quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A crise e as receitas de cozinha...

De acordo com a definição do Banco Mundial, uma das instituições financeiras que, à semelhança do nosso bem conhecido FMI, prospera à custa dos juros cobrados aos países pobres e em sérios apuros económicos e sociais, existem no mundo dois tipos de pobres:  os que tentam sobreviver com menos de 1 dólar por dia (pobreza extrema) e os que tentam "esticar" uma verba entre 1 e 2 dólares diários (a pobreza dita moderada). A mesma instituição estima ainda que 1 bilião e 100 milhões de pessoas vivam em pobreza extrema a nível mundial e que 2 biliões e 700 milhões tenham níveis de consumo inferiores a 2 dólares diários.

Ora, de há uns tempos para cá, começaram a proliferar nos media rubricas deste tipo:
Imagem daqui

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Neste caso, as receitas divulgadas no sítio do Correio da Manhã variam entre 4 e 6 € por refeição, para 4 pessoas. Os próprios hipermercados já tinham aqui há tempos disponibilizado fichas com receitas de cozinha, e respetiva lista de ingredientes, a um custo médio de 4 € para 4 pessoas: é o caso do grupo Sonae com as suas "Receitas em Conta". Depois foi a SIC que, em março, emitiu uma reportagem sobre a campanha "Comer bem é mais barato", promovida pela Associação Portuguesa de Nutricionistas (ver aqui e aqui). Nela se divulgavam sete receitas com custo médio de 1 € por pessoa, embora o objetivo fosse sobretudo comparar o elevado preço de certos alimentos processados, dispendiosos e pouco recomendáveis para a saúde, com o baixo custo de uma refeição mais saudável.

Só que hoje tinha na minha caixa de correio o último número da revista que o Montepio Geral envia aos seus associados e foi aqui que, sem aviso, levei (também eu) um autêntico murro no estômago: então não é que quatro dos melhores chefs de cozinha portugueses, todos responsáveis por restaurantes de grande prestígio, propõem agora as "Marmitas de chef" por...1 €. A grande ironia disto é que, devido às suas especificidades e critérios de exigência, a alta cozinha prima, justamente, pelo desperdício.

In Montepio, nº 3, outono 2011
Ora se até já os mais (re)conhecidos chefs portugueses andam a trabalhar para gastar apenas 1€ por refeição propondo uma original (ou talvez nem tanto assim) salada de feijão frade com atum e acrescentando em discreta nota de rodapé o custo acrescido - e, por isso mesmo, opcional - de um simples ovo cozido(!), então não me restam quaisquer dúvidas. Quer isto dizer que, pelos tais critérios do Banco Mundial, estamos já dentro dos limites da pobreza moderada (2€ diários para alimentação) e a resvalar perigosamente para o limiar da pobreza extrema. E também não deixa de ser curioso que esta proposta de receituário "para lá de económico" venha, justamente, de um banco...

Mas tudo isto, claro está, foi ainda antes da apresentação pública das linhas gerais com que o próximo orçamento de estado nos quer descoser a vida. Imagino que os chefs de cozinha já devem andar atarefadíssimos a inventar receitas ainda mais em conta, isto é, de 0,50€ para baixo. E, pelo andar da coisa, daqui a um ano vamos vê-los todos a inventar receitas a custo zero...

Pelo sim pelo não fui espreitar outra vez o mapa da fome no mundo que a FAO divulga anualmente:

Fiquei mais descansada, claro: no ano passado não constávamos. Este ano, apesar das já tão numerosas "receitas por 1€/pessoa/refeição" que circulam por aí,  também não devemos constar, até porqueestamos ainda muito na fase "pobreza envergonhada" e a agarrarmo-nos à ideia de que a crise é temporária e tudo isto ainda tem conserto, quanto mais não seja por "obra e graça do espírito santo, com a imprescindível ajuda da senhora de Fátima".  Mas lá para 2012 somos capazes de já ter direito, pelo menos, ali àquele incipiente tom rosado, indicativo de má-nutrição abaixo dos 5% ...

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