quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Da aflição à expiação

Vi Angélica Liddel uma única vez, no início de dezembro de 2008, no Bibliocafé Intensidez (entretanto encerrado). Estava ali para apresentar o livro Tríptico da Aflição - editado também pela Intensidez - e composto por três peças de teatro: O Casal PalavrakisOnce Upon a Time in West AsphixiaHysterica Passio. Na sinopse da obra declara-se que: "As três peças apresentam-se como um retábulo onde se expõe um fresco de histórias de perversão, tortura, dor, sofrimento e culpa, integradas no seio da família e das relações parentais. Angélica concluí este ciclo de trabalhos com um manifesto pessoal: Lesões Incompatíveis com a Vida."

Imagem de http://intensidez.blogspot.com/

Nessa noite, Liddel falou desse livro, do seu teatro, daquilo que pensa sobre a identidade das mulheres e dos homens e sobre o mundo cada vez mais violento e cruel em que vivemos. Perante uma audiência no mínimo surpreendida falou da sua recusa em ter filhos, da violência que leva consigo para o palco, das automutilações, da vontade de chocar, de chocalhar e de inquietar os espíritos de todos os que a vão ver ao vivo. Ou como ela própria diz: "Costumo trabalhar com o que me indigna, com o que detesto, e há coisas destestáveis no facto de ser mulher. Quero falar da solidão depois do desamor. Quero dizer que não há perdão para isto. Acredito no castigo. Sem castigo não pode haver redenção, não pode haver epifania." (Ípsilon, 4/2/2011).

Angélica Liddel circulou durante alguns anos na sombra, em festivais de teatro mais alternativos e marginais. Em Portugal, apresentou-se várias vezes no Citemor onde se tornou uma espécie de culto, do tipo ou se gosta ou se odeia. Usa o corpo como forma de protesto e faz, literalmente, um teatro em carne viva, onde o sangue que escorre sobre a pele é real.  Participu o ano passado no festival de Avignon com a peça "La Casa de la Fuerza" e, de repente, o seu nome e o seu teatro tornaram-se uma espécie de fenómeno de que todos falam e que todos querem ver. A peça vai ser representada esta semana (11 e 12) na Culturgest:



"La Casa de la Fuerza" foi escrita depois de uma viagem ao México e de ter tomado contacto com uma realidade aterradora. Nela, Angélica Liddel conta como, desde a década de 90, as mulheres mexicanas são sistematicamente violadas, brutalizadas e assassinadas às centenas na zona de Ciudad Juarez por "desconhecidos" que nunca até hoje foram descobertos, quanto mais acusados e condenados. Segundo a estatística da Amnistia Internacional só entre janeiro e outubro do ano passado foram mortas mais de 300, de todas as idades e condições sociais. O fenómeno tomou tais proporções que a criminologia já lhe deu até uma designação: feminicídio.

É justamente sobre estes crimes recorrentes e aparentemente inexplicáveis e sobre a impotência - ou indiferença - das autoridades policiais (afinal são apenas mulheres, pobres ainda por cima),  que Roberto Bolaño também escreveu em 2662, n' A Parte dos Crimes (Quetzal, 2009).

Não vi a peça de Angélica Liddel, mas ainda tenho bem presente a sensação de frio no estômago, a náusea, a repulsa e, ao mesmo tempo, o terrível fascínio que me acompanhou durante a leitura de Bolaño. Apesar da estranheza intimidante que me invadiu naquele serão diante da figura e das palavras de Angélica Liddell, só posso concluir que é bom que alguém tenha a coragem de denunciar desta forma os crimes sem castigo e de fazer em palco o luto por tantas mortes sem sentido. Se calhar, é bom que alguém faça em palco a expiação de todas as culpas que são, afinal, também as nossas culpas (pela indiferença silenciosa e apática com que contemplamos o mundo a desmoronar-se à nossa volta) 

De tudo isto fica uma só palavra: estupefacção. Primeiro, porque o efeito anestesiante - e viciante - da violência quotidiana do mundo em que vivemos parece não conhecer limites. Segundo, porque cada vez mais me parece que há estranhas coincidências e empatias entre as pessoas, o que as leva a pensar, dizer ou escrever sobre as mesmas coisas, ainda que nunca se tenham visto ou conhecido. Finalmente, porque a forma quase pornográfica como o mundo globalizado "ignora" deliberadamente certas infâmias gritantes, mas escolhe falar e chafurdar obsessivamente noutras - e as razões por detrás disso tudo -, não deixará nunca de me espantar. Nem de me atormentar.

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