sábado, 24 de julho de 2010

Caminho do mercado

De vez em quando, ao sábado, quando a manhã exala ainda os restos da frescura nocturna, saio de casa para ir ao mercado. Percorro de carro, primeiro a longa rua e o bairro de atarracadas e salazarentas casas operárias que fica à minha direita, enquanto à esquerda vou acompanhando a linha de caminho de ferro que agoniza no corredor aberto na terra para a sua passagem. Na parte final deste primeiro percurso encontro do lado direito o 'ground zero' em que se transfomou a escola e, do lado esquerdo, as ruínas de uma velha casa e da bela quinta onde, em tempos, brilhou de apuros.

Depois entro na larga e comprida avenida rasgada na cidade à custa da muralha de pedra que a circundou. Bordejada com árvores de copa exuberante, plantadas em tabuleiros de relva verde, desafia o sol que por ela entra livremente e aquece as vivendas que exibem o seu fausto burguês dos dois lados da avenida. Se fosse a pé teria chegado lá ao fundo ofegante, mas assim, em apenas alguns minutos, chego ao fim da avenida e viro à direita. Vinte metros à frente viro de novo à direita e, logo depois, à esquerda.

Chego à praceta escondida e quase esquecida onde há sempre lugar para deixar o carro. Está cercada pelas traseiras de vários edifícios imponentes – o antigo convento das maltezas, uma das muitas dependências do quartel militar da cidade – e de velhos armazéns caídos em desuso. As paredes descaliçadas, os portões que escorrem uma ferrugem lenta, matizada de vários tons de vermelho, as árvores descoordenadas que sobrevivem sabe-se lá do quê, os carros que apodrecem, ali deixados ao abandono, não enganam: estamos mesmo no centro de uma cidade que definha lentamente, há décadas. Saio do carro e tomo a direcção da rua que, de tão estreita e sinuosa, parece ser abobadada. Aí, à minha esquerda, sucedem-se portas de vários feitios, cores e materiais, pequenos postigos e aberturas rasgadas a custo nas espessas paredes, a imitar janelas. Algumas portas ou meias portas abertas escondem o interior escuro atrás de cortinas garridas, de onde sai um bafo frio de humidade e, de uma ou outra, o som do rádio ou da televisão. Há mesmo um vago cheiro de refogado que se deixa ficar pelo ar parado e bafiento da rua. Um velho tanque de cimento, já muito escalavrado, encosta-se a um canto como se quisesse esconder-se. Logo ao lado há roupa estendida num cordel e vasos feitos de velhas latas e baldes, carregados de verde e de flores. À minha direita apenas uma parede cega, suja e já quase sem cal. São edificações antigas, degradadas, onde vive sobretudo gente idosa e pobre, mas digna. A prová-lo está este cartaz que encontrei pendurado a meio da rua, a lembrar que boa educação e, sobretudo, respeito pelos outros, também é isto:
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(Estremoz, 24/7/2010)


E depois, lá à frente, o grande rossio e o mercado a céu aberto, a festa dos cheiros e das cores. Sobre a praça paira uma nuvem sonora feita de conversas, de risos, de carros que passam vagarosos, como que à procura de alguma coisa (se calhar de um sítio para se arrumarem) e de música roufenha e pimba que sai dos altifalantes estrategicamente posicionados, mas que ninguém escuta. Os velhos e velhas sentados no passeio empedrado vendem ovos, galinhas, pintos e coelhos vivos, mas quase mortos de calor. Há por todo o lado ervas secas cuja utilidade é preciso conhecer ou perguntar ao vendedor, que então as identifica e explica pacientemente aos ignorantes citadinos como é feito o chá e que maleitas cura.

Negociei logo ao início um grande ramo de orégãos. A seguir, levada apenas pela curiosidade, comprei melões amarelos com pinceladas verdes, de intenso perfume, a que o vendedor chamava “marmelinhos”, mas que a mim me lembraram mais os tropicais mamões, tanto pelo formato, como pela cor. Mais à frente, negociei um grande ramo de flores de palha de variadas cores, um molho de trémulas beldroegas crescidas nos canteiros das batatas e, claro, as gulosas ameixas, ou brunhos como se diz por aqui, doces como bombons verdes.

Do outro lado da sebe de buxo que delimita a praça estavam as velharias onde comprei um prato de faiança de sacavém, estampado a preto e branco, como tantas vezes as minhas manhãs de sábado, pensei. E retornei a casa, exactamente pelo mesmo caminho, mas agora no sentido inverso.

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