sexta-feira, 2 de abril de 2010

A Política (com P grande) e a política (com p pequeno)

Em Setembro passado Mário Soares publicou um livro a que chamou “Elogio da Política”. No Prefácio explica-se dizendo que não escreveu “uma obra de ciência politica”, escreveu “uma reflexão (…) no plano teórico e prático, para que o leitor saiba, desde o início, que a Política não é, na sua essência, aquilo que os seus muitos detractores dizem dela.”. E inicia o livro afirmando que”Está na moda dizer mal da política. E, por extensão, dos políticos e dos partidos.”. Depois, no início de Março de 2010, Mário Soares foi convidado a abrir a série de doze “Entrevistas sobre o futuro” com que o jornal Público comemora o seu vigésimo aniversário. Nela, sintetizou e defendeu perante a jornalista Teresa de Sousa (para mim, uma das melhores jornalístas de política da nossa comunicação social) um raciocínio bastante semelhante ao que apresenta no livro.

Em ambos Soares explica, com a limpidez discursiva de quem conhece a realidade por dentro – e poucos a conhecerão tanto quanto ele – que o mundo enfrenta a sua pior crise desde 1929, com epicentro na América e ondas de contaminação que afectaram depois a Europa e o resto do mundo. É uma das mais graves e perigosas de sempre por ser multifacetada: “uma crise do capitalismo financeiro-especulativo, política, social e de civilização”. Soares considera mesmo que este último aspecto – o civilizacional – é o mais perigoso de todos porque “De repente, dez anos depois do colapso do comunismo, o mundo começou a mudar aceleradamente. George Bush julgava que a América era invulnerável e podia dominar o mundo, por ser a hiperpotência hegemónica, tanto económica, tecnológica como militarmente. Ora verificou-se que não era assim. O 11 de Setembro de 2001 veio demonstrá-lo.” Foi este “primado da economia sobre a política” e o reforço brutal do “capitalismo financeiro-especulativo, chamado «de casino»” (p. 9) que estiveram na origem de toda esta crise global e deixaram marcas profundas até na forma como encaramos hoje tanto a política, como os políticos.

Em consonância com os seus ideais de esquerda, Mário Soares considera que não é possível resolver a “trilogia trágica” das desigualdades sociais, do desemprego e da subsequente pobreza com o recurso aos privados: “É perfeitamente razoável que as instituições privadas queiram lucro e trabalhem para o conseguir. Mas já não é razoável que o Estado se reja pela mesma lógica. É por isso que digo que a política e o mundo dos negócios devem ser completamente separados. Deve ser um ponto de honra para qualquer político. O Estado não tem que fazer negócios. Deve ocupar-se da segurança, da justiça, das questões sociais, dos problemas de cidadania, da posição de Portugal no mundo, da defesa das instituições democráticas, da coesão e unidade dos portugueses. E dar confiança ao país. (…) É indispensável ter uma estratégia clara e a consciência do caminho que devemos percorrer. E mobilizar, nesse sentido, os nossos compatriotas.”

Este caminho é tão bom como qualquer outro para entrar no tema que mais me interessa aqui: a política, os políticos e as suas respectivas funções. Afirma Soares que, hoje, a política “quase está resumida à actividade dos partidos que fazem uma guerrilha artificial entre si. Não se discutem ideias nem se alimentam relações de cordialidade entre os líderes.”. Ou seja, por estes tempos que correm, contemplamos o deserto... de ideias. O próprio Soares afirma que “A política sem ideias e sem causas não tem sentido.”, e que, em Portugal, há gerações boas e outras menos boas. Percebe-se claramente o que pensa sobre a actual geração política que nos governa quando recorre ao seu próprio passado político para dar um exemplo: “Quando veio a Revolução dos Cravos e vivemos a euforia da liberdade, felizmente para nós, a Europa tinha grandes políticos. (…): Willy Brandt, Olof Palme, Callaghan, Mitterrand, Kreisky. (…) Sabiam o que estavam a fazer e para onde queriam ir. Em Portugal havia ideias para o país e queríamos entrar na Europa. A verdade é que passou essa geração e as coisas mudaram. Se olharmos para os dirigentes europeus, também vemos um deserto de ideias...”. Depois regressa ao presente e é ainda mais claro: “A que foi contemporânea dos dois mandatos de Bush foi ensinada a pensar que o importante, na vida, é ganhar dinheiro. O que é importante na política, é o marketing. O que é importante é parecer, mais do que ser... Foi, em parte, esse delírio do lucro fácil que conduziu à crise mundial.”

Começa aqui, para mim, a contradição no que afirma Mário Soares: como é que esta visão lúcida da realidade política actual se compadece com o lamento inicial de que “está na moda dizer mal dos políticos e das suas políticas”? Se estamos, como o próprio explica, perante uma geração esvaziada de ideias consistentes para o futuro, guiada apenas pela ideia do lucro fácil e a qualquer preço, não vejo como podemos então elogiá-los, a eles e às suas políticas mesquinhas que, essas sim, é que subordinam e vergam o Estado aos interesses económicos privados.

Irrita-me até quando o próprio Soares afirma, tanto no livro, como na entrevista, que a actual crise global foi provocada, “não pelos políticos, mas pelos que queriam minimizar a política” e que as “novas gerações” perceberão isso mesmo. Não me parece eticamente muito correcto que assim se branqueiem os erros dos que, em nome dos interesses pessoais e dos amigos mais próximos, venderam a alma ao diabo e “perderam a sensibilidade para os valores morais e para perceber a importância do que é essencial para o futuro dos seres humanos. Só sentem a necessidade de ganhar dinheiro, de qualquer maneira...”, como diz o próprio Mário Soares.

Por fim, acho profundamente injusto que, ao ilibar assim a actual geração que nos (des)governa, Mario Soares faça cair sobre os ombros da que agora despertam para as suas responsabilidades cívicas, a obrigatoriedade de “mudar de paradigma, de modelo financeiro, económico, social, político e ambiental. Carecemos de princípios éticos estritos e obrigatórios para que um capitalismo diferente, com dimensão social e ambiental, possa sobreviver...”. Além de ser um verdadeiro atestado de incompetência passado à actual geração de políticos, é ainda um apelo ao adiamento do que já deveria estar a ser feito para resolver a crise e, sobretudo, uma espécie de amnistia para as negociatas sujas que têm sido realizadas à conta de todos nós, pagadores de impostos e financiadores desta “coisa pública”.

Achei também muito curiosa (ou talvez não) a forma como Soares aproveitou a ocasião para criticar e “mandar recados” àcomunicação social. Segundo ele, a imprensa, sobretudo as televisões, repetem “mil vezes a mesma coisa, alimentando as audiências e as páginas dos jornais. Se for um escândalo, ainda melhor. Os jornalistas de hoje só querem falar disso. É o caminho seguro para o descrédito do jornalismo de qualidade.” Mais à frente volta ao assunto e reforça a ideia dizendo ainda: “E só se fala de quê? Das crises, das nossas fragilidades, do derrotismo nacional, que entrou em moda. E, obviamente das escutas ilegais, dos escândalos, das roubalheiras. Mas não se discute como é possível combater tudo isso...”. Pois, de facto, se as negociatas e roubalheiras ficassem no segredo de quem beneficia com elas e não chegassem ao conhecimento público era bem melhor! Claro que até pode haver algum exagero na forma mas, para mim, o conteúdo é bem mais relevante: é bom e salutar que a actual geração de políticos medíocres, mais ou menos corruptíveis ou já corrompidos, saiba que não está acima do julgamento da opinião pública, já que da justiça dos tribunais não se pode esperar grande coisa (muito por obra e graça dos senhores de quem se fala). Numa outra perspectiva - atrever-me-ia a dizer que optimista -, também podemos pensar que a discussão de “como é possível combater tudo isso”, surgirá depois de assentar a poeira dos escândalos e de percebermos que não queremos ser governados por gente desta.

Por isso, os grandes detractores da política não são os “outros” – os cidadãos a quem os jornalistas envenenam sistemática e deliberadamente o espírito – como afirma Soares e mais uns quantos do seu partido, são os próprios políticos que Soares defende neste seu “Elogio da Política”. Aliás, nestes últimos anos, sempre que Mário Soares decide (por si mesmo ou por pressão de outros) “prestar serviço” ao seu partido de sempre e, sobretudo, sempre que tem tentado vender a ideia de que o seu actual líder (José Sócrates) se pode vir a tornar num segundo Mário Soares, desde que o povo lhe dê a oportunidade que merece, fica mal na fotografia, pois o material de que dispõe não é bom, bem pelo contrário. É apenas fotogénico, mas isso só não chega. E Soares, que já leva mais de 70 anos de uma carreira política única, que conviveu e debateu ideias com todos os grandes líderes do século XX, que viveu por dentro momentos únicos e irrepetíveis da nossa história, que conhece todos os que contam no mundo global deste início de século, tem que saber disso.

Apesar destes deslizes, continuo a sentir uma grande admiração por Mário Soares e acho que o seu “Elogio da política” é uma lição magistral (no sentido literal da palavra) sobre a história da política contemporânea, que o autor conhece como poucos. Só lamento que caia no próprio facilitismo que tanto critica: “Em democracia é fácil e, além disso, gratuito.” dizer “mal da política. E por extensão, dos políticos e dos partidos.”. Viro aqui, de forma deliberada, o feitiço contra o feiticeiro: também é “fácil” e “gratuito”, quando nos convém, criticar os que dizem mal da política e põem a nu as podridões dos políticos.

É, pois, preferível concluir com as palavras que, de facto, fazem o elogio da tal Política (com P grande) que Soares tanto preza e que eu também (ainda) aprecio: “Mas para além das tarefas gigantescas do século XXI – assegurar a paz, pelo controlo completo e universal de todas as espécies de armas -, é indispensável lutar contra a pobreza e a miséria, no plano global, de acordo com os “Objectivos do Milénio”, em relação aos quais praticamente nada se fez. (…).” E acrescenta finalmente que “O fenómeno da cidadania global, que se iniciou nos finais do século passado (...) é um produto positivo da globalização e das novas tecnologias de informação. Confere-nos a esperança de que podemos sair desta crise global, evitando o caos e a barbárie, se formos capazes não só de vencer a crise, através de um corte cerce com as políticas do passado, mas também lutando, coerentemente, em favor da paz, contra a pobreza, em todos os continentes, pela justiça social, contra as pandemias e em defesa do nosso planeta, tão ameaçado. No fundo tudo está inter-relacionado. É preciso que os governos responsáveis o compreendam e procedam em conformidade.” (pp. 146-152).

Todos nós, simples cidadãos, queremos acreditar que será assim.

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