quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Tópicos de uma vida sem história

Nasce numa abastada família alentejana como única herdeira de considerável fortuna. No fim da adolescência apaixona-se por um jovem que, de seu, apenas tem um palminho de cara. A família insurge-se, proibe, ameaça... mas não há nada a fazer. Pouco tempo antes do casamento ainda tem que lidar com o suicídio do pai que adorava. Como era norma nos idos de cinquenta, o noivo torna-se sócio e toma conta do negócio familiar. À agora jovem esposa cabe supervisionar o bom funcionamento do lar e as criadas. A vida é burguesa, desafogada, sem episódios nem preocupações.

Quando os dois filhos estão já na universidade, há necessidade de contratar uma nova funcionária para a loja. De origem humilde, jovem e expedita, a rapariga não demora muito tempo a compreender que a vida lhe está a dar uma oportunidade única, que ela agarra com presteza. Meses depois, desfeito um noivado de anos, já vive na “casa posta” pelo patrão, como se dizia na altura, e controla-o por inteiro.

O casamento torna-se-lhe insustentável, mas a separação é litigiosa. O marido apropria-se de todos os bens familiares, deixando-a na penúria. Segue-se um processo de partilhas que se arrasta no tribunal por quase dez anos, com peripécias surrealistas à mistura. O primogénito toma o partido do pai e o benjamim testemunha a seu favor. Todos na família acabam por tomar partido e passam a encarar os outros como adversários que é preciso aniquilar.

Os irmãos só voltarão a falar-se mais de vinte anos depois, quando o acaso junta, na mesma universidade, duas primas que não sabiam da sua mútua existência. (Re)descoberto o parentesco, as duas jovens decidem voltar a reunir a família desavinda. O filho quase pródigo regressa então para lhe apresentar as netas que nunca tinha conhecido. Sucedem-se almoços, longas conversas (re)vêem-se álbuns de fotografias, filmes de família... Tentam recuperar o tempo que ficou vazio na memória, para que não pareça perdido. Contudo, sente-se que paira uma sombra, que o passado tinha deixado marcas profundas e que o grau zero da desconfiança, da inveja e da cobiça já não era possível. Quando altera o testamento para incluir o filho mais velho na herança, a brilhante mas muito fina camada de verniz começa a estalar e o mais novo dos irmãos, até aí único beneficiário, dá sinais claros de desagrado.

Adoece e os filhos decidem interná-la num lar. Tudo é cada vez mais difícil entre os irmãos que começam de novo a afastar-se. O casamento do mais velho deteriora-se e acaba num divórcio a que se sucede um processo de partilhas com incríveis semelhanças com o dos pais.

A casa onde nasceu e sempre viveu, cuja propriedade tinha sido atribuída ao ex-marido, é vendida em segredo pelo primogénito com a conivência do pai. A descoberta fortuita do negócio precipita tudo: o ódio entre os irmãos é agora maior que nunca. Como sofre de demência já não tem consciência plena do que se passa à sua volta. Só sabe que assinou uma procuração a dar plenos poderes ao filho mais novo para que ele se aposse de todos os bens, uma vez que os considera legitimamente seus e não pretende partilhá-los com o irmão.

Algum tempo depois, o pai e a sua muito mais jovem esposa, mudam-se praticamente para casa do filho mais velho, agora a viver sozinho. Uma florista, que conhece a família, manifesta estranheza pela frequência com que o primogénito compra grandes ramos de rosas e antúrios. Acha sobretudo estranho porque só o vê acompanhado pela madrasta e pelo pai. Meses depois, o pai telefona ao filho mais novo, com quem não trocava uma palavra há trinta anos. Entre soluços e gritos conta que que não tem um cêntimo, pois todos os bens estavam no nome da nova mulher e, sobretudo, que já não tem mulher, uma vez que esta o trocou pelo filho mais velho. Pede-lhe ajuda para reorganizar a vida, pois não sabe o que fazer: está só, numa casa vazia, com uma modesta pensão e hábitos de vida não compatíveis com a quase indigência. O filho diz que sim, que vai ajudá-lo.

O pai passa agora os dias junto à cama onde ela espera que a morte venha buscá-la. Sempre que alguém a visita ele conta com detalhes o que lhe aconteceu, em tom quase histérico, com os olhos injectados de raiva. Enquanto ele fala, ela olha-o em silêncio, com uma expressão enigmática no rosto fechado. Não há como saber o que pensa desta reviravolta da vida: o corpo inerte mal faz vulto na cama, já não reconhece quase ninguém e não pronuncia mais do que alguns sons praticamente inaudíveis. 

Neste dia, contudo, dá mostras de reconhecer a amiga de longa data e das horas difíceis, pois sorri quando a olha. No fim, a amiga diz-lhe baixinho: vou-me embora. E ela responde de modo surpreendentemente claro: eu também vou

Só posso desejar-lhe que a viagem seja breve e lhe proporcione, por fim, algum descanso.

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