012

Retrato de família

Ivan Kulikov: Família à mesa; 1938



















Fomos sempre três àquela mesa onde
era servido um costumeiro silêncio carregado
de recriminações, de culpas e de ressentimentos.

Fomos sempre três àquela mesa
onde, ao longo dos anos,
cada um dos convivas foi encontrando
o seu próprio ponto de fuga
para disfarçar o incómodo:
o prato, a televisão ou a janela
por onde o bulício citadino entra na casa.

Fomos sempre três àquela mesa
onde era preciso evitar a todo o custo
que os olhares se cruzassem 
para que a discussão não fizesse
esquecer a comida quase fria nos pratos.

Fomos sempre três àquela mesa
onde todos comíamos à pressa
(mesmo nos dias em que havia tempo),
porque naquele silêncio tenso
a proximidade física era quase insuportável.

Na verdade, no centro da velha casa
familiar com paredes de pedra e taipa,
o que sempre houve foi três mesas separadas
onde cada um de nós, por hábito ou conformismo,
se sentava para comer a sós consigo mesmo,
mas ao mesmo tempo que os outros dois.

Às vezes ainda somos três sentados àquela mesa
feita de três mesas diferentes e incomunicantes.
A dor disso é que, com o tempo, se foi tornando diferente. 
Ou talvez estejamos agora tão habituados a ela
que quase  não a sentimos.

2 comentários:

platero disse...


boa réplica do "éramos cinco à mesa"
do José Luís Peixoto

beijinho

FM disse...

Obrigada.