segunda-feira, 23 de abril de 2012

"Poderia contar mil histórias, (...) mas eram todas falsas, não existia nunca história alguma"



Pintura de João Vieira,
publicada na Obscena, #13 / 14 de Junho/Julho de 2008
Imagem daqui

Segunda, dezasseis.
"As palavras como redes em que ela tentava prender o universo - as malhas mal apertadas, ela esforçava-se tanto por ligá-las, mas havia sempre um ponto em que a rede rebentava e o universo caía,
     a dificuldade de ligar as coisas, o pé e a relva, o telhado e o muro, o sol e a casa, o autocarro e a árvore, a máquina e a sombra, o homem e o cão, qual era a relação entre as coisas que olhava, e por que razão fariam parte de um conjunto? Nada era um conjunto, era ela que se afadigava, correndo atrás das coisas, atando-as com fios em volta, dando-lhes sentidos que não tinham - e que elas de novo deixavam cair, recusavam sempre.
     Temos portanto o vento, o inverno, a árvore, o muro, contou. Temos portanto o sol, a janela aberta, a casa aberta, intacta e sem pessoas - as pessoas tinham-se ido embora, com as suas malas e os seus casacos, os seus sapatos e os seus livros, as suas escovas e os seus problemas, e ela não tinha o menor desejo de segui-las, de olhá-las, de netendê-las, ficava antes assim um longo momento quieta entre os objetos, que de repente eram fascinanates e perfeitos, entregues a si mesmos e sem ligação com nada.
     Poderia contar mil histórias, inventar mil histórias, pensou estendendo-se na relva, mas eram todas falsas, não existia nunca história alguma."
Teolinda Gersão, Os guarda-chuvas cintilantes - Diário (excerto). Lx: O Jornal, 1984, 1ª ed.

Este é (usando a já estafada expressão) um dos livros da minha vida. Tenho a primeira edição, que comprei logo em 84 e que ainda não deixou de me fascinar. A ele regresso muitas vezes, até porque a sua forma diarística permite uma leitura descontínua que acaba por também ser muito apelativa. 

Nunca mais deixei de acompanhar o que a autora foi publicando ao longo dos anos e quase todos os seus livros me tocaram também: "Paisagem com mulher e mar ao fundo", "O Silêncio", "Os Teclados"... Mas estes "guarda-chuvas cintilantes" continuam a ser especiais. Amanhã, Teolinda Gersão virá à escola para falar connosco sobre os seus livros. E eu, que até sou avessa às maquinais sessões de autógrafos nos lançamentos de livros, faço questão de lhe pedir que me assine este - muito manuseado, com o papel amarelecido, com a chancela de uma editora há muito desaparecida - que tem sido meu livro-companheiro ao longo dos anos. Às vezes, a vida proporciona-nos estas oportunidades "cintilantes", e é o que nos vai valendo.

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