quarta-feira, 28 de abril de 2010

Civismos

Agora que as nuvens resolveram fazer uma pausa na tarefa de nos despejar baldes de água em cima, começam já os carros a ficar cobertos de pó.  E claro, logo a consciência cívica de certos cidadãos e também uma apuradíssima preocupação com a higiene e saúde públicas - aliás características de sociedades desenvolvidas como a nossa, como os nossos estimáveis governantes não se cansam de nos lembrar - os obriga a deixar, literalmente, recados... no pó.

São sempre expressões de elevada consideração pelos outros, de uma riqueza linguística e de uma variedade vocabular extraordinárias: "lava-me porco"; "lava-me porra". A pontuação surge esporadicamente mas, na maior parte dos casos, é inexistente. Os anónimos autores devem considerar que o conteúdo da mensagem, por si só, já tem força e riqueza suficientes, não precisando de mais artifícios. Mas o que eu acho ainda mais incrível é a facilidade com que, em qualquer parque de estacionamento, se encontram carros com estas inscrições. Deve haver por aí uma brigada de justiceiros de rua ou algo assim do género!

 Mais até do que a sociologia, penso que devia ser a psicologia a ocupar-se deste fenómeno que, se não for patológico em si mesmo, deve ser pela certa sintoma de alguma patologia. Vejamos então porquê. O cidadão deixa um recado anónimo (como é costume fazer-se por cá) assumindo um discurso de primeira pessoa (-me), como se em vez de um automóvel, estivesse a assumir a identidade de um indefeso ser emudecido por continuados maus tratos, incapaz de expressar a violência ou a humilhação pública de que é, supostamente, vítima. Só que a vítima, neste caso, é.uma... máquina.

Depois, é claro, o juízo de valor expresso sobre o proprietário do carro - "porco". E isto assim, sem sequer saber de quaisquer circunstâncias ou atenuantes que possam explicar uma situação que poderá, até, ser excepcional ou apenas transitória (o mais natural e normal).

Outra questão interessante é a do "porra": a enorme raiva e violência que exprime, como se o tal anónimo cidadão que escreveu o recado, caso se deparasse com o dono do carro, estivesse na disposição de, logo ali, lhe dar uma carga de porrada para ele aprender como é que deve proceder com os bens de que é legítimo proprietário ou utilizador.

Face a esta "sanha higiénica" só posso concluir que estes cidadãos anónimos que inscrevem recados nos carros alheios devem ser eles próprios um exemplo de limpeza e asseio, em tudo. Como tal, não deviam envergonhar-se de dar a cara, isto é, de assinar o que escrevem. Penso mesmo que é legítimo concluir que estes cidadãos preocupados nunca, mas mesmo nunca:
a) cospem ou escarram para o chão (e em Portugal, quando se anda na rua, difícil é não nos cruzarmos com pelo menos dois ou três escarro-cuspidores destes, de todas as idades e classes sociais);
b) despejam as beatas e a cinza do cinzeiro do carro no chão, junto ao carro, quando estacionam num sítio qualquer;
c) encostam repentinamente na estrada, ou se encolhem numa qualquer esquina para urinar, quanto mais públicas e visíveis forem uma e outra melhor, enquanto nós lá vamos passando a fingir que não vemos nada;
d) atiram papéis, garrafas, embalagens, etc, etc, pela janela do carro quando vão a conduzir a alta velocidade, ou para o chão no caso de irem pela rua; ou em alternativa sacos cheios de lixo e electrodomésticos;
e) batem no carro alheio quando estão a fazer manobras de estacionamento e dão à sola como se nada fosse e quem quiser que pague os estragos;
f) vandalizam propositadamente os carros, a coberto da noite, apenas porque sim;
g) infringem propositadamente as regras do código da estrada e do bom senso só para mostrarem como são "machos";
h) assobiam para o ar quando vêem uma criança maltratada, um idoso pobre ou os gritos da vizinha quando apanha a sova diária do marido na apartamento ao lado...

É estranho que, havendo tanta gente que se dá ao luxo de estar atenta a coisas gravíssimas como esta de ter o carro coberto de pó por uma qualquer razão, ou apenas por causa da meteorologia, continuemos a ser confrontados todos os dias com situações como as acima referidas. Por momentos, poderíamos ser tentados a pensar que tudo o resto estaria bem e, não havendo mais nada com que ocupar o espírito...

Para mim, tanto umas como outras são bem graves e demonstrativas do quanto é árduo o caminho que ainda temos a percorrer na área sempre sensível do civismo e do mais elementar respeito pelos outros.

Sem comentários: