quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Cacos

Certo dia, o vaso de faiança que havia à entrada escorregou das mãos apressadas, escaqueirou-se no chão com estrondo e logo ficou desfeito em grandes bocados de arestas irregulares. Ainda aturdida apanhei do chão, um a um, três grandes cacos, desejando muito que fosse possível reuni-los e reconstituir o velho, familiar vaso esboucelado e encardido pelo tempo que sempre tinha estado ali, na entrada da casa. Porém, a impossibilidade da tarefa tornou-se óbvia: ainda que fossem bem colados, ou até gateados, aqueles três cacos não mais voltariam a formar o mesmo vaso de antes. O velho, familiar vaso de faiança até poderia retomar o seu formato original, mas nunca seria mais do que três grandes cacos colados. E assim ficou, para sempre, irremediavelmente escaqueirado.

Tenho guardado esses cacos como se o vaso que já foram um dia ainda estivesse intacto. Guardo-os porque ainda não arranjei coragem para me desfazer deles como se, ao fazê-lo, estivesse também a deitar fora três grandes bocados de mim mesma. Guardo-os porque não consegui, ainda, começar a esquecer a imagem daquele velho e tão familiar vaso de faiança que um dia, há já muitos anos, escorregou das mãos e se desfez em três cacos que nunca mais puderam ser colados. Exactamente como aconteceu à nossa vida na casa que ficava por detrás do velho vaso de faiança. E de tal forma o tempo foi confundindo as memórias de tudo que, às vezes, já não sei se os cacos que ainda guardo são os do velho vaso que se partiu, se os da nossa vida que então se escaqueirou.

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