quinta-feira, 28 de agosto de 2014
espelho de água
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
terça-feira, 5 de agosto de 2014
As mulheres da minha rua: casadas, donas-de-casa e mulheres-a-dias
Évora: julho 2014 |
Na rua onde a
minha vida esteve confinada durante décadas também havia famílias tradicionais.
Várias até. Quase em frente da dona Rosa viviam duas delas: no rés-do-chão, a
do polícia e, no primeiro andar do mesmo prédio, a do negociante de palhas e
fenos. Em tempos de dificuldades económicas generalizadas, estes casais estavam
classificados na hierarquia socio-económica da rua como remediados, embora se situassem claramente abaixo da menina Graça e
da sua tradicional família de proprietários de um número considerável de
habitações, lojas e herdades, cujas rendas garantiam uma vida confortável e até, situação
única na rua, uma criada que, desde muito jovem, trabalhava e vivia a tempo
inteiro na casa, um grande prédio de fachada sóbria mas quase imponente, quando
comparada com a simplicidade e até rusticidade das restantes casas da rua.
O sinal mais
evidente deste relativo desafogo financeiro era o facto de as respetivas
esposas serem ambas donas-de-casa, dedicadas em exclusivo às tarefas domésticas
e à criação dos filhos. E há quatro décadas atrás, esta circunstância estava
ainda na origem de uma outra hierarquia, mais subtil, mas nem por isso menos
importante na rua. Estas mulheres formavam uma espécie de agremiação com regras
muito próprias, convivendo quase só entre si, numa cumplicidade que se queria,
contudo, pública e notória pois tinha como objectivo marcar a distinção relativamente
às outras vizinhas: estas donas-de-casa sentiam-se superiores às que, devido à
necessidade de aconchegar a economia doméstica, saíam todas as manhãs para
trabalhar fora de casa, quase sempre como mulheres-a-dias. Para além de ser
exclusivamente feminina, era também mais perversa, uma vez que se estendia à
própria prole que brincava com as bonecas nos poiais das portas ou ao esconder
pelas esquinas e ombreiras das ruas adjacentes, demarcando territórios
exclusivos e intransponíveis. Certas vizinhas - como a dona Alice por exemplo,
que fazia limpezas numa repartição pública, não integrando este restrito
microcosmo -, eram contudo toleradas na sua órbita porque aceitavam funcionar
como satélites de transmissão, levando e trazendo as mais recentes novidades e
rendilhados detalhes sobre a vida alheia a qualquer hora do dia e sobretudo ao
serão, nos umbrais das portas, quando as noites quentes propiciavam longas e
ciciadas conversas, naquilo que mais não era do que a forma expedita de as
donas-de-casa evitarem expor-se demasiado no seu afã de obter as informações
que lhes permitiam depois emitir juízos de valor infalíveis e definitivos sobre
todos os habitantes das redondezas.
Para com
todas as que, por falta de disponibilidade ou de paciência, ou até por feitio,
não se deixavam enredar nesta teia de pequenos poderes, a atitude da dona
Dulce e da dona Esperança, como se chamavam, era substancialmente distinta,
sendo notório o ligeiro ar de desdém com que observavam as vizinhas que logo
de manhã bem cedo desciam a rua, apressadas, a caminho do trabalho,
cumprimentando-as com um certa condescendência e vincando, com
aquela presença ociosa à janela, o estatuto social que acreditavam
ser não apenas diferenciado, mas sobretudo superior: afinal, elas eram as únicas esposas da
rua que não precisavam trabalhar fora de casa.
Também as
filhas de ambas, de idades muito próximas e, ao tempo, ainda miúdas de escola
primária, já levavam muito a sério esta condição de
meninas-mais-bem-que-as-outras-meninas-da-mesma-idade que então viviam na rua e
cuja convivência devia ser evitada o mais possível por serem mais pobres do que elas. Por isso,
brincavam juntas nas respectivas casas ou à tardinha no poial da porta, sempre
sob a vigilância atenta de uma das mães, não fosse alguma das outras crianças, que durante as férias de verão corriam livremente e aos berros rua acima e rua
abaixo durante todo o dia, intrometer-se ou mesmo molestá-las, quem sabe?. Nunca, em todos
aqueles anos de infância e pré-adolescência, as vi correr uma única vez pela
rua fora, certamente para não desobedecerem às zelosas mães que
consideravam tão radical actividade coisa muito pouco própria de
meninas-de-bem. Na verdade, o máximo que lhes estava permitido era caminhar sempre
ao lado das mães, com passinhos curtos, muito compostas e compenetradas nos
seus vestidinhos rodados feitos pela modista, mais parecendo adultas em
miniatura.
Neste
território social tão bem demarcado o domingo constituía, sem dúvida, o ponto
alto da semana pois a missa do meio-dia em Santo Antão, antecedida da catequese
que ambas as raparigas frequentavam,
significava quase sempre estrear um novo vestido. E durante a manhã era vê-las,
a subir e a descer a rua, coisa que durante a semana não faziam justamente para
se distinguirem das restantes crianças, sem que houvesse qualquer motivo
aparente que justificasse tão inusitada azáfama, muitas vezes sob o olhar
enternecido das mães que, das janelas, observavam a impecável compostura da sua
descendência. Embora a passadeira vermelha não passasse aqui de tosca calçada
de granito, tratava-se na verdade de um desfile que procurava cumprir dois
objectivos: para as mães, era uma forma de mostrar a toda a vizinhança que
tinham a folga financeira suficiente que lhes permitia, para além de manter as
esposas em casa, mandar fazer vestidos para as filhas a um ritmo quase semanal
– algo que nenhuma das outras famílias podia proporcionar às suas crianças
senão uma ou duas vezes por ano, se as coisas corressem bem – para as filhas, significava fazer pirraças
disfarçadas à miudagem da zona, que as gozava impiedosamente por serem tão
empertigadas, ou, como então dizíamos, porque tinham a mania.
Só bem mais
tarde, quando as correrias loucas nas férias de verão se foram tornando menos
frequentes e começámos a apreciar com olhos adolescentes as roupas que
vestíamos é que este rito dominical nos permitiu perceber até que ponto não
éramos, de facto, todos iguais naquela rua. E foi então que, certamente apercebendo-se
dessa nossa insidiosa consciência, as duas raparigas passaram a exibir-se ainda
mais orgulhosas a cada semana que passava como se estivessem cientes de que, apesar
da chacota de que tinham sido alvo, afinal, sempre tinham sido elas o centro
daquele pequeno mundo. Uma delas, a Julinha, como lhe chamavam, ganhou mesmo o
hábito de caminhar tão empertigada pela rua como se tivesse todas as vértebras
coladas, de cabeça muito levantada e ligeiramente inclinada para um lado,
olhando sempre em frente e para cima, como se à sua volta nada importasse ou
sequer existisse.
Ora, andar
assim numa cidade de ruas sinuosas, com calçadas irregulares rematadas por
lancis mal acabados é, no mínimo, imprudente.Algo que ficou, aliás, sobejamente demonstrado no dia em que a menina
Júlia, então já com uns dezassete anos, tal como eu, ao seguir para a missa dominical
- talvez envergando mais um novíssimo vestido rodado – se estatelou com espalhafato, mas certamente em grande estilo, debaixo das arcadas e foi necessário chamar uma ambulância que a levasse ao hospital onde descobriu que tinha partido o tornozelo. Lembro-me ainda da onda de ohs e de ahs espantados que atravessou a rua de
ponta a ponta pelo infortúnio da menina Júlia. Logo a uma menina tão ajuízadinha e bem comportada! se fosse uma dessas rufias que anda na rua o dia inteiro, ainda se percebia, agora a Julinha, coitadinha, não merecia!... Só que o Fado, como é sabido, foi sempre uma
divindade caprichosa...
Ainda hoje recordo, com o mesmo irreprimível sorriso de então, a forma como a pesada e desengraçada bota de gesso estragava irremediavelmente a estreia de qualquer vestido, por melhor que fosse a modista, e como o saltitante catwalk em duas canadianas refreou um pouco as peneiras amaneiradas da menina Júlia e me deixou cá a pensar que em algum estranho e remoto lugar do universo, afinal, havia uma coisa chamada “justiça poética”. Cruel, sem dúvida, mas eficaz. Algo fundamental quando na adolescência se tem de encarar o futuro com borbulhas no rosto*...
Ainda hoje recordo, com o mesmo irreprimível sorriso de então, a forma como a pesada e desengraçada bota de gesso estragava irremediavelmente a estreia de qualquer vestido, por melhor que fosse a modista, e como o saltitante catwalk em duas canadianas refreou um pouco as peneiras amaneiradas da menina Júlia e me deixou cá a pensar que em algum estranho e remoto lugar do universo, afinal, havia uma coisa chamada “justiça poética”. Cruel, sem dúvida, mas eficaz. Algo fundamental quando na adolescência se tem de encarar o futuro com borbulhas no rosto*...
* Verso da canção “Não há estrelas no céu”, do álbum Mingos & Os
Samurais de Rui Veloso, lançado em 1990.
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