quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Vida severina

Em época natalícia desmultiplicam-se os bodos aos pobres com transmissão directa pelas televisões à hora dos telejornais, promovidos tanto por instituições e associações, como por privados, assim ao estilo alívio da consciência colectiva de um país que sabe serem cada vez mais profundas as desigualdades sociais entre ricos, cada vez mais ricos, e pobres, cada vez mais pobres, com uma espécie de terra de ninguém pelo meio: a da classe dita noutros tempos «média», que agora alimenta  novas formas de pobreza, nascidas das dificuldades em respeitar compromissos financeiros e que, a seu tempo e com a perda de emprego, casa, família, etc. irão engrossar a fileira dos novos indigentes: os do colapso do sistema financeiro (inter)nacional. Mas há sempre umas bolsas de miséria que escapam a tanta generosidade. A SIC revelou uma delas na semana passada e, claro, aproveitou para explorar de forma indecente a situação, arvorando-se uns ares de superioridade informativa e humanitária, como se denunciar o que está errado na nossa sociedade não fosse um dos desígnios dos media.

...para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história da minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra...

Continuam a chegar às centenas, todos os dias. Ninguém sabe ao certo quantos. A miséria em todos os graus, matizes e variantes (im)possíveis, a instabilidade social, política e económica, ou mesmo a guerra são a adrenalina que os move. Dão o dinheiro que têm, e sobretudo o que não têm, a angariadores sem escrúpulos, percorrem e aguentam milhares de quilómetros para tentar alcançar um único sonho: viver e trabalhar num país da 'rica e desenvolvida' União Europeia. Nem sequer pedem muito: apenas sobreviver.

Nunca esperei muita coisa, (...)
Sabia que no rosário
de cidades e de vilas, (...)
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas (...)
o meu braço esperariam...

Uma vez no nosso país, os que têm sorte aceitam tudo e de bom grado, até a hipócrita e condescendente xenofobia de muita da nossa boa gente. Aceitam trabalhar excessivamente por quantias irrisórias, em condições tão más que, muitas vezes, ficam invalidos ou doentes; viver em condições indignas e fazer os trabalhos que muitos portugueses - apesar das queixas de que isto está mau - já se podem dar ao luxo de recusar. No fundo, aceitam fazer o tipo de trabalhos que, não há muito tempo atrás e agora com a crise cada vez mais, muitos portugueses eram obrigados a aceitar aí por essa Europa fora, exactamente pelas mesmas razões. Aceitam trabalhar para patrões sem escrúpulos que desconhecem em absoluto o significado de palavras como respeito ou dignidade e, por isso, nunca tiveram a intenção de lhes pagar a vergonha a que chamam salário. São a galinha dos ovos de ouro desta escumalha humana gerada pelo lado pior das economias liberais.

Mas (...) esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca, (..)
ou meu aluguel com a vida...

No mundo dos ricos estes enteados da má-sorte nem sequer são números, quanto mais pessoas. Por isso, acabam, literalmente, na lixeira humana das grandes metrópoles. No fim desta eficiente linha de montagem da exploração e da humilhação humanas resta-lhes a mendicidade, a marginalidade, a prostituição, o álcool, a droga... e é nos contentores do lixo que fazem o seu bodo diário... Mesmo em época de apelos natalícios e eleitorais à solidariedade e afins, são tão descartáveis que a solução politicamente mais indolor que se encontra é dar-lhes um bom jantar e devolvê-los à procedência tão depressa quanto possível, parecendo ao mesmo tempo que se faz um grande bem (como convém). Só que os inúmeros  e servis «obrigados» que enchem a reportagem da SIC acabam por ter um efeito inverso ao pretendido: amplificam toda esta nossa hipocrisia de uma forma quase impiedosa. 

Encontrou-se, neste caso, uma forma de não resolver coisa alguma, já que todos voltaram para a miséria de que tinham tentado fugir,  marcados negativamente para o resto da vida e ainda mais pobres do que antes. Mas enfim,  varreu-se mais um problema para debaixo do tapete - e problemas, como é sabido, já nós cá temos até demais... Além disso, como de vergonha apenas se morre em sentido figurado, temos que guardar espaço para outros, muitos outros como eles que andam por aí dispostos a ocupar as vagas para beneficiários destes magnânimos gestos de solidariedade natalícia... Só falta é que a reportagem da sic (ou outra qualquer) os encontre....

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida (...)
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta, (...)
de fome um pouco por dia...


Nota: em itálico, excertos de Morte e Vida Severina - Auto de Natal Pernambucano (1966) de João Cabral de Melo Neto.

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