quinta-feira, 30 de junho de 2011

As «eucalipessoas»

Há pessoas como eucaliptos. Digamos que são uma espécie de eucalipessoas. Deste bizarro termo de comparação excluo os eucaliptos esguios que se perfilam, disciplinados, no dorso dos montes. Falo mais daquelas grandes árvores impassíveis, de cabeleira abandonada ao vento, que contemplam o tráfego junto às estradas. São árvores que têm no solo à sua volta um halo de folhagem seca, acumulada pelo tempo, no centro do qual emerge então o vasto tronco solitário.

Também há pessoas assim, facilmente perceptíveis no meio dos aglomerados de gente porque têm, como os eucaliptos, um espaço vazio à sua volta, ainda que por vezes esteja menos definido. Aliás, os próprios aglomerados de gente são, cada vez mais, feitos destas eucalipessoas, cada uma bem no centro do seu próprio halo de solidão. Nem mais ou menos feias, nem mais ou menos inteligentes, nem mais isto nem menos aquilo em relação a todas as outras: tão somente eucalipessoas. Cada vez mais são de todas as idades e condições sociais e estão por toda a parte: nos concertos, no teatro, no cinema, nas redes sociais, na rua, nas lojas, no café, no supermercado... Identifico-as à minha volta com a facilidade instintiva e certeira de quem descobre os seus iguais.

Certo é que, se esta proliferação de eucalipessoas vier a provocar no terreno social algo de semelhante ao que os eucaliptos provocam no solo natural, então é que estamos feitos.

"Eu também sou grega"

Falta-nos, por enquanto, a coragem de assumir essa nossa ancestral nacionalidade, mas todos nós, PIGS da periferia, somos também gregos.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

terça-feira, 28 de junho de 2011

O homem, o dinheiro e os outros

Se um homem procura ganhar dinheiro: é ganancioso.
Se o guarda: é um avarento.
Se o gasta: é um valdevinos.
Se não o arranja: é um inútil.
Se não tenta arranjá-lo: é um imbecil.
Se o arranjar sem trabalhar: é um parasita.
Se o tem depois de uma vida inteira de trabalho: é um idiota que não soube gozar a vida...

Nota: Paradoxos copiados daqui.

Dinheiro e (in)felicidade

Teorias económicas há muitas. Estudos e inquéritos nem se fala. Contudo, agora que o capitalismo entrou em autofagia e ameaça colapsar à semelhança do que sucedeu a outros monstros económicos que também pareciam bastante sólidos, como o socialismo (será a ironia um prato que se come frio, ou quente?), começam a surgir novas ideias e teorias à procura de um insight sobre o que virá a seguir. Algumas são bastante curiosas e outras começaram a fazer caminho já há alguns anos, mas ganharam agora maior visibilidade.

Uma delas – designada o “paradoxo de Easterlin” - foi pensada nos anos 70 pelo economista americano Richard Easterlin. Este concluiu que, nos países mais ricos e desenvolvidos e depois de ultrapassado um certo nível de rendimentos económicos, o grau de felicidade não aumenta proporcionalmente ao acréscimo desses mesmos rendimentos. Tal é o caso do Japão e dos EUA onde os estudos confirmam que, desde a década de 50, o aumento do nível de vida não foi acompanhado pelo crescimento do nível de felicidade das pessoas. E a razão para isso é bem simples: para se ganhar mais dinheiro é preciso trabalhar sempre mais, muito mais, descurando aquilo a que se convencionou chamar de “relações humanas”. Resultado: países ricos, países de gente deprimida, stressada, disfuncional...

Outros estudos feitos entretanto vieram reforçar esta ideia: o dinheiro dá felicidade, mas apenas até certo ponto. O velho adágio popular está, afinal, certo. E, curiosamente, são os cientistas do cérebro, em conjunto com os economistas, que explicam essa aparente contradição em duas penadas:

1. O ciclo vicioso da felicidade

Garantidas as necessidades básicas, há uma tendência crescente para usar o dinheiro supérfluo para fazer comparações, mais do que para “comprar” felicidade, criando um círculo vicioso de satisfação passageira, que, a médio prazo, acaba por gerar infelicidade. O economista Richard Layard dá um exemplo: alguém que compra um carro topo de gama de uma certa marca sente-se feliz por ter conseguido fazê-lo mas, assim que o vizinho do lado compra um carro igual, a felicidade obtida esvazia-se e o indivíduo é compelido a tentar distinguir-se de novo pela aquisição de um carro ainda melhor. Para isso, precisa de maiores recursos económicos. Logo, há que trabalhar mais para obter mais rendimentos e conseguir assim adquirir um novo bem que trará uma nova felicidade passageira e assim de seguida e com todos os bens possíveis: carro, casa, barco, roupas, jóias, etc. Como refere Layard a), “uma das maiores fontes de infelicidade é compararmo-nos com os outros. Enquanto tendemos a notar as posses de pessoas mais ricas, a nossa permanente insatisfação traz-nos uma frustração endémica que é difícil de superar”. Vistas as coisas por esta perspectiva, a felicidade final e real pode até ser bem menor do que a inicial.

2. O sacrifício de um bem maior

Ter um rendimento superior leva à habituação rápida a um nível de vida mais elevado e custoso. Esta adaptação, ou o desejo de querer sempre mais, rapidamente se transforma em sacrifício da felicidade extra conseguida no início para se poder manter, num processo em espiral que apresenta semelhanças com a dependência b).

Outros estudos permitiram aos economistas concluir que são sete (número carregado de simbolismo) os factores geradores de felicidade: o dinheiro, a saúde, a qualidade do trabalho, as relações familiares (sobretudo enquanto parte de um casal), factores sociais (como o contributo para o bem comum através da solidariedade), os valores pessoais éticos e/ou religiosos e a liberdade pessoal. Este último factor explica a razão por que pessoas com idêntico nível de rendimentos, mas sujeitas a um regime ditatorial, são mais infelizes do que as que vivem em democracia.

O drama dos países desenvolvidos e dos ocidentais em particular é que, à pergunta “estão dispostos a sacrificar os últimos quatro factores de felicidade (relações familiares, solidariedade social, valores éticos e/ou religiosos, liberdade pessoal) para poderem ter maiores rendimentos, maior poder de aquisição e maior possibilidade de comparação com outros?”, estão predispostos a responder que “sim”. E isto, mesmo conhecendo os baixos índices de felicidade nos dois colossos mundiais do desenvolvimento industrializado e capitalista – EUA e Japão.

Como refere Ignacio de la Torre num artigo recente (Público, 19/6/2011), “numa altura em que estamos a reconsiderar o futuro da arquitectura financeira mundial e as novas fundações do capitalismo, podemos também ter uma oportunidade única para reconsiderar as fundações da felicidade, e assim reconciliar o capitalismo e a satisfação”. A mim parece-me que o problema é não termos, tanto no país como na UE, líderes com uma visão do futuro capaz de ir além do primeiro factor de felicidade: o dinheiro. Pensar em construir uma sociedade que harmonize os opostos – capitalismo e satisfação das pessoas – é muita, mas mesmo muita areia para as camionetazinhas dos nossos secretários-gerais dos partidos do “arco do poder” e líderes alternados da (des)governação nacional…

Apesar de o povo sempre ter dito que "dinheiro não traz felicidade" e de os estudos confirmarem que até tem razão, o certo é que ajuda muito. Ou, como cantava a Liza Minnelli no filme "Cabaret", para o bem e para o mal "money makes the world go round".

a) Richard Layard, Happiness: Lessons from a new science, Penguin Books, 2006
b) Manel Baucells e Rakesh K. Sarin, Com más dinero: se puede comprar más felicidad?, IESE, Businnes School, Navarra, 2007. (O artigo pode ler-se aqui)

Poemoração

domingo, 26 de junho de 2011

Mambo, Maestro!

Gustavo Dudamel a fazer da música uma festa.

A vida em outlet

Nos dias que vivemos vale muito pouco a vida humana. Se calhar, nem nunca valeu muito e disso mesmo é feita quase toda a história da humanidade. O jornal de hoje actualiza-lhe a cotação no mercado: "6 mil euros" (ver aqui) é o valor corrente da vida de um homem. Só pode mesmo estar em saldo ou em stockmarket como agora se diz. 

O pior é que com a crise que estamos a atravessar, a concorrência desenfreada coisa e tal, palpita-me que o preço ainda vai baixar bastante mais nos próximos tempos. Em alta, só mesmo todas as formas da ignomínia.

Música que traz "um cartinha" de ilhas distantes

Noite quase tropical, perfeita para entregar os sentidos à música de Lura que deu hoje, no Curvo Semedo, um verdadeiro espectáculo de música caboverdiana com direito até (a aprender) a dançar o funaná.

sábado, 25 de junho de 2011

O fruto cresce, o pintor vê, a obra faz-se

Excerto do filme - O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro (1992), de Victor Erice, sobre o minucioso trabalho criativo do pintor hiper-realista espanhol Antonio López García.

Antonio López Garcia, Membrillo, 1990

Em mim se resolve
o alto sentido
do fruto na árvore
incontido.
 
Natália Correia in Poemas, Apontamentos,
Poesia Completa, Dom Quixote, 2007

O memorial que se transformou em epitáfio


Em 1974, quando tudo parecia, de repente, ser possível, o 10 de Junho foi celebrado um pouco por todo o país com a pintura colectiva de grandes murais de celebração da liberdade e dos ideais que, então, quase pareciam reais. Muitos deles foram pintados por grandes artistas plásticos e eram autênticas obras de arte, vibrantes de cor, de alegria e de energia. Os registos fotográficos de muitos desses murais do sonho colectivo estão no livro Murais de Abril 1974, da Biblioteca-Museu República e Resistência. Essas imagens são hoje tudo o que resta de muitas dessas pinturas.
 

 É o caso da pintura mural feita nesse mesmo dia em Évora por um conjunto de artistas. Cada um pintou uma área delineada previamente na parede, criando uma espécie de manta de retalhos pictóricos sobre o 25 de Abril,  no paredão da Casa Cadaval. Da gigantesca e colorida pintura resta hoje uma parede escalavrada de que as trepadeiras se têm apossado lentamente.

Évora, 24/6/2011
Não tem já recuperação possível. Provavelmente nem sequer interessou a ninguém a sua preservação. Sempre que por ali passo olho-o com alguma ironia e não consigo deixar de pensar que as cores agora esbatidas e destroçadas do mural são uma metáfora perfeita dos grandes ideais que animaram a revolução de abril de 74. De memorial esta parede já não tem nada. Agora é, sobretudo, uma espécie de epitáfio.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Pelos vistos, estou há vários dias a queimar pestanas e a corrigir exames para nada...

Vi e ouvi, mas espero para ver se estou disposta a dar o benfício da dúvida.
Entrementes, faço eu própria uma pergunta ao agora senhor Ministro da Educação: porque é que existe uma coisa chamada "distância das palavras aos actos"?

O que ficou

Ficou esta ausência que não é o lugar vazio a meu lado mas dentro de mim e destas quatro paredes de obstinado desamparo. Ficou a distância quilométrica deste intransponível mutismo. Na tela da memória ficou também a narrativa fragmentária, feita de imagens ora luminosas ora sombrias e que, já exausta, continua a (re)contar esse fugidio instante onde as vias separadas se cruzaram, para logo divergirem, irremediáveis. À boca do estômago ficou o nó apertado pela certeza de que olhar-te o rosto é contemplar, dispersos pelo chão, os estilhaços daquilo que foi, misturados com os cacos daquilo que poderia ter sido.

Ficou ainda, em apneia, um eu funcional que cumpre, sem centelha, a tarefa de varrer esses cacos. E talvez tenha ficado eu.

Aqui e agora, a música

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A legislação está sempre a mudar. E o país?

aqui me tinha referido à forma como os preâmbulos da abundante legislação que em Portugal se produz são, às vezes, bastante mais esclarecedores sobre o pensamento e a as verdadeiras intenções do legislador, do que as dezenas de artigos que se lhes seguem.

Estava então em causa o texto introdutório do DL 15/2007, de 19 de Janeiro, vulgo, Estatuto da Carreira Docente. Foi, em seu tempo, a pedra de toque do consulado da ministra Maria de Lurdes Rodrigues e começava por dizer que À indiferenciação de funções, determinada pelas próprias normas da carreira, veio associar-se um regime que tratou de igual modo os melhores profissionais e aqueles que cumprem minimamente ou até imperfeitamente os seus deveres. Nestes termos, não foi possível exigir dos professores com mais experiência e maior formação, usufruindo de significativas reduções das suas obrigações lectivas e das remunerações mais elevadas, que assumissem responsabilidades acrescidas na escola. A lógica subjacente a este extenso parágrafo é demolidora: o sistema reconhece primeiro como era injusto e permissivo para, logo a seguir, declarar que “não foi possível” corrigir o erro. É caso para suspirar um sentido «Coitadinho do sistema!»

Peremptório, acrescentava depois o legislador: Pelo contrário, permitiu-se até que as funções de coordenação e supervisão fossem desempenhadas por docentes mais jovens e com menos condições para as exercer. Daqui resultou um sistema que não criou nenhum incentivo, nenhuma motivação para que os docentes aperfeiçoassem as suas práticas pedagógicas ou se empenhassem na vida e organização das escolas. (sublinhado meu). Ora foi justamente aqui que eu entrei, pois fui sempre precoce em termos profissionais e desde muito cedo exerci os mais diversos cargos na escola. Por causa de um ano de serviço, fui apanhada na rede e impedida de concorrer à categoria de professor-titular, de tão má memória para muitos, sobretudo para aqueles que, antes de irem para a rua contestá-la, reviraram céus e terra para arranjar os comprovativos necessários à obtenção de mais uns quantos pontinhos que, no concurso, lhes garantissem o mínimo para aceder à senioridade profissional por via administrativa. Cargos exercidos e pontos correspondentes tinha eu, e muitos, mas de nada me serviram.

De um momento para o outro vi-me então impedida de exercer as funções para que tinha formação especializada, experiência acumulada ao longo de mais de seis anos de intenso trabalho e, mais importante ainda, motivação. E tudo porque, por decreto, fui considerada como … demasiado nova. Quando, dois anos depois e por força da contestação, a categoria de professor-titular foi extinta, o mal estava feito: os docentes a meio da carreira – os mais bem preparados de que o país dispõe – estavam reduzidos ao estatuto de “carne para canhão” e tinham as suas legítimas aspirações profissionais reduzidas a pó. Mas sobre isso ninguém falou: nem o ministério, nem os sindicatos. Na verdade, nem os próprios professores, permitindo assim que, sobre as injustiças que então aconteceram - e que nunca foram reparadas - caísse um espesso e conveniente manto de silêncio...

Vem tudo isto a propósito do muito badalado “novo” governo PSD/CDS que tomou ontem posse. Insistentemente referido e implicitamente elogiado nos media como um governo “jovem” tem proporcionado à maior parte dos opinion makers do costume, um trabalho de intensa análise: os mais entusiastas – ou mais politicamente simpatizantes – dizem que estão bem preparados para os cargos que vão exercer e que isso se sobrepõe à tal senioridade política que alguns apontam como fundamental. Até a informação de que tem x ministros independentes e y politicamente inexperientes é sempre apresentada como uma coisa positiva para concluirem então que o governo tem todas as condições para fazer um bom trabalho. E terminam sempre com o elogio a renovação de gerações” que estes “jovens” ministros representam.

Não deixa de ser irónico ver como, para exercer cargos administrativos e pedagógicos numa escola, a “senioridade” continua a ser da máxima importância ou, como se costuma dizer, “a idade continua a ser um posto” (a questão de saber se é um bom posto, ou não, não interessa muito), mas, para governar um país mergulhado numa das mais graves crises económico-sociais de sempre, a juventude até pode uma coisa boa e a inexperiência governativa e política podem ser rapidamente colmatadas pela boa preparação evidenciada.

Apraz-me registar esta tamanha evolução de mentalidades num tão curto espaço de tempo. Resta-nos agora perceber se estamos perante os efeitos eufóricos do chamado “estado de graça” por que é suposto passarem todos os governos recém-empossados, ou se estamos apenas a ser manipulados por uma operação de marketing político muito bem arquitectada pelos especialistas na matéria.

Até lá, vou cantarolar baixinho aquele batido refrão do Jorge Palma: deixa-me rir...

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Frases que assentam como luvas

Num excelente artigo sobre o sempre actual tema do "pedantismo" intelectual (in Ípsilon, 17/6/2001)  Rogério Casanova enuncia logo no início do texto que "a abundância pode gerar complacência" afirmação aforística que assenta como uma luva à situação quase abúlica em que estamos mergulhados. E é de uma sensação de estranheza que falo, ainda mais quando vejo as imagens das manifestações que se tornaram já violentas na Grécia e aqui mesmo ao lado, em Espanha.

E a explicação para esta apatia social e cívica, mascarada de uma calma pelo menos aparente - a que os políticos agora em estado de graça preferem chamar expectativa, ou até mesmo esperança(!) -, só pode estar na supracitada máxima de Rogério Casanova. O país ainda não bateu no fundo. Pelo menos não como a Grécia ou como a Espanha. Esta, porque está a braços com astronómicas taxas de desemprego e começa a revelar alguma falta de assertividade na forma como está a lidar com movimentos de contestação que, por nada terem a perder, estão dispostos a tudo. A Grécia porque, claramente, está virada do avesso e já ninguém se entende, incluindo o próprio governo.

Nós, pelos vistos, e apesar das dificuldades crescentes, ainda vamos beneficiando de alguma folga: os cabazes do Banco Alimentar, as refeições gratuitas nas cozinhas sociais, os mega-piqueniques patrocinados pelas mega-distribuidoras e os mega-churrascos do tipo "faz-te à febra", patrocinados pelos criadores de porcos, o futebol e as touradas, as praias algarvias a preços de saldo, etc, etc, etc. No fundo, tudo uma mega e epidémica versão do panis et circenses romanos (ou não fôssemos nós seus directos descendentes).

Mas a taxa de desemprego não pára de subir e as previsões apontam mesmo para um claro agravamento no próximo ano, concomitantemente à recessão económica. E isto só pode significar uma coisa: a tal "complacência" de que ainda vamos dando provas por cá, deve ter mesmo os dias contados. Até porque a "abundância" que conhecemos sobretudo nestas últimas duas décadas está cada vez mais em risco de morte súbita.

Arqueologia das palavras

Um, Passos Coelho, insistiu em nome da sua "palavra de honra". O outro, Fernando Nobre, foi hoje forçado a desistir, depois das duas tentativas de eleição que se goraram esta tarde no Parlamento.

Nobre que tinha declarado há escassos dois meses, numa entrevista ao Expresso que “se, seja por que razão for, não puder ser nomeado presidente da Assembleia, renuncio imediatamente ao mandato de deputado. Não serei só um deputado”.  Rejeitou ainda que o facto de não ficar como deputado seja falta de humildade democrática, salientando que deixou “bem claro” que não está a candidatar-se a deputado. “Aceitei uma função em que poderei exercer uma acção marcante. Poder ser presidente é uma mensagem para a sociedade civil: um independente pode chegar a um alto cargo no Estado, onde pode marcar.”

Ao que parece, hoje, mudou de ideias. Ou então, no passado mês de Abril, disse o contrário daquilo que pensava realmente.

Certo é que esta sua entrada no Parlamento não teve mesmo nada de Nobre.

Narrativas

Se um dia escrevesse a história da minha família poderia bem iniciar a narrativa com a frase inicial de Anna Karenina de Lev Tolstoi: "Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.". Afinal, nada melhor para uma longa e difícil caminhada do que um bastão seguro a que nos podemos apoiar sempre que necessário. E muito haveria a dizer sobre como a forma implacável como a infelicidade pode por vezes degenerar numa espécie de espiral de sofrimento que arrasa todos os que nela se encontram.

No entanto, o que não falta no mundo são boas narrativas natimortas e esta será mais uma para acrescentar a esse vastíssimo rol das histórias que correram mal. Até porque o mundo está ainda mais atulhado de coisas que é melhor deixar adormecer devagar sob o pó dos tempos, na esperança de que não voltem a despertar desse recolhimento íntimo. E a história da minha "família infeliz" é uma delas.

domingo, 19 de junho de 2011

Pássaros, versos alados


Imagem Google

Pela cortina entreaberta espreito o dia que se espalha pela paisagem enquanto vai varrendo devagar, para os contrafortes da serra d’Ossa, os últimos vestígios de uma neblina quase transparente. De repente, pousa-me no olhar um pássaro que, meneando a cabeça inquieta, atira uns pios estridentes. Não sei se veio chamar(-me) ou se, tomado de súbita curiosidade, veio apenas espreitar esta estranha gaiola de betão com janela aberta para o dia.

Mas a brisa ainda fresca sopra mais - o suficiente para afastar a cortina – e no mesmo instante sou eu que, sem aviso, me adentro pelo seu olho dourado. Logo a breve ave, tomada de susto, bate as asas frementes e se ergue num voo rápido que desenha primeiro um largo círculo diante da janela, para depois se afastar até não ser mais que um ponto indistinto no  azul cerúleo da manhã. E de repente, olhando aquele pontinho que já mal se distingue e que continua a distanciar-se, percebo que já não é um pássaro o que contemplo, mas um verso alado que, livre, se afasta para longe e para sempre.

É que são também assim os versos que invento: escapam-se (e escapam-me) na brevíssima distância entre dois momentos apenas: aquele em que emergem por dentro de mim e aquele em que me apresto a registá-los no papel. E são sempre os melhores, os mais capazes, esses versos fugidios e indomados. Cada um, ao abrir as asas, é todo um poema e, por isso, logo consegue voar sozinho. Não é, decidamente, um ritual de perda mas sim de libertação, este de ficar assim a ver escapar os melhores e mais perfeitos versos que, de forma imprevista, pousam no parapeito da minha imaginação.

Aos outros, a todos os outros, guardo-os na prosa e, para lhes atenuar a nostalgia da estrofe desfeita, da rima perdida, dou-lhes a companhia destas frases perifrásticas, profusas e verbosas, esperando que a conversa os ajude a aceitar melhor essa perda irreparável.

sábado, 18 de junho de 2011

"Poetry slam" ou quando a poesia explode em documentário

Passado, Presente, Futuro

In www.sapo.pt












Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis",
Ed. Caminho, 1981, 3ª ed.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Poesia que se ouve - II

Poesia que se ouve - I

Performance de poesia sonora realizada por Márcio-André na Casa de Camilo Castelo Branco (Famalicão, 2010) a partir do poema "Quatro cantos do caos", de E. M. de Melo e Castro.

Alentejo contra a crise: copiar é preciso

Évora é o que está a dar (pelo menos por um ou dois dias) nos telejornais. Ele é a "Pig parade" (versão adpatada à tradição gastronómica local da ainda mais vistosa "Cow parade", que animou aqui há uns tempos as ruas de Lisboa), as "Sextas-feiras anti-crise", que são uma espécie de remake regional do "boxing day" anglófono... Afinal, a globalização também é isto. Importam-se todas as ideias alheias e espalhafatosas que forem precisas para promover e incentivar o consumo na cidade de Évora. Claro está que saber se as pessoas têm, ou não, o dinheiro necessário para fazer esses consumos é uma coisa que agora também não interessa nada para o caso.

Ora, precisamente no mesmo telejornal em que tomei conhecimento destas fervilhantes iniciativas eborenses, passou ainda este vídeo que regista a original forma de protesto de um grupo de operários espanhóis prestes a ficarem desempregados à custa da deslocalização da empresa onde trabalham para outras paragens (no caso, a Turquia):
  

Perante a desenfreada busca de estratégias alheias que tem animado os eborenses nestes últimos tempos, faço questão de dar também o meu humilde contributo pessoal. Afinal, quem vive, como eu, numa cidade do interior alentejano, precisa, de quando em vez, de qualquer coisa que quebre a espessa monotonia dos dias iguais, pois só assim é possível preservar alguma da pouca sanidade mental que nos resta. E a minha sugestão tem ainda a vantagem de poder vir a ser utilizada, com grande proveito, noutras cidades alentejanas e não só. Há que aproveitar enquanto a importação de ideias não paga imposto.

E que tal uma "Nude parade" para promover, por exemplo, a "Feira de S. João" que está prestes a iniciar-se? Mas atenção: feita exclusivamente com "produtos locais", claro está, pois há que defender a economia nacional. Ou então uma "acampada" no tabuleiro da Praça do Geraldo, por tempo indeterminado, para protestar contra a crise em geral e o tédio em particular?

Eu acho que ia ser um sucesso. Mais, acho até que, assim, Évora ganhava um ar ainda mais cosmopolita do que aquele que já tem actualmente. E sempre a Agenda Cultural da terra ficava um pouquinho mais recheada...

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Eclipse lunar em versão musicada

Se me comovesse o amor

Se me comovesse o amor como me comove
a morte dos que amei, eu viveria feliz. Observo
as figueiras, a sombra dos muros, o jasmineiro
em que ficou gravada a tua mão, e deixo o dia

caminhar por entre veredas, caminhos perto do rio.
Se me comovessem os teus passos entre os outros,
os que se perdem nas ruas, os que abandonam
a casa e seguem o seu destino, eu saberia reconhecer

o sinal que ninguém encontra, o medo que ninguém
comove. Vejo-te regressar do deserto, atravessar
os templos, iluminar as varandas, chegar tarde.

Por isso não me procures, não me encontres,
não me deixes, não me conheças. Dá-me apenas
o pão, a palavra, as coisas possíveis. De longe.

Francisco José Viegas, In Se me Comovesse o Amor,
Ed. Quasi, 2008, 2ªed.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Poesia (des)enrolada

Textos: "Declaração de amor ao primeiro ministro" de A. Pedro Ribeiro; "Um Prego" de Luis Miguel nava; e "Confissões intelectuais" de Sérgio Almeida.
Diseurs: Paulo Moreira e Pedro Piaf


Portugal pelos olhos de outrém

Barry Hatton, jornalista inglês há muito radicado entre nós, publicou recentemente em Inglaterra (Signal Books) um retrato do país e do povo que bem conhece e a que deu o título de Os Portugueses, já com edição nacional (Clube do Autor).

A sua visão do povo português é clara, concisa e marcada pela objectividade de uma visão "de fora". É sobretudo uma visão positiva pois como o próprio Hatton afirma "Falo muito bem de Portugal no livro, acho que é um país óptimo. Estou cá há 25 anos, já me foram oferecidos empregos em Nova iorque, em Londres, em Bruxelas, e sempre disse que não. Além de não ser uma pessoa que quer entrar para o trabalho às oito da manhã, prefiro uma vida mais descontraída." Mais à frente acrescenta: "Cada país tem os seus pontos fortes e os seus pontos fracos. Os portugueses têm imensas qualidades, embora os portugueses não achem muito isso. (...) Os portugueses dizem mal de Portugal, dizem mal uns dos outros, mas adoram Portugal. (...) O meu poeta preferido, em qualquer língua, é o Torga. Descreve os portugueses como sendo um "pacífico colectivo de pessoas revoltadas."

Questionado sobre a actual crise e o resgate financeiro a que ela levou Barry Hatton afirmou : "estas medidas são como um penso rápido numa perna partida, como se diz em inglês. Se Portugal quer mudar mesmo, vai ter de mudar a sua maneira de viver. Vai levar gerações, não vai mudar com um acordo com o FMI e a zona euro."

E enunciou depois de uma forma simples, mas brilhante, o verdadeiro e grande desafio com que estamos confrontados e de que ninguém quer falar, sobretudo os políticos: "Até que ponto os portugueses querem mudar? Se querem ser ricos como os alemães e os suíços, os holandeses e os escandinavos, têm de entrar ao trabalho às oito da manhã, trabalhar até às seis, jantar às sete e estar na cama às nove. É essa vida que os portugueses querem? Acho que não. (Se quiserem, vou-me embora, vou para outro país [riso]). Por outro lado, esta geração que cresceu com a União Europeia, que viaja, que tem contacto com a internet, com os outros países, tem outras comparações para fazer (como se viu com os protestos da "geração à rasca").  (...) Esse tipo de contactos muda mentalidades. Muito devagarinho, mas muda. Essa mudança vai ajudar a destapar os portugueses, que estão muito abafados pelas estruturas rígidas da sociedade. É um florescer que vem com o tempo, não vai ser de um dia para o outro."

Palavras sábias as deste jornalista que revela um conhecimento admirável sobre os portugueses ao dizer ainda que: "O jantar e almoçar fora, o convívio, a tertúlia, são a alegria de viver que os portugueses têm. Têm tristeza, mas têm joy in their heart. (...) Parece que uma coisa não bate certa com a outra, mas têm, Têm muita resistência, são muito fortes, adaptáveis. Têm o "desenrascanço", que é uma coisa magnífica que os gajos da troika não sabem, e que os analistas lá fora também não sabem. Deviam saber. Os portugueses mostram que conseguem, só falta destapar aquele potencial. Vai demorar mais uma geração, mas não me preocupo com Portugal."

Ora aqui está um belo exemplo desse tal espírito português do "desenrascanço" de que fala Barry Hatton, registado bem perto da minha casa:

Estremoz, 14/6/201
Trata-se do aproveitamento do arredondado passeio junto à entrada da garagem nas traseiras da casa, tendo a calçada sido substituída por um  exíguo canteiro, cujos limites estão até vedados por improvisada rede e onde se podem colher temperos (salsa e hortelã) e folhas de couve portuguesa para o caldo verde. É mesmo possível, em devido tempo, saborear uns pêssegos, pois tem pomar incluído.
Para além de ser a expressão primorosa de uma certa portugalidade (ingénua, rural, de bom coração), não deixa de ser também aquilo que, agora, e de forma algo pomposa, se designa como "hortas urbanas". Só que esta existe há já muitos anos e demonstra exactamente o tal espírito de "desenrascanço" de que Barry Hatton fala na sua entrevista e que tão útil se pode revelar em tempos de crise como os que estamos a atravessar.

Na verdade, este recanto de passeio público transformado em mini-horta é o lado bom, ingénuo e bem intencionado desse "desenrascanço" nacional, pois julgo que era desse que Hatton falava,  e não do outro, que também existe mas que, em boa parte, nos trouxe até ao beco sem saída em que agora nos encontramos. A este, e a todos que se aproveitam dele para encher os bolsos, vamos ter mesmo de dizer «não, obrigado!». Se não o fizermos estamos mesmo tramados.

Observ. - Os excertos são da entrevista dada por B. Hatton à Pública de 5/6/2011.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Improvisar também é uma música assim

De tarde, com os Poetas

Esta espécie de linha da frente da poesia popular do concelho de Estremoz mostrou ontem à tarde, a todos quantos lá estiveram para os ver e ouvir, com quantos versos se faz uma boa décima. Foi a etapa final de uma maratona de poesia popular que percorreu as freguesias do concelho ao longo do mês de maio.

Estremoz, 12/6/2011
Presentes neste friso de poetas estavam, entre outros, o "Ti" Canoa de S. Lourenço, a D. Constantina, ilustre descendente do genial Jaime da "Manta Branca", o Sr. Altino, antigo "contínuo" da escola secundária, e, claro, o Sr. Aurélio Buinho, do Cano. São, na sua maioria, antigos camponeses.   Verdadeiros "sem-terra" que, em tempos que já lá vão, mendigavam trabalho nos campos alheios para poderem sobreviver. Têm o rosto e o corpo marcado por toda a espécie de canseiras, dificuldades e privações.

Conheceram como ninguém as agora (quase) inacreditáveis arbitrariedades de que os todo-poderosos senhores da terra alentejana eram capazes. É disto tudo e de muito mais que falam nas redondilhas que escrevem ou memorizam e é quase comovente o entusiasmo com que, ainda hoje, louvam os ideais ingénuos da reforma agrária, nos quais acreditaram de alma e coração, sem hesitar; a tremura na voz embargada pela tristeza com que dizem as dores e perdas que foram sofrendo ao longo dos anos (um filho, a companheira); ou a forma resignada, mas simultaneamente optimista e sábia, como encaram a velhice e o seu cortejo de doenças e debilidades.

Uma das décimas ditas ontem por Aurélio Buinho, antigo pastor que ocupa(va) o tempo a fazer versos encantadores e de uma força extraordinária, os quais guarda(va) na memória por não saber ler nem escrever foi esta, criada em 1980, a partir de um mote de Luís de Camões e que se mantém actual. Nela é o próprio Portugal personificado que se exprime:

MOTE

Já não posso ser contente
Tenho a esperança perdida
Ando perdido entre a gente
Nem morro nem tenho vida

(Fala o País)
I
Eu sou um país assim
Tenho traidores e divisionistas
Tenho ladrões e oportunistas
Que se estão valendo de mim
Mas espero ter o fim
Do desrespeito presente
Quero ter continuamente
A democracia de vez
Mas não respeitam as leis
Já não posso ser contente

II
Tenho em mim tanta pobreza
Tenho rosas e tenho espinhos
E tenho tantos pobrezinhos
Que produzem a riqueza
Tenho a alta nobreza
Tenho a classe desfavor'cida
Tenho atentados na lida
De quem produz o pão
Por não ter paz e união
Tenho a esperança perdida

III
Por tudo isto sou culpado
E do meu interesse esquecido
Há tantos anos adormecido
Sem que me tenham acordado
Deixei marcas no passado
Governei inconveniente
Torturei severamente
Da maldade estou cansado
Sou um país desastrado
Ando perdido entre a gente

IV
Tenho um livro complicado
Tenho a lei atraiçoada
Tenho a vitória falhada
Tenho o interesse do estado
Tenho o rico abastado
Tenho a miséria escondida
Tenho a verdade desmentida
Tenho o povo descontente
Sou um portugal doente
Não morro nem tenho vida

In, Camões e os Poetas Populares,
ETZ, 1983

Disse de memória outras décimas de que não tenho registo escrito: a das aflições que enfrentou durante uma tempestade de proporções bíblicas, quando tinha perto de mil e quinhentas ovelhas à sua guarda, as quais se recusavam a atravessar as valas alagadas e transformadas em torrentes fortíssimas para proteger os pequenos borregos e que assim forçaram o pastor passar a noite ao relento; ou aquela, para mim a mais impressionante de todas, dedicada à morte e feita quando, um dia, no campo, ouviu o repique dos sinos que anunciavam um funeral na aldeia distante.

Depois das décimas, animados pelo copo de tinto entretanto distribuído pelo “maestro” Hernâni, logo os poetas afinaram a voz e começaram a cantar à desgarrada. O acompanhamento musical esteve a cargo do Sr. Altino e das suas sonoras “trancanholas”, instrumento musical que ele mesmo inventou e construiu, e com o qual anima jogos florais, excursões e convívios que ele aprecia quase tanto como os “passarinhos assados no carvão” com que remata todas as suas décimas. Enfim, um memorável final de tarde (a qualidade do vídeo é que não é assim tão memorável, mas enfim, foi o que se conseguiu arranjar...)


domingo, 12 de junho de 2011

Há dias para tudo, até para uma "Postagem em Branco"

  • Há dias para celebrar acontecimentos, pessoas, entidades, ...
  • Há dias para festejar...
  • Há dias para (re)lembrar...
  • Há dias para esquecer (muitos mesmo)...
  • No fundo, há dias para tudo. Por isso, também pode haver dias para... nada.
Ou melhor: dias para não fazer rigorosamente nada. Afinal, desde que alguém se lembrou de publicar o "Livro em Branco" dizendo que, lá por ter as páginas em branco, não deixava de ser um livro em tudo igual aos outros e o pessoal achou tanta piada à ideia que (quase) toda a gente o comprou fazendo daquilo um sucesso de vendas maior do que muitos dos livros do Saramago da fase pré-Nobel... (Aliás, ainda hoje é possível comprá-lo - já vai na 14ª edição "revista, ampliada e comentada" -  e, pasmemo-nos, vende-se na secção "literatura", como se pode ver aqui...)

À semelhança do que se afirma convictamente na capa do tal livro em branco: "uma postagem é uma postagem, mesmo quando não há nada nela". Por isso, esta é a minha "Postagem em Branco" pois determinei que, para mim, hoje, era tal dia. Vamos ver se consigo cumprir: um dia para não fazer nada, como se estivesse de bem merecidas férias.

sábado, 11 de junho de 2011

Uma espécie de missão impossível com muitos tentáculos à mistura

Um deles até é cor-de-rosa e o outro ... alaranjado. Enfim, coincidências curiosas...

Anúncios (des)classificados

Nos meados da década de 90, quando o semanário Independente provocava grandes ataques de azia a muito boa gente neste pais, e logo após as eleições que deram a vitória a Guterres, o suplemento Vida publicava duas páginas de anúncios classificados dirigidos especialmente aos "laranjinhas" que, após a derrota eleitoral, teriam que começar a procurar novos empregos, uma vez que o "tachinho" político tinha acabado. Tinham que ceder o lugar aos "rosinhas" que, agora e por sua vez, se vêem na contingência de desocupar a cadeira em favor dos "laranjinhas". 

Tendo em conta que a bipartidarização da vida política portuguesa tem levado à sucessão alternada de ciclos políticos em que apenas muda a cor da bandeira partidária e tudo o resto se mantém idêntico (corrupção, nepotismo, favorecimento, etc. etc.), a verdade é que os pequenos anúncios irónicos e críticos mantêm toda a actualidade e podem agora, ao fim de mais este ciclo político de hegemonia "rosa" ser adaptados sem qualquer problema. São da autoria de Henrique Burnay e Pedro Marta Santos estes autêntico mimos de humor inteligente.

Os "rosinhas" vão começar muito em breve à procura de empregos. As ofertas serão múltiplas e variadas. Aqui ficam alguns exemplos de possíveis classificados "rosas" para inspirar os que, agora, se vêem forçados a procurar outros meios de subsistência até que a tal alternância dite novamente o seu apoteótico regresso à ribalta:
















sexta-feira, 10 de junho de 2011

Alheios são todos estes versos onde me enleio

...cá, onde o mal se afina e o bem se dana...
...correm turvas as águas deste rio...
...efeitos mil revolve o pensamento...
...vai-se gastando a idade e cresce o dano...

...aquilo a que já quis é tão mudado...
...(parece-me qu’estava assi ordenado)...
...que o tempo que se vai não torna mais...
...e pois já não me vedes como vistes...

...que dias há que na alma me tem posto...
...este meu tão cansado sofrimento...
...vencendo ferro, fogo, frio e calma...

...mas por que meu destino se mostrasse...
...contentei-me com pouco, conhecendo...
...o rouco som do mar, a estranha terra...

Luís Vaz de Camões, Príncipe dos Poetas

Lápide

Luís Vaz de Camões.

Poeta infortunado e tutelar.
Fez o milagre de ressuscitar
A Pátria em que nasceu.
Quando, vidente, a viu
A caminho da negra sepultura,
Num poema de amor e de aventura
Deu-lhe a vida
Perdida.
E agora,
Nesta segunda hora
De vil tristeza,
Imortal,
É ele ainda a única certeza
De Portugal.

Coimbra, 11 de Janeiro de 1980

Miguel Torga, in "Diário XIII", 1983;
"Poesia Completa", 2000

quinta-feira, 9 de junho de 2011

e la nave va

O rating actual da língua portuguesa

Sobre o valor da Língua Portuguesa no mundo actual, a presidente do Instituto Camões, Ana Paula Laborinho, fez várias afirmações curiosas numa entrevista* recente.

À pergunta "Prevê-se que o português cresça a nível internacional nos próximos tempos?, respondeu o seguinte: "Exactamente. Quando falamos da economia das línguas, também falamos da afirmação das economias nessa língua e, olhando para o mundo, o facto de países como o Brasil ou Angola estarem em crescimento afirma a língua.  Há uma relação entre línguas e economias. Um dos exemplos é a própria China. Em 2002, quando deixei Macau, havia na China três universidades onde se ensinava português e neste momento há 17."

Depois, explica de forma mais detalhada esta ideia: "Precisamente por causa da economia e do interesse que eles têm nas relações económicas quer com o Brasil quer com Angola. Estamos a falar em dois fenómenos: o dos países que falam as línguas e o da expansão e da sua divulgação como língua estrangeira, que se faz muito por via do interesse que as economias desses países têm em termos internacionais."

Uma nova questão permite clarificar mais ainda esta estreita ligação entre a língua e a economia: "Ao nível da procura no estrangeiro, o português está ao nível de que outras línguas?"
"Há uma grande procura na China, na América Latina, em África e, no caso da Europa, nos países de Leste. A procura do português é hoje, muito claramente, maior que a de algumas das línguas tradicionais como o francês e o alemão. Não será tão grande na Europa como é noutras regiões. A língua portuguesa não tem na Europa o espaço que lhe é devido. A Europa tende a considerar as línguas em função da população europeia. A língua portuguesa não vale apenas 10 milhões."

Em vésperas do Dia da Língua, vale a pena reflectir sobre a cinzenta realidade da língua portuguesa no seu território de origem: Portugal. É que, como a própria presidente do Instituto Camões muito bem explica, o crescimento linguístico a nível global é consequência directa do desenvolvimento económico de dois grandes países irmãos: Angola e Brasil. E também dos cada vez maiores investimentos e interesses económicos da China nesses dois territórios lusófonos.

De lamentar é que Portugal não capitalize nada disto, nem em termos de desenvolvimento económico, nem em termos de promoção da aprendizagem da língua portuguesa não materna, a qual é, aliás, da responsabilidade do Instituto Camões. Nunca Portugal liderou nada disto. Quando muito, foi-lhe permitido ser mediador  preferencial em diversas entidades internacionais devido ao facto de ser o país de origem da própria língua. No fundo, apenas por cortesia dos tais países-irmãos.
E se não o fizemos antes, em tempos de subsídios abundantes e de generosos programas europeus de financiamento, muito menos o faremos agora em tempos de recessão económica, de crise social e de dificuldades financeiras que obrigarão a cortes brutais no financiamento, nomeadamente do próprio Instituto Camões. Resta-nos, pois, esperar com paciência que essa cortesia se estenda também à vontade de ajudar a nossa debilitada economia fazendo alguns investimentos em território nacional.

Mas claro, sobre tudo isto cairá amanhã um conveniente silêncio... Afinal é dia de desfiles, discursos e medalhas e não se pode estragar a festa... nem o povo ia ficar contente



* In Pública, 5/6/2011

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Por este andar...

...vamos é ficar todos de bina (e já não será nada mau...)

Ressaca eleitoral - II

Os (tele)jornais descobriram agora as troikomedidas que nos vão esvaziar os bolsos daqui em diante e passam a maior parte do tempo a azucrinar-nos a paciência com elas: são 200 a implementar até ao final do ano. Isto para começar. Só nos falta saber se as duas centenas já divulgadas não escondem outras tantas por enquanto ainda só conhecidas no recesso dos gabinetes ministeriais onde as negociatas político-partidárias decorrem a bom ritmo (dizem-nos também).

Julgo que é caso para lamentar o final da campanha eleitoral, período em que os candidatos, numa clara manifestação de sensibilidade e consideração para connosco, tiveram o cuidado de nos poupar a este duro choque de realidade. Deixaram a desagradável tarefa para os media. Eles (os políticos) convocarão depois uma conferência de imprensa para explicar ao país que, afinal, foram forçados pela conjuntura internacional (sempre ela), que os mauzões do FMI (sempre eles), que a senhora Merkel, que a UE, que a Grécia, que... etc, etc. Enfim, tudo razões de peso para justificar o que vem a caminho.  Ninguém, e muito menos eu, consegue ainda visualizar bem o impacto real que isto terá nas nossas vidas. Sobretudo - e apesar da catadupa de notícias, declarações e explicações - ninguém está verdadeiramente preparado para elas.

Na verdade, apesar das más notícias com que nos bombardeiam todos os dias, acho que ainda estou (não estamos todos?) na fase avestrusiana da coisa. Ou como bem dizia o Luís Afonso no seu certeiro Bartoon:

Público, 2/6/2011

terça-feira, 7 de junho de 2011

O número de versos

É muito igual a literatura, o que fica guardado nos livros.
Com o tempo mudou o verso, a curva, o arco,
o declive, o mal-estar, a maneira de enumerar as paisagens,
as coisas desconformes. Imagina tu as palavras que se repetem
à saída dos cinemas de província, atravessando o nevoeiro
das noites de Inverno; imagina tu estas ruas que ficam desertas
com o crepúsculo, os campos de batalha, os recados e bilhetes
de amor que nunca foram entregues, os caminhos
que levam da madrugada até ao coração da morte.
Poesia fácil, prosa quase; a música vem da sua melancolia
e não da aritmética sentimental, daquelas palavras
(sangue, grito, coração, litoral). Mais de um halo,
do sopro dos pinhais, dos destroços de um amor de toda a vida.
Desengana-te acerca da poesia, da elevação,
da circunstância, fala apenas - como os antigos - da aventura
de um solitário entre ruínas, levantando as pedras,
reerguendo os muros, contando o número de vítimas.
Depois deste haverá outro terramoto, recordarás o vento
nas eiras, o musgo entre os carvalhos, o rio dobrando-se
numa curva onde há mais choupos, esse areal, essa ventania.

Francisco José Viegas, In Se me comovesse o amor,
Quasi Ed., 2008, 2ª ed.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Dia de ressaca

Hoje é dia de ressaca nacional alargada.

Para os vencedores da noite porque, apesar dos apelos do líder à «contenção», não se conseguiram conter e andaram a pavonear-se ruidosamente pelas ruas durante boa parte da noite.

Para os vencidos porque:
  • no PS acharam sempre que, apesar dos pesares (e eram muitos) segurariam o poder por uma unha negra; por isso, quem tinha algo a perder com a derrota (nem que fosse o cargozinho de sub-sub-assessor de qualquer coisa ou de alguém, na mais recôndita das repartições públicas) deu o tudo por tudo na campanha para dara  ideia de que a coisa estava garantida; a tal ponto que até o grande líder foi apanhado de surpresa...
  • no BE porque não perceberam que a malta, confrontada com as dificuldades e apertos do dia-a-dia e, sobretudo, com a total ausência de expectativas (em especial os mais qualificados), já se cansou daquilo que o próprio Daniel Oliveira classificou como 'exotismo de esquerda' ou animação de rua que apenas pretende fazer bonito com recurso à ironia ácida e pouco mais; a juntar a tomadas de posição e decisões recentes que, aliás, acabaram por minar a credibilidade política de um partido que, nas anteriores eleições, até tinha crescido no parlamento mas que, ao insistir na ideia de não querer ser governo, acabou por não poder afirmar, com seriedade, que exige a mudança, pois esta só pode passar por uma outra forma de governação; todos os que queriam que se fizesse/mudasse, de facto, alguma coisa foram assim forçados a procurar outras paragens político-partidárias (se foram, ou não, as mais certas e adequadas, é uma outra conversa). A este propósito vale a pena comparar com os resultados do CDS - um dos vencedores da noite -, cujo líder assumiu exactamente a atitude oposta e tirou disso largo e óbvio benefício.
Para os comentadores, politólogos, analistas e outros opinion makers da praça que têm agora novas munições para nos moer o juízo diariamente, enquanto tentam por a + b provar que, afinal, cada um deles é que tinha razão e, aliás, já tinha dito isso mesmo num qualquer canal de televisão.

Mas a maior das ressacas, contudo, é a do próprio país. Mais do que a já conhecida dança do «ora agora mandas tu, ora agora mando eu, ora agora mandas tu mais eu», a que também se costuma chamar bipolarização, destaca-se na noite de ontem uma clara viragem do país à direita, por enquanto ainda numa direita que se diz moderada (a fala mansa e de tom radiofónico de Passos Coelho, reforça esta ideia que ainda está por confirmar). A paulatina subida do CDS nos últimos actos eleitorais confirma essa tendência. Os portugueses agora desconfiam - e têm muitas e boas razões para isso - dos partidos que se afirmam de esquerda para ganhar os votos mas, uma vez chegados ao poder, fazem uma espécie de lavagem cerebral e governam em função dos interesses partidários e das recompensas exigidas por aqueles que, dentro do partido, os ajudaram a chegar ao poder e não do país. Este que pague depois a conta dos desvarios. Por isso deu ao PSD a maioria necessária e suficiente para governar, mas sem maioria absoluta. E com uma garantia adicional: será um governo de coligação. O que, para o bem e para o mal, sempre obrigará a algum jogo de cintura.
E o responsável por esta viragem talvez histórica - e que já nada tem que ver com as motivações subjacentes à maioria absoluta de Cavaco Silva nos anos 90 - é justamente um partido que se diz de esquerda: o PS. Um partido historicamente associado ao 25 de Abril e à implantação de uma democracia de centro-esquerda em Portugal. Esta é que é a grande ironia da noite eleitoral de ontem. Esta é que, a meu ver, é a grande ressaca que vamos ter que curar. Ontem, o povo fez a sua escolha e disse o que pensava. Escolheu entre quem se diz de esquerda para ganhar votos e depois governa ainda mais à direita que os partidos ditos «de direita» e quem se afirma da direita moderada ou centro-direita e não parece disposto a sair muito dos trilhos conhecidos (pelo menos para já).
Também o reforço da votação na CDU mostra como os portugueses reconhecem nesta força política a ligação sentimental a essa espécie de paraíso perdido que foram os sonhos da revolução de Abril e acha importante a sua presença no parlamento para que a memória do "antes" e "depois" da Revolução não se dissipe para já numa sociedade que começa agora a ser governada por aqueles que nasceram já no pós-25 de Abril e que do «antes» pouco sabem ou ouviram falar. De certa forma, a CDU ficou ontem mandatada para ser o memorial vivo dos ideais de abril, num parlamento agora de direita, para afirmar lá, na «casa da democracia», que o povo português gostava mesmo era de viver numa próspera democracia de esquerda mas como, face à conjuntura internacional, isso já não é possível quer lá o PCP para lembrar e dizer a todos o que sente lá bem no fundo.

Vamos então aguardar para ver o que o tempo dirá e nos trará.