quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Glossário (im)poético de natal

Há palavras que, nesta época, estão por todo o lado. Repetem-se em incontáveis “mensagens” que circulam por aí, mas que pouco dizem de facto. Soam bem às consciências, como se o simples factos de as dizermos, escrevermos e repetirmos até à saciedade bastasse para curar os males do mundo... Aliás, parece até mal não as dizer. O problema é que algumas dessas palavras estão gastas, outras sujas, outras ainda envelhecidas ou doentes. Há as que já não se lembram do seu verdadeiro sentido, porque se deixaram corromper. Há ainda as que perderam sentido e ficaram vazias. Assim cada um enche-as com o sentido que mais lhe der jeito na ocasião. No natal então, algumas dão mesmo muito jeito para enfeitar os sms e fazer bonito nos mails. Mas há nelas um lado negro... 

LIBERDADE és ainda uma lírica imagem!...
Equivales a cada um poder morrer de fome,
no enxurdeiro, a um bom sol, sob uma carruagem!...

FRATERNIDADE, invento alegre de acrobatas!
Lembras-me sempre a mim patíbulos, calvários,
pelourinhos, polés, monstros canhões, chibatas.

IGUALDADE, brasão de entes humanitários,
como te entendem bem, lá, na africana gente,
senhores de roça vis... na Europa os milionários!

JUSTIÇA, desleal balança, com dois pratos,
ambos de ouro de lei, porém com pesos falsos,
tens dentro de um Jesus, e no outro Pilatos.

AMOR, volata azul, sonata extasiante,
que se volve mais tarde em cutelo ou baraço,
reduzes a mulher a mártir ou bacante!...

ALTRUÍSMO, expressão sonora com que engraço!
Tem um contra porém... ser o anzol traiçoeiro,
que ao senhor dá a uva e ao escravo o bagaço.

PAZ, visão cor-de-rosa e que enternece o zote!
Corresponde a ter dez milhões de combatentes,
balões com melinite, e mil naus de alto lote.

FAMÍLIA lembra o pai, lembra a esposa, a criança,
causa terna emoção... sobretudo quando há
um tio excepcional que nos lega uma herança.

ESMOLA, flor que o high life hoje planta em gazeta,
e expõe como leões, em feira, à vozearia,
com ruídos de tambor e toques de trombetas.

LUXO, aroma subtil e doido no ar disperso,
nevrose do cetim, a esmeralda, o veludo,
mais que a Sífilis e o Ouro apodrece o universo.

HUMANIDADE, som de flautim feiticeiro,
que tanto tangem Nero e Judas de Isacriote,
como o rei, o histrião, o dentista, o coveiro!...

Eis a tua autópsia ó mundo actual, teu cinismo!...
Tudo é mentira em ti. Por isso hás-de rolar,
cadáver falso e vil, aos ervaçais do abismo.

Gomes Leal, in Mentiras Sentimentais,
Fim de um Mundo (Sátiras Modernas)
(Texto com supressões e adaptações)

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