sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A vida, inexorável

No preciso instante em que tudo aconteceu, sentiu um misto de revolta e de incredulidade. Como era possível que a vida prosseguisse, impassível, depois daquilo? O próprio mundo lá fora deveria ter parado depois daquilo... Precisava agora de algum tempo para recuperar o fôlego, para conseguir voltar a respirar sem sentir aquela dor-faca cravada nas costas. Olhava o seu rosto-máscara reflectido no espelho e achava absurdo como ninguém parecia perceber que trazia o fim do mundo estampado na cara!

Depois de um certo tempo, o raciocínio abriu uma pequena brecha na sua cabeça e compreendeu que a vida não atendia a circunstâncias individuais. A força irascível que a atirara ao chão não pensara: “Já tinha perdido a motivação, agora ficou com a alma rasgada, não lhe vou dar ainda aquele caroço na mama. Vou esperar até que se recomponha.” Nada disso. A vida simplesmente dá o que tem vontade e continua em frente, imparável, cega, surda e muda, na total ignorância dos danos colaterais que provoca à sua passagem. Por isso, mesmo aturdida, sabia que, ou se levantava já e acompanhava o ritmo da marcha imposta, ou nunca mais se endireitava, em sentido literal e figurado. Se demorasse mais algum tempo, perderia qualquer hipótese de colar os poucos cacos que tinham restado.

Mais tarde, quando foi capaz de pensar a frio sobre aquilo, compreendeu ainda que a vida é um jogo de cartas viciado em que a hipótese de ganhar é quase nula. Talvez por isso sejam muitos os que fazem batota, não hesitando em esmagar quem se lhes atravesse no caminho, convencidos de que poderão vencer o jogo à sua maneira. Mas atropelam apenas os seus iguais ou os que tentam jogar a partida até ao fim. Nunca conseguirão atropelar a própria vida, pois essa não é atropelável: ela faz o que quer, quando quer, não dá satisfações a ninguém e, sempre que tem vontade, é ela quem sobe ao pódio para receber a medalha de ouro. Não há como saber o que irá a vida fazer, ou fazer-nos. Por isso é tão aterradora e fascinante ao mesmo tempo.


Auguste Rodin - La Danaïde - 1889
(Imagem de B. Jarret)

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