segunda-feira, 19 de julho de 2010

E se um bando de avestruzes, de repente, lhe desse umas bicadas?

Keith Floyd tornou-se conhecido no mundo inteiro sobretudo através dos programas de televisão que realizou em Inglaterra e em diversos outros países. Mais do que a comida ou a bebida, era a sua personalidade flamejante que captava a atenção dos seus muitos seguidores. Apreciador das coisas boas da vida, da boa comida e, sobretudo, da boa bebida, Floyd não tinha medo de dizer o que pensava e, por diversas vezes, essa atitude lhe trouxe dissabores.

Lembro-me de uma série de programas sobre vinhos franceses (Floyd Uncorked), que realizou em colaboração com um enólogo inglês (JP), nos quais, sempre que o parceiro se alongava nas explicações técnicas, Floyd o interrompia com toda a naturalidade para dizer que estava na hora de provar mas era o vinho e deixar a conversa fiada de lado. Preparava depois alguns pratos da cozinha francesa nos sítios mais improváveis, como no meio de uma vinha, ao sol e com temperaturas próximas dos 40º, ou à beira-mar com uma nortada tal que o obrigava a reacender o gás de dois em dois minutos ou a apanhar continuamente os utensílios que tombavam na/da mesa.

Keith Floyd era também senhor de uma técnica culinária muito própria, atirando os ingredientes para dentro da panela, para já não falar da sua preferência muito pessoal por guisados, os quais preparava substituindo quase sempre a água da cozedura por... vinho. Além disso, enquanto preparava o prato, fazia questão de abrir uma garrafa de bom vinho, de preferência francês, que bebia deliciado, enquanto discorria sobre a paisagem, sobre o próprio prato que estava a preparar ou sobre algum episódio curioso da sua carreira de 'chef'. Não é preciso um grande esforço para adivinhar que, com as peripécias das gravações pelo meio, acabava muitos programas já um tanto alegre e, completamente descoordenado, deixando cair os utensílios, entornando líquidos, ou fazendo mais barulho com os tachos do que o necessário, por exemplo. Digamos que o álcool fazia parte do seu charme muito pessoal, embora tivesse tido alguma responsabilidade na morte um tanto prematura de Floyd no ano passado.

Um dos programas de televisão, e de cozinha, mais divertidos que já vi na minha vida é dele. Acho até que nem os Monty Python conseguiriam fazer melhor. Passou-se o episódio na série de programas que Floyd dedicou à África do Sul onde, além de ter deslumbrado e vencido a relutância das mulheres em aldeias remotas com os seus caldeirões de comida fervilhante, cozinhada no chão em grandes fogueiras, decidiu um dia preparar um belo guisado de avestruz numa quinta de criação das ditas. E não esteve com meias medidas: instalou-se com armas e bagagens, precisamente, no meio de um numeroso grupo das ditas, envergando até um chapéu enfeitado com uma vistosa pena de avestruz. Estas, certamente surpreendidas com a inusitada visita rodearam-no e rondavam, cheias de curiosidade, a bancada de trabalho. Foi apenas uma questão de minutos até uma delas dar a primeira bicada num dos ingredientes expostos em cima da mesa. A partir daí ninguém mais as conseguiu deter, nem à sua fúria devoradora. Mas, com a descontracção que lhe era caraterística, Floyd lá continuou o seu guisado de avestruz com vinho e cogumelos como - que aliás, tinha um ar delicioso - ignorando soberanamente os incómodos bichos, até que não lhe foi mais possível continuar pois todas as avestruzes o cercavam e já bicavam violentamente em tudo o que estava à vista. Nem o tacho do próprio guisado - e respectivo conteúdo - escaparam incólumes, apesar de estarem a ferver, e bem, sobre o lume. E a Floyd ninguém mais o viu, pois claro. Enfim, de rir até às lágrimas.

E vem tudo isto a propósito de uma daquelas reuniões decorativas que me ocupou boa parte da tarde e na qual marcaram presença alguns ilustres representantes da administração educativa regional, muito compenetrados no seu papel de controleiros e durante a qual, ouvindo a forma como esta gente sabe exactamente aquilo que as escolas devem fazer para resolver os problemas com que se debatem há décadas, dei por mim a pensar que bom seria se um bando de avestruzes em fúria entrasse pela sala dentro e começasse às bicadas em tudo e em todos a ver se aquele suplício acabava mais cedo. Mas, claro, não aconteceu nada disso. Nem poderia, quanto mais não fosse porque Keith Floyd é irrepetível.

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