quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Arqueologia das palavras

Malcolm Bradbury, escritor britânico de apurado sentido crítico e satírico, descrevia assim na introdução ao livro "Cuts" (em português "Corta!", publicado pela D. Quixote em 1990), a sociedade britânica da era Tatcher:

"Era o Verão de 1986 e por todo o lado havia cortes. Todas as manhãs, ao abrirmos o jornal (...) «corte» era o mais comum dos substantivos, «cortar» o verbo mais regular. Eles estavam a fazer incisões de bisturi na indústria pesada, eles estavam a cortar o aço às fatias, eles estavam a cortar - pouco carvão extraindo já - no carvão. As artes era à machadada, as ciências postas a fazer regime, a inflação e os serviços externos da BBC objecto de cortes. Eles estavam a reduzir os gastos públicos, eles estavam a baixar as taxas de juro, eles estavam a eliminar a sobreprodução e os postos de trabalho não necessários. (...) Eles estavam a fazer em picado as escolas, a desbastar as universidades, a dar tesouradas no serviço nacional de saúde, a esculpir hospitais, a fechar blocos operatórios - de modo que, pelo menos num sentido, havia de longe muito menos cortes do que dantes. Eles estavam a cortar o desperdício à faca, a reduzir o supérfluo a cavacos, a extirpar o excesso rastejantes. Havia pessoas que diziam que estavam a cortar o país em dois - o Norte do Sul, os ricos dos pobres. Havia outros, principalmente os que tinham sido cortados, que se queixavam de que os cortes eram uma espécie de hara kiri nacional, a auto-mutilação dum país no último estádio da decadência. Outros havia porém, na sua maioria os que tinham feito uma boa parte dos cortes e que agora queriam ver um corte nos respectivos impostos, que explicavam que tudo isto era uma forma de cirurgia saudável, a eliminação das excrecências, da podridão e do cancro, e que o país ia ficar melhor, muito melhor do que dantes.
(...)
De modo que era, esse Verão de 1986, o tempo da determinação, do realismo, do varrer o pó e fazer limpezas, do deitar fora o que havia a mais disto e acabar com o excesso ruinoso daquilo. Era tempo de nos vermos livres das doces e velhas ilusões e substituí-las por ilusões novas e duras. O realismo estava de volta na filosofia e na economia, no comércio e nos bens de consumo, na pintura e no teatro, na poesia e no romance (...). Era uma boa altura para a iniciativa, para a aventura comercial, para o capitalismo comunitário, para a oportunidade, e havia mais pessoas a comprar acções do que nunca. E todas estavam a ficar mais magras e mais limpas, mais sagazes e mais mesquinhas, pois, bem vistas as coisas, em tempo de cortes é melhor ser-se bruto do que delicado, hardware do que software. As pessoas que dantes falavam de arte, agora só falavam de dinheiro e bichanavam sobre a textura das Telecom, a sedução da Britoil, o deslumbramento do gás. Saíam do Japão e entravam para a Europa, saíam de sociedades de gestão de capitais e fortunas sediadas no estrangeiro para fugirem aos impostos e entravam para fundos de investimento abertos. De dinheiro, era só de dinheiro que havia fantasias e sonhos e, embora tivesse havido uma redução do emprego, havia, sem que se soubesse bem como, uma quantidade apreciável de dinheiro em circulação. (...) Este era um Verão de forças de mercado, de capitalismo de consumidores, de comércio forte, de fusões e OPAs."

Também por cá, nessa mesma década de 80, se passou algo de semelhante sob a batuta «inspirada» (na Inglaterra de Tatcher) do um primeiro-ministro (que é agora presidente reeleito). Os resultados desses "inspirados cortes" - e não só - estão bem à vista neste Inverno de 2011, em que já não há "cortes" que nos valham e, sobretudo, que cheguem para disfarçar a crise que estamos a atravessar.

A pergunta que se impõe agora é: o que virá a seguir? Parece, pelo menos para já, que ao software sucedeu o spyware, e ao realismo sucedeu o pessimismo. Só falta perceber o que vai suceder à iniciativa individual, à aventura comercial e financeira e ao capitalismo global, mas os ventos revoltosos, que já levantam poeira nas ruas de tantos países por esse mundo fora, não devem tardar a trazer-nos algumas notícias desse incerto amanhã...

Sem comentários: