domingo, 28 de fevereiro de 2010

Guardadora de papéis

Há quem coleccione objectos, os mais diversos. Eu, colecciono papéis e livros, acho que desde sempre. Nos numerosos papéis que fui guardando em caixas e gavetas (e de que me queixo muitas vezes porque devoram espaço útil) encontro às vezes coisas maravilhosas que guardei por uma razão, (re)encontrei por outra completamente diferente e me fascinam ainda por outras razões: muitas delas, lidas hoje, adquirem novos contornos, novos significados, às vezes até novos fascínios. É uma espécie de memória intemporal, um verdadeiro labirinto pessoal de (re)descobertas e encantamentos. Várias vezes, por razões bem práticas (manter limpo e arrumado tudo isto, e os ácaros sob controlo é tarefa árdua), já tomei a decisão de deitar tudo fora. Mas nunca, até hoje, o consegui fazer. Acho mesmo que nunca conseguirei.

E aqui está um óptimo exemplo: numa entrevista feita ao poeta espanhol José Angel Valente, que guardei numa espécie de dossiê temático sobre Fernando Pessoa, encontrei hoje uma definição extraordinária do que é a poesia:

"P. – Na Casa Fernando Pessoa, respondendo a uma pergunta sobre a missão do poeta, citou o verso de Mallarmé: “Dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. É uma poética ou um princípio geral onde cabem muitas poéticas?

R. – Creio que, nesse verso do “Tombeau d’Edgar Poe”, Mallarmé faz uma aproximação ao sentido da palavra poética em geral. A linguagem comunicativa, marcada por um fim utilitário, vai-se corrompendo, fazendo-se unívoca. A pureza do sentido poético significa libertar todas as camadas de significação que a palavra tem dentro de si. A poesia não é comunicação, mas é a raiz da comunicabilidade. Outro poeta francês, René Char, disse que as palavras sabem muito mais de nós do que nós das palavras – e é certo, porque usamos palavras que atravessaram gerações e gerações. Na poesia, todos os sentidos ressoam e por isso não se pode propor a interpretação de um poema como um dogma de fé. O dogma da Santíssima Trindade diz que há um deus que tem três pessoas; num poema nunca sabemos se as pessoas são cinco e os deuses dezassete..."
In “Leituras”, Público, 14/5/94 (sublinhado meu)

Atrevo-me ainda a acrescentar que a poesia é , verdadeiramente, um “Augúrio de Inocência” , como escreveu William Blake:

Num grão de areia o mundo inteiro ver
E numa flor do campo o firmamento –
Todo o Infinito em tua mão conter
E ter a Eternidade num momento.

(Trad. de David Mourão-Ferreira)

Proverbiais e aforísticas


Na velha fábula de Esopo, a montanha, depois de muito barulho, acabava por parir um rato.
Ontem, por sorte, em muitas zonas do Pacífico, e depois de grande alarme, parece que o oceano também.
Mas para infelicidade de muitos, com as placas tectónicas é que a fábula é bem diversa...

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Prova de vida

Às vezes, acordada no silêncio nocturno, regresso à velha dor. Aquela que ficou quando uma parte de mim se perdeu lá longe, num tempo muito distante. É um hábito inútil bem o sei. Contudo, é necessário para fazer dentro de mim própria uma espécie de prova de vida. É que, na aridez solitária dos dias, só a dor que ainda sou capaz de sentir me diz que, afinal, continuo viva.

Não falemos

Hoje, não falemos do silêncio que apenas deixa entrar na casa os sons vindos da rua: a buzina apressada de um carro na estrada distante, os latidos do cão no quintal vizinho, o assobio do vento nos ramos do grande eucalipto junto à casa, o arrulho dos pombos que se cortejam durante horas na chaminé da cozinha...
Não falemos desta dor mansa que rói por dentro e escava pequenos túneis na alma como o bicho na madeira, deixando apenas no rosto um fino rasto de lágrimas inúteis.
Não falemos das palavras ditas nos encontros premeditados pelo quotidiano, cheias só de aparência, mas que, desprovidas de sentido e de verdade, ecoam como uma grande sala vazia.
Não falemos destas quatro paredes que cercam a solidão e se fecham sobre ela.
Não falemos...

Estórias de um futuro ainda sem história

A necessidade de antecipar o que o futuro nos reserva angustia-nos desde sempre e há quem viva muito bem à conta disso mesmo: astrólogos, tarólogos, futurólogos e sei lá que mais. Mas, se fosse mesmo possível conhecer o futuro, conseguiríamos depois alterar o curso da vida, teríamos forças e coragem para nos mudarmos a nós próprios e, assim, impedir a concretização das previsões? Não creio. Faria sentido que houvesse previsões de futuro se tudo pudesse ser mudado antes de lá chegarmos? Não entraríamos assim no domínio da pura imprevisibilidade, tornando tudo ainda mais complicado? Muita ficção, tanto em livro, como em filme, tem saído destas e de outras interrogações, pelo que encerram de potencialmente atractivo (e também evasivo) e porque, naturalmente, espicaçam curiosidades e imaginários.

Estive a ler o último livro de Mário Zambujal, publicado no final de 2009. Trata-se da novela “Uma noite não são dias”, cujo subtítulo é “Intriga e paixões no esquisito ano de 2044”. A acção decorre em Lisboa e tudo se inicia com o reencontro fortuito de dois amigos – James e Antony – num bar de Alcântara. Nesta cidade que se tornou sobretudo «vertical», dada a altura dos edifícios, quase todas as coisas se mantêm muito iguais ao que já conhecemos. A privacidade tem de ser defendida quase à força, até pelo cidadão comum: “A tecnologia de audições coscuvilheiras, restrita às polícias no princípio do século, entrou depois no grande bazar da net e adquire-se agora a preços de pechincha na Praça de Espanha e no Martim Moniz.”, diz-nos o narrador logo no início. “Como por vezes acontece, a solução para novos males encontra-se nos antigos remédios. A pouco e pouco os indefesos cidadãos foram-se refugiando no uso da comunicação postal. As cartas inspiram confiança.”, conclui ele mais à frente.

A certa altura, uma conversa durante o jantar revela quase tudo o que há para dizer sobre este «futuro»:
“- Sei pouco de escultura – confessa ela. – Se não erro, Rodin esculpiu mulheres nuas mas a sua obra mais famosa é o Pensador. Estou certa?
- É possível, Grace, mas na minha opinião O Pensador devia ser mais olhado como um símbolo do que deixámos de ser. Hoje, quem pensa? Quem dispõe de tempo e liberdade para pensar? Quem cativa a mente para o pensamento próprio, resistindo ao assalto das notícias, desafios, folguedos, tragédias, distracções de todo o tipo? O Pensador não levanta os olhos para uma televisão, não tira a mão do queixo para atender o telefone. Ele pensa, é o que fazemos cada vez menos.

Foi-me impossível (liberdades de leitora ou leitura abusiva; se calhar as duas coisas, não sei) não fazer a associação a uma outra obra bem mais antiga, da autoria de Cândido de Figueiredo*, publicada em 1892 e reeditada em 2003: “Lisboa no ano três mil”. Contudo, não posso deixar de sublinhar que, nesta última, o salto de ousadia tem um alcance bem maior, e não me refiro apenas à cronologia da narração.

Tudo começa logo no “aviso à navegação” que abre cada uma das obras. Mário Zambujal, com a pacata honestidade que o caracteriza, chama-lhe “Advertência” e nela diz que “Se está mesmo na disposição de ler este livro, devo prevenir: não se trata de antecipação científica. Teríamos nesse caso, um aluvião de sábios palpites que o futuro, implacável, acabaria por desmentir. Ao contrário, o que vai ler é uma história verídica, a ocorrer, garantidamente, no ano de 2044.”. Já Cândido de Figueiredo anuncia no seu “Prefácio” que se sujeitou à hipnose, não para reviver o passado, mas para “viver no futuro; guindar-me ao vértice das civilizações vindouras…”. Foi assim que, durante três horas, se fez transportar ao ano três mil e ao ponto mais civilizado do mundo de então - a Austrália -, onde se situa também a Biblioteca Universal. Nas suas prateleiras procura perceber “se ainda haverá memória do meu país e o que dele se pensa”. Depois de alguma pesquisa, encontra uma obra epistolar, intitulada "Digressões no Extremo Ocidente", escrita "pelo sábio Terramarique". Dela reproduz apenas algumas cartas porque "há por vezes nas suas palavras uma franqueza tão rude a nosso respeito, que, pelo menos, por agora, não reproduzirei o que mais possa ferir as susceptibilidades nacionais". As dez cartas que reproduz, apesar da «censura», revelam uma Lisboa em ruínas na sequência de "extraordinários cataclismos geológicos e grandes convulsões sociais" de que poucos "indígenas" escaparam com vida.

E foi assim que soube como “Nos primeiros anos do século XX, o industrialismo concentrara o resto das forças vivas do país, e o predomínio individual era a ambição única, o sonho dourado de seis milhões de cidadãos. No encalço dessa ambição, todos os meios eram legítimos. Os governados injuriavam os governantes, estes locupletavam-se à custa daqueles, o poder transmitia-se ao mais audaz e mais feliz, e a efémera duração dos consulados supremos apressava a anarquia geral. Por fim, ninguém pagava as despesas públicas, ninguém reconhecia os poderes do Estado”. Tudo o que lemos depois disto se assume quase como uma consequência inevitável desta situação caótica da governação nacional (onde é que eu já ouvi isto?).

Sobre a literatura diz “Não podes imaginar o que se disse e o que se escreveu, por esses tempos. A linguagem chegou a ser uma algaravia inextricável, donde a gramática e o bom senso fugiam espavoridos e horrorizados. (…) O romance era a fotografia da linguagem do tempo e o estimulante de paixões reles. A poesia, ou antes, o que se crismava com este nome, era, por via de regra, a extravagância metrificada a palmos, em gíria de estudante cábula.”


Encontrou também referências a um jornal chamado “Opinião da Arcada”, que, “falando sempre mal de tudo e de todos, é que adquiriu a mais extraordinária popularidade e o maior prestígio no ânimo de todos os governos” e no qual “Parece que a vida particular deixara de existir, porque entrava no domínio público tudo o que hoje consideramos íntimo, e defeso à curiosidade pública.”


Sobre a educação ficou a saber que “houve cinquenta e duas reformas do ensino secundário, não falando daquelas que não chegaram a executar-se, por absoluta inexequibilidade.” Já o ensino superior, pelo contrário, “seguiu destino oposto (…): a universidade, abordoada a uns estatutos do tempo da Inquisição e dos frades, arrastava imutavelmente a sua majestosa decrepitude…”.


Quanto à organização social “assim como em tempos remotíssimos houvera brâmanes e sudras, espartanos e ilotas, patrícios e plebeus, a sociedade portuguesa, em homenagem aos seus avoengos da Índia, Grécia e Roma, dividia-se, nos seus últimos tempos, em duas classes: ovelhas e pastores.”


Muito pouco há de comum entre os dois livros e respectivos autores, para além do propósito, mais ou menos assumido, de uma análise crítica ao Portugal contemporâneo que cada um deles conhece(u), contida nestas digressões pelo futuro imaginado. O estilo e a linguagem são muito distintos, mas eu diria que, quanto ao futuro, ficamos na mesma: pelo que li em ambos, o futuro, afinal, já está aqui, nos dias que vamos vivendo.

De qualquer modo, se tivesse que escolher entre os dois, não hesitaria: o livro de Cândido de Figueiredo cativa-me bem mais, pela ironia, pela visão crítica, pela linguagem ora subtil, ora crua, e, sobretudo, pela recusa de uma banalidade folhetinesca, como é o caso da “história de amor sem história” que, infelizmente, é a única linha de força do livro de Mário Zambujal. "Uma noite não são dias" lê-se bem e levanta algumas questões pertinentes e interessantes, mas não deixa de ser um livro característico do estilo a que chamo «de prateleira de supermercado» (que foi, aliás, onde o adquiri).

* Sim, o das «clássicas» Lições Práticas de Língua Portuguesa e do Dicionário da Língua Portuguesa!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Teorias da auto-conspiração

Aqui há dias tive uma interessante conversa sobre a importância da autoestima e da autoconfiança. Segundo a minha interlocutora, na dose certa, ambas são fundamentais para o desenvolvimento de uma personalidade equilibrada, para estarmos bem connosco e com os outros e para encararmos o mundo de uma forma mais positiva e optimista. Quando tal acontece, o mundo também olha para nós de forma diferente, pois, ao que parece, as pessoas com autoestima e autoconfiança elevadas fazem-se respeitar muito mais pelos outros. Já os fracassos sucessivos (a nível pessoal, profissional ou familiar) de pessoas com baixa autoestima e autoconfiança não só agravam o problema, como se tornam numa espécie de ciclo vicioso que é difícil quebrar. Ainda segundo a minha sábia interlocutora, os níveis individuais de ambas determinam em muito o tipo de coisas que nos acontecem na vida, explicam o tipo recorrente de pessoas com quem nos vamos cruzando e, claro está, as consequências disso tudo para nós e para a nossa vida.
Não me foi difícil concluir que eu própria preciso de fazer alguma coisa para, pelo menos, disfarçar a minha  notória carência de ambas as coisas (autoestima e autoconfiança) e cheguei à seguinte «teoria»:

TESE
Ter níveis elevados de auto-estima é muito importante para que nos aconteçam coisas positivas.


ANTÍTESE
Ter níveis baixos de auto-confiança faz com que coisas menos boas (ou mesmo nada boas) nos aconteçam.


SÍNTESE
Enquanto a verdadeira metamorfose zoomórfica que me permitirá enfrentar quase com indiferença uma verdadeira "parada de ferozes pastores alemães" não me acontece, acho que talvez seja boa ideia começar por objectivos menos ambiciosos (é que mudar assim, de repente, uma vida inteira não é fácil!).
Uma pequena transformação, algo assim do tipo “coelho inofensivo na pele de felino feroz”: se me sentir incomodada, rosno, se me sentir ameaçada, mordo primeiro e pergunto depois. E, se mantiver um ar sério até pode ser que alguém acredite que é verdade. Eu, por exemplo.

O Festival da Avaliação

Com a verdadeira "salganhada" em que se transformou a avaliação de professores, e mesmo o próprio Estatuto (ou a falta dele), com tudo o que já li sobre este tema (legislação incluída), e sendo parte interessada no assunto, esta proposta dos Contemporâneos começa a parecer-me intelectualmente bastante séria, senão mesmo mais honesta, quando comparada com algumas coisas que têm sido ditas por aí.

 

O tempo, esse "brincador"

3.
As tartarugas fazem muitos anos,
mas devagarinho.
Sei de uma que faz hoje anos
e ainda vem a caminho.

Quando chega aos anos que fez,
os anos já lá não estão.
Às vezes já falta pouco
para os fazer outra vez.

Qual era a pressa? O que é isto?
Pergunta ela, espantada.
Os anos são um vento que nos mata
sem darmos por nada.
Quanto mais os fazemos
mais eles nos fazem a nós.
É preciso ver que depois morremos
E não há mais nada a fazer.
Estamos feitos.

7.
Os anos que fazemos
também nos fazem a nós.
Os anos que fizemos nos fizeram.
Os anos que faremos nos farão.
É de anos que somos feitos,
de breve e misterioso tempo.
Em nós estão os anos que já fomos.
Esses anos que fizemos, somos nós,
do cimo da cabeça até à ponta dos pés.
Quanto tempo somos?
Quantos anos és?

De que é feito o tempo que nos faz?
Quanto tempo há?
Para onde vai o tempo que já foi?
Onde está o tempo que virá?

Álvaro Magalhães, Aniversários (excertos), in O Brincador

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Quase Epitáfio

Pouco tempo antes da sua morte Rosa Lobato Faria publicou na revista “Women’s Practice” um texto que se pode ler como um Epitáfio e como um testemunho de vida. Admirei-a por aquilo que disse sobre si mesma, pela forma como enfrentou de frente todas as “mazelas” que a vida lhe deu e soube sempre dar-lhes a volta. Admirei-a também pela forma como encarou o envelhecimento e viveu de forma intensa cada um dos seus dias até ao último.
Pessoas assim fazem falta para nos lembrarmos que, de vez em quando, é necessário sacudir o desânimo, a acomodação, erguer a cabeça e seguir em frente. Pessoas assim não se podem esquecer pois são verdadeiramente humanas.

MAZELAS
Aos 77 anos, como é natural, aparecem-nos todas as mazelas. Insignificâncias: uma dor aqui, uma dor ali, nas costas, na perna, na cabeça, uma pequena coisa na pele, na unha, no olho. Não ligo nenhuma, porque a minha pior mazela é não acreditar que tenho 77 anos.
Eu bem me farto de dizer aos quatro ventos a minha idade para ver se interiorizo esse facto, mas, por dentro, estou na casa dos trinta, vá lá quarenta, e não passo daí.
Setenta e sete anos? Que loucura!
Tenho sempre tanta coisa para fazer, para acabar, para ler, para escrever, tanto lugar para visitar, tanto museu para ver e depois as mazelas – ai! -, mas vou, porque tenho trinta anos e, evidentemente, tenho que ir.
Não tenho a noção de ser uma senhora velha. Digo Estava lá uma velhota, ou Imaginem que uma velha... Estou a falar de pessoas provavelmente mais novas do que eu, mas não me enxergo. Até quando irá durar esta idade subjectiva que não me deixa envelhecer tranquilamente?
Só quando me oferecem o braço (já caí na rua e parti a perna, mas nem assim...), quando me sentam no lugar de honra à mesa, quando me dão o assento da direita no automóvel, quando não me dirigem galanteios (que estranho!), acordo para a realidade: ai, é verdade, tenho 77 anos, que maçada...
Ultimamente, tive (ou tenho, ainda não percebi) cancro de mama. Como acho que Deus não me ia mandar esta doença só para me chatear, abri uma campanha de sensibilização (televisão incluída), para que as mulheres façam mamografias. Transformei a porcaria da doença numa coisa positiva. Passei os trâmites habituais: operação, radioterapia, etc. Tudo pacífico. Ainda por cima, o médico disse-me que era pouco provável que o cancro me matasse, porque, na minha idade, as células já não são o que eram... Ai, sim?
Tenho 77 anos, que alegria!

Para Rosa, a Rosa Meditativa de René Magritte

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O diálogo intercultural também é uma música assim

Cítara: Anoushka Shankar
Violino: Joshua Bell
Tabla: Tanmoy Bose

Da condição de professor

Segundo Jô Soares,

O material escolar mais barato que existe na praça é o professor!
É jovem, não tem experiência.
É velho, está superado.
Não tem automóvel, é um pobre coitado.
Tem automóvel, chora de "barriga cheia”.
Fala em voz alta, vive gritando.
Fala em tom normal, ninguém escuta.
Não falta ao colégio, é um “adesivo”.
Precisa faltar, é um “turista”.
Conversa com os outros professores, está “malhando” nos alunos.
Não conversa, é um desligado.
Dá muita matéria, não tem dó do aluno.
Dá pouca matéria, não prepara os alunos.
Brinca com a turma, é metido a engraçado.
Não brinca com a turma, é um chato.
Chama a atenção, é um grosso.
Não chama a atenção, não se sabe impor.
A prova é longa, não dá tempo.
A prova é curta, tira as hipóteses do aluno.
Escreve muito, não explica.
Explica muito, o caderno não tem nada.
Fala correctamente, ninguém entende.
Fala a “língua” do aluno, não tem vocabulário.
Exige, é rude.
Elogia, é debochado.
O aluno é retido, é perseguição.
O aluno é aprovado, deitou “água-benta”.
É! O professor está sempre errado, mas, se você conseguiu ler até aqui, agradeça a ele.


PS - Sendo humorista, Jô Soares sabe mais sobre o que é ser professor do que muitos "especialistas" que andam por aí a escrever e a publicar sobre o tema.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A evasão também é uma música assim

Poesia, ensina-me as letras de escreviver a sulidão

o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tenro levantar a pedra que te
cobre maior que a noite o peso da pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

José Luís Peixoto, A criança em ruínas

Proverbiais e aforísticas

Em “Do coração”, Francisco José Viegas escreve que

Quem parte e reparte
(o coração) fica sempre
com a melhor parte.

Aqui pelo Sulidão contrapõe-se que:

Quem parte e reparte
(o coração) não fica sempre
com a melhor parte.
Mas fica, de certeza, sem a maior parte.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O que o «chefe máximo» gostaria de escutar, mas não quereria que fosse escutado

Este episódio, relatado no jornal "Gazeta do Sul" como verdadeiro, passou-se há já alguns anos num país da América Central, entre um  ministro e um governador que terão trocado os seguintes telegramas:

Do ministro para o governador: "Anuncia-se um movimento sísmico com epicentro no território sob a sua jurisdição. Tome todas as precauções e, em caso de necessidade, actue rapidamente."
Do governador para o ministro: "Movimento sísmico sufocado. Epicentro e mais três revoltosos fuzilados. Grande manifestação patriótica."

Na nossa república das bananas, bastava alterar uma palavra e até poderia vir assim no processo «face oculta»:

Do «chefe máximo» para o «administrador»: "Anuncia-se um movimento sísmico com epicentro no território sob a sua jurisdição. Tome todas as precauções e, em caso de necessidade, actue rapidamente."

Do «administrador» para o «chefe máximo»: "Movimento sísmico sufocado. Epicentro e mais três jornalistas fuzilados. Grande manifestação patriótica."

Blogoinsólitas

Subitamente pararam todas as conversas e o relógio tomou a palavra. (Edward Robinson)

O poeta esperou pelo comboio nas quatro estações do ano. (Jô Soares)

De repente, a noite caiu. Mas não se magoou... (Millôr Fernandes)

De tão frustrada com a falta de inspiração, a página empalideceu até ficar completamente branca. (Caneta)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

A ponte para a serenidade possível também é uma música assim

Hildegard von Bingen nasceu em 1098 e viveu 81 anos de uma vida extraordinária e invulgar para as mulheres do seu tempo. Educada num convento alemão desde os oito anos de idade, do qual se tornou abadessa em 1136, dedicou quase toda a sua vida à escrita e à música. Tinha visões que lhe permitiam adivinhar o futuro e compreender coisas que outros não conseguiam. Com base nelas escreveu o seu primeiro livro intitulado Scivias (Conhecer os caminhos), que o próprio Papa Eugénio III leu e admirou. Depois, continuou a escrever sobre as suas visões e profecias: O livro dos méritos da vida e O livro das obras divinas. Estudou medicina e observou sempre muito atenta os fenómenos da natureza. Sobre tudo isso também escreveu pelo menos dois livros. Para as monjas do seu convento escreveu 77 cantos litúrgicos em latim de uma beleza, serenidade e arrebatamento impressionantes.

Acerca deles Hildegard escreveu: “Sem música, as palavras são como conchas vazias. Elas ganham vida à medida que vão sendo cantadas, porque as palavras são o corpo e a música o espírito.”. Oitocentos anos depois, Richard Souther redescobriu os cantos de Hildegard e fez uma inspirada ponte musical entre tempos, pessoas e visões do mundo, que não me canso de ouvir.

Manifesto pessoal antipoder


Não pode ser por acaso que, no nosso país, trinta e seis anos depois do 25 de Abril a iliteracia cultural impera, sobretudo entre os mais jovens. Não há, nem nunca houve verdadeiramente, «Novas Oportunidades» para uma cultura séria e digna desse nome, acessível a todos.  É que cidadãos pensantes podem, de facto, ser incómodos e, sobretudo, não votariam nas sinistras personagens sedentas de poder que querem (des)governar as nossas vidas ao nível da economia, da banca, das grandes empresas, da educação, da cultura, da saúde, etc. etc.
É também por esta consciência cívica que admiro Sophia de Mello Breyner e não apenas pela belíssima poesia que escreveu.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Telejornal

Há décadas que o Homem, inconsciente, brinca todos os dias com a Natureza. Esta, no entanto, só precisa de uma horas para demonstrar até que ponto pode mais do que nós e como, na grande engrenagem ecológica do Planeta, somos tão supérfluos e  dispensáveis quanto qualquer outra espécie animal ou vegetal.
Quantas «lições» mais serão necessárias até conseguirmos aprender, finalmente, a matéria? Sobretudo, se pensarmos que, infelizmente, os «alunos» são sempre os mesmos: os mais vulneráveis ou os mais pobres.
Há-de levar ainda muito tempo, talvez demasiado.

Digestões ácidas

Entra-se hoje numa qualquer livraria e deparamos com verdadeiras estalagmites de livros, formadas pelas sucessivas marés ficcionais que têm inundado o mercado ao longo destes últimos anos: a dos códices, códigos e afins, a dos romances histórico-fantasiosos, a das histórias de vida quanto mais sangrentas, dramáticas e humilhantes melhor; a dos vampiros e outras criaturas nocturnas, uns bonzinhos (é de pasmar, de facto), outros, como sempre, sedentos apenas de sangue fresco e adrenalina; a dos guias de (auto) ajuda que prometem revelar o segredo do sucesso permanente em todas as situações e momentos da vida (até admira que ainda haja gente infeliz no mundo); a das relações amorosas em tonalidades variadas que vão do rosa pálido ao cinzento antracite, passando pelo vermelho erótico (mas bem comportado); sem esquecer as (mais ou menos auto) biografias da gente que, de notável, só tem mesmo a assídua presença nas «tardes da Júlia» e outros subprodutos televisivos de semelhante poder anestésico. E todos com 300, 400 ou mais páginas. O resto, o que verdadeiramente possui as qualidades necessárias para permanecer e romper a barreira do tempo, cabe em tiragens de algumas centenas de exemplares (ou nem isso) num cantinho obscuro, achado a duras penas pelos poucos leitores bem treinados e obstinados que não se deixam intimidar pelas muralhas de papel dos best-sellers.

Na sociedade das novas tecnologias, da informação globalizada e da comunicação baseada na “imagem animada”, as relações entre os escritores e as obras que produzem, a leitura que os críticos delas fazem, os meios utilizados para a sua divulgação, bem como o público que visam, são hoje muito diferentes do que eram há algumas décadas atrás. Contudo, Julien Gracq conseguiu ver bastante longe e de forma tão perspicaz que algumas das coisas que escreveu me parecem, agora que o reli, até de uma maior actualidade do que em 87, quando foi lançado em Portugal e o li pela primeira vez. Certo é que “A literatura no estômago”, publicado em 1950, teve desde logo um acolhimento bastante «ácido» em França: pela incompreensão de alguns, pelo desconforto intelectual de outros, pois não é fácil «digerir» palavras tão certeiras e uma análise tão lúcida e frontal do mundo das letras.

O ponto de partida é uma afirmação situada já nas páginas finais do panfleto: para a literatura actual, a tipografia tornou-se num “meio de difusão quase artesanal”, substituída que foi por meios “mecânicos” [hoje diremos tecnológicos] simultaneamente simplificadores e amplificadores” (p.46) que funcionam “como a eructação indistinta desses altifalantes que se esganiçam sobre a barulheira duma feira, à maneira dum ruído de fundo” (p. 46).
 
E uma das consequências mais imediatas destas novas formas de difusão globalizada da informação, “É preciso dizê-lo, porque é de uma veracidade tristemente evidente: uma grande, uma imensa parte do público culto de hoje está «ao corrente» dos últimos progressos da literatura actual quase da mesma maneira como está «ao corrente» dos progressos da ciência atómica; são coisas que escapam, uma e outra, à apreensão directa, coisas de que se tem notícia pelos jornais.” (p. 41).

Portanto, esta massa anónima chamada público, condicionada e formatada por estes novos meios de divulgação da mensagem literária, está “quase sempre em «estado de multidão» com um “desejo contínuo de alimento para a febre, de novo, o mesmo frágil delírio de interpretação a propósito de tudo o que aparece (…). O contacto com este público febril, cujo pulso bate anormalmente (…) não deixa de ter as suas consequências para o escritor” (p.25)

Neste contexto, até a própria percepção da crítica literária está afectada: “… a literatura em França escreve-se e critica-se sobre um fundo sonoro que lhe é próprio (…) algo como um rumor de multidão sobreexcitada e instável, com o murmúrio febril duma permanente Bolsa de Valores” (p. 25).Assim nasceu, pois, “… o escritor de hoje, [o qual] independentemente do lugar que a crítica esclarecida ou os seus pares lhe concedam como artista, existe (ou não existe) para além do círculo que o lê, (…) à maneira duma vedeta” (p. 48). Este escritor-vedeta “corresponde a uma necessidade (…). Para a multidão, uma vedeta é uma pessoa que caminha sobre as águas: triunfa, por procuração, dessa sensação de «mergulho» prenhe de angústia que é a sorte do homem moderno arpoado pelo anonimato voraz da multidão das grandes cidades.” (p. 49). Por isso, “dá a impressão de existir muito menos na medida em que o lêem do que na medida em que «falam dele». É-lhe preciso perseguir sem descanso a imprensa, sempre disposta a adormecer (…) «Aqui estou! Aqui estou – aqui estou sempre!» é por vezes o que se exprime de mais patético (…) através das páginas de tal romancista afamado (…); embora o autor nada tenha a dizer, aquele é o seu livro anual.” (p. 27-28).Para poder sobreviver num terreno onde a concorrência é feroz, “dir-se-ia que [o escritor] abandona alguma coisa do que constituía o seu peso e a sua consistência, ao mesmo tempo que adquire em compensação a leveza lisa e vazia da bóia que permite a um nome flutuar e manter-se à superfície. O preço dessa flutuação é uma simplificação miraculosa, é livrar-se a tempo do que a complexidade duma obra pode ter de embaraçoso.” (p.47).

Gracq conclui que “A verdade é que o escritor dispõe hoje de mil maneiras de se manifestar de alcance muito mais eficaz do que os seus livros” e “ganha muito em rapidez ao servir-se de outras vias além da lenta penetração duma obra escrita, da lenta digestão dela por um público que a fome nem sempre devora.” (p.50). O público exige hoje que o escritor faça essa “estranha transmutação do qualitativo em quantitativo, prova essa de que resulta o escritor apresentar uma superfície antes de ter um talento” (p.50). Estamos claramente sob o império da fugacidade, em que a actualidade se devora a si mesma, da subserviência a interesses sobretudo comerciais, que em nada servem a inteligência e a autonomia mental. Por isso, Julien Gracq divide a literatura actual em zonas semelhantes às do espectro da luz: “vermelho, do público das vendas, congressos, inaugurações, exposições, colóquios, autógrafos e outras «manifestações literárias»; amarelo, dos «resumos» e dos «digests»; verde, dos magazines e jornais dominicais (a literatura atraente, disposta em farsas e armadilhas, em «comic stripes»); azul, do cinema; e enfim violeta, (…) da rádio, onde o mugido da literatura vem morrer à beira do infinito” (p.47).

Sobra aparentemente pouco mas, mesmo assim, trata-se do mais importante e essencial para a literatura deste e de todos os tempos: o escritor, o leitor e a obra que faz a ponte, ainda que ténue e invisível, entre ambos. Ou, como escreve Julien Gracq:
 
1. quando a leitura produz um clique interior e o leitor “adere à obra formando com ela, no vento contínuo das páginas viradas esse bloco de velocidade lubrificada e sem falhas cuja recordação, depois da última página vir bruscamente «cortar o gás», nos deixa atordoados e vacilantes como num princípio de náusea. Alguém que tenha lido um livro desta maneira fica preso a ele por um laço forte, (…) qualquer coisa parecida com o sentimento vago de ter sido iluminado.” (p. 21)

2. “É sobre esta adesão dada do fundo do coração que se fundamenta o poder de um escritor sobre o seu público (…). É por ela, apenas, que existe” e “se tiver conseguido isso ao menos uma vez, esse momento único, ficará com o sentimento de estar salvo” (p. 22). Não serão muitos os escritores que podem, hoje, afirmar ter conseguido tal coisa.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Original e réplica

Original: Projecto de Silêncio

E. de Melo e Castro, Visão Visual


Réplica: Projecto de Sulidão

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Palavras (in)esquecíveis

Observando tal mensagem penso que, se o jovem  tratava a Joana da mesma forma que as palavras, "esquecê-lo" é mesmo o melhor que ela pode fazer.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Rótulos (in)evitáveis

A britânica Joss Stone tinha apenas 16 anos quando surpreendeu o mundo com a força da sua voz. Os media logo a apelidaram, ou melhor, rotularam, de “branca com voz de negra” pelas suas distintas características vocais e pelas influências musicais (soul, r&b, jazz, funk…) que mais directamente marcam a sua música. A cantora tem sempre afirmado que não gosta que se refiram a si e à sua música dessa forma: “Eu percebo o que é que querem dizer com isso, o que por um lado considero um elogio, porque muita da música que oiço é de cantores negros americanos, mas pergunto-me sempre como é que ainda insistem em associar uma cor a uma voz?” (in DN, 14/2/2010, sublinhado meu). Acho que Joss Stone tem toda a razão: no seu caso é até uma sinestesia, no mínimo, um tanto grosseira.

E contudo, seis anos e quatro álbuns depois, no Telejornal de ontem, quando noticiaram o espectáculo no Campo Pequeno, a voz-off começou logo por referir isso mesmo: “a cantora branca de voz negra”. É daquelas coisas: encaixou, colou e já não sai. Além de que as pessoas gostam de rótulos, sobretudo assim, mesquinhos, a «preto e branco». Facilitam a sua análise do mundo, não exigem muito do cérebro e, se calhar, conferem também alguma auto-confiança, pois funcionam como certezas inabaláveis. É também uma atitude característica das pessoas que sabem sempre tudo e das que sabiam até que seria assim, mesmo antes de ter acontecido. Por isso, quando olham para alguém e pensam «é isto ou aquilo», nada mais há a fazer. Diga a pessoa o que disser, faça o que fizer, não será nunca mais do que aquele rótulo.

No álbum “Mind, Body & Soul” (2004) Joss Stone cantava” Right to be wrong”, canção bem reveladora daquilo que é enquanto artista e também como pessoa. Admitir que errar é tão normal quanto acertar - se calhar o erro até é mais habitual - e aprender com isso não é para qualquer um:
I've got a right to be wrong
My mistakes will make me strong
I'm stepping out into the great unknown
I'm feeling wings though I've never flown
I've got a mind of my own
Flesh and blood to the bone
See, I'm not made of stone
I've got a right to be wrong
So just leave me alone

É, no fundo, uma lição de vida para gente cheia de certezas sobre tudo e todos e dona de tanta «sabedoria» que não tem mais nada a aprender com ninguém, muito menos com a Joss Stone.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carnavais

No Brasil há calor, sol, e samba para todos os gostos, do ritmo exuberante e opulento dos desfiles de vedetas no sambódromo, às favelas dos morros do Rio de Janeiro, onde as crianças se requebram de forma tão espontânea e natural que parecem já ter nascido a sambar. O Carnaval é, no Brasil, quase uma força da natureza que tudo transfigura por alguns dias. É preciso ir lá, certamente, para sentir, ver e viver tudo aquilo.
Mas na impossibilidade disso, ser levada lá pelos olhos e pela música de Chico Buarque, para mim, também serve perfeitamente.


E depois há Portugal, debaixo de sucessivas vagas de mau tempo, com massas de ar polar a atravessar o país e temperaturas muito mais baixas do que o normal para a época, já de si fria. Na televisão lá vão mostrando os cortejos carnavalescos que, de norte a sul do país, imitam o Brasil, com as meninas despidas a sorrir e a dizer para as câmaras que não sentem frio nenhum (e nós mesmo a ver que não, que não têm frio algum!), e com o povo a assistir, abrigado debaixo dos guarda-chuvas, todo embrulhado em mantas, numa tentativa patética de evitar a hipotermia. Poderia ser apenas ridículo, mas é, sobretudo, triste, daquela “tristeza contentinha” de que falava o O’Neill.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Miscigenação perigosa

Ontem, à hora do jantar, a quietude da noite de domingo aqui em casa foi interrompida por repetidas e insistentes batidas na porta. Abri e deparei com dois mascarados que, pela altura e constituição física, não deviam ter mais de oito ou nove anos. Os dois estavam mascarados de “Scream”, personagem de um filme de terror para adolescentes, made in usa, muito associado aos mitos urbanos do halloween. Sem pronunciarem palavra, os dois miúdos limitaram-se apenas a levantar uma das mãos e a sinalizar que queriam dinheiro.

Achei estranha e, ao mesmo tempo, curiosa esta verdadeira miscigenação que confunde o halloween e o “trick or treat” das crianças americanas que circulam pelas casas da vizinhança a pedir doces, com o carnaval europeu, a festa pagã por excelência de todos os excessos e transgressões. Outro sinal claro dos dias que vivemos é o facto de os miúdos exigirem dinheiro em vez de rebuçados e bombons. Claro que, se isto fosse sinal de uma sociedade multicultural até teria a sua graça. Mas não é o caso. Estamos sobretudo perante uma consequência do fenómeno da chamada globalização que, tendo o lado positivo da facilidade de acesso à informação, tem claramente também um lado mais sombrio que é o de formatar e normalizar o pensamento dos jovens, de forma quase exclusiva, pelos padrões e valores da cultura anglo-saxónica, sobretudo numa idade em que estão muito permeáveis às influências do exterior.

Os dois miúdos que ontem me bateram à porta pertencem claramente a uma geração urbana que está a crescer com a net, os videojogos, o messenger, o hi-5, as séries e filmes de produção americana, muito, muito longe das referências identitárias da nossa própria cultura nacional. São (pré-)adolescentes formados não apenas por valores e padrões culturais «estrangeiros», mas também perigosos: cultura da violência, da ambição, do individualismo, da ausência de escrúpulos, da satisfação imediata de todos os caprichos e desejos e até de uma certa ideia de que a «vida é fácil», cujas consequências em termos sociais, e mesmo políticos, não tardaremos a descobrir e, o que é pior, a vivenciar. Os 45 minutos semanais de Formação Cívica com que a escola pública portuguesa tenta combater tudo isto podem muito pouco para mudar esta situação, sobretudo se as próprias famílias (não todas, mas um número significativo delas) se continuarem a demitir da educação dos filhos.

Foi por isso que, ontem, sorri e disse aos dois jovens mascarados que estavam no filme errado, pois o halloween já se tinha festejado em Novembro, nos EUA, e agora estávamos no Carnaval e no Alentejo. Viraram-me as costas sem dizer uma palavra e foram bater a outra porta. Suponho que, para eles, foi como se eu tivesse falado chinês ou, o que é ainda mais provável, estivesse verdadeiramente gágá.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Há pouco, no supermercado...

Há pouco, no supermercado, em frente da florista, uma fila de homens com o ar compenetrado de quem está a cumprir escrupulosamente um dever: o de se lembrarem, uma vez por ano, que têm “namorada” e de lho dizer recorrendo, para tal, a umas “florzinhas”, para serem mais “convincentes” que, depois, já só daqui a um ano é que se repete o teatro (um homem passa por cada uma, francamente!)

No entanto, a ideia de poder adquirir num qualquer supermercado, alguns "pés de amor", embrulhados e enfeitados com um laçarote colorido, não deixa de ser ironicamente apelativa. Claro está que, produzidos em estufa, não duram muito, mas sempre enfeitam a casa e a alma. Tal como as flores que hoje se oferecem às namoradas…

Uma história vulgar

Ouvir a tua voz, outrora, era o bastante
Para sentir, enfim, justificada, a vida;
E supor que podia, a partir desse instante,
Abrir, impunemente, ao mundo, confiante,
Minh’alma enternecida.

Fitar o teu olhar, era um deslumbramento,
Que me transfigurava e me fazia crer
Que depois de viver, na terra, esse momento,
- Sereno, como após o extremo sacramento -,
Já podia morrer.

Premia as tuas mãos nas minhas e dizia,
Com profunda emoção: - É só por ti que existo!
- Como foi isto, amor? Do nosso olhar, um dia,
Caiu neve no fogo em que a minh’alma ardia…
Amor, como foi isto?

Passas por mim, agora, e nada me insinua
Ser a tua presença o derradeiro elo
Que me prendia à vida. – E a vida continua!
E tudo, como outrora, (o sol, o mar, a lua…)
Mesmo sem ti, é belo!

Como havemos de ter, nos outros, confiança?
Que humano sentimento a nossa fé merece?
De que servem, na vida, os ideais e a esp’rança,
Se o próprio Amor, - como os brinquedos, em criança -,
Tão cedo, para nós, perde o encanto e esquece?!

Carlos Queirós

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O «nó górdio» do problema

Escreveu Bernardo Soares que “Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda [?] de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos duma questão, nunca a podemos resolver.
Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.” In, Livro do Desassossego, 1916, (2ª parte)

Se isto é verdade relativamente a cada um de nós, como pode alguém ter a pretensão de achar que conseguirá ajudar outras pessoas a resolver os problemas que as afligem?

A provável, e provada, lei de Murphy

A lei de Murphy diz-nos de forma muito directa que mesmo as coisas mais simples e banais podem correr mal, muito mal. Suponho que essa probabilidade aumenta quando se trata de situações complexas e/ou marcantes. Joel Pel, da Universidade de Bristish Columbia, criou até uma fórmula matemática que prevê as probabilidades de ocorrência da Lei de Murphy:


Se eu me interessasse mais por números do que por letras teria certamente percebido a tempo que uma exposição de pintura combinada há um ano atrás, entre pessoas ligadas por laços afectivos completamente distintos, com personalidade, objectivos e percursos de vida muito diferentes, tinha tudo para dar errado. Aliás, se eu não me deixasse guiar tanta vez pela minha ingénua boa vontade de ajudar os outros, nem seria necessário resolver a equação de Pel para saber à partida que, como intermediária e mediadora, não teria capacidade suficiente para construir pontes sólidas sobre o abismo que separava ambos os envolvidos.

E foi assim que, mais uma vez, de modo implacável, a lei de Murphy se confirmou. Agora só me resta lidar com a responsabilidade de um duplo fracasso – o do artista e o do organizador. E com o resto. O que vai ao encontro, já não da lei de Murphy em si, mas de um dos seus corolários: se existe alguma possibilidade de diversas coisas correrem mal, aquela que causar maior dano será precisamente a que correrá mal. E foi mesmo isso que aconteceu.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A minha sulidão, pedaço arrancado de mim

A minha solidão

(Durante dias e dias andei a ruminar estes versos.)

A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas…

… Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

… Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.

… Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas…
- única chama consciente
com boca nas estrelas.

… Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.

… Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.

… Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

… Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia…
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.

Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado…

… mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

José Gomes Ferreira, Poesia III

Abaixo-assinado

“Que outros se gabem das páginas que têm escrito; a mim orgulham-me as que tenho lido", afirmou um dia Jorge Luís Borges.

Subscrevo.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O silêncio ensurdecedor da indiferença

Em 1981, Teolinda Gersão escreveu: “É um mundo que começou a enlouquecer, (...). Um mundo eficiente, de silêncio total, em que ninguém mais fala com ninguém. As pessoas estão sentadas, ombro contra ombro, à espera, mas o objectivo da espera é sempre falso, o autocarro, o comboio, o avião, porque todos os lugares são iguais e nada é diferente em parte alguma. E enquanto se espera o silêncio cresce, vai ficando sempre mais denso e mais pesado, e algumas pessoas começam a ficar inquietas, porque de repente percebem que estão bloqueadas, dentro de caixas de vidro, o universo é um conjunto gigantesco de sucessivas caixas de vidro, e elas apenas transitam, ou são transportadas, de umas para as outras, casas, escritórios, autocarros, hospitais, aeroportos, aviões, transatlânticos, é inútil percorrer milhões de quilómetros porque o mundo fica sempre cada vez mais longe, é como se flutuassem, imponderáveis, num espaço vazio, os seus pés não assentam mais sobre a terra, correm seis dias sobre escadas rolantes e tapetes rolantes e no sétimo dia ficam parados sobre uma alcatifa, e o mundo que não tocam vem até elas apenas em imagens, dentro da televisão-caixa-de-vidro. Então algumas pessoas são tomadas de pânico e começam a falar, porque acham necessário modificar este estado de coisas, mas descobrem que não é possível falar porque as pessoas do lado as olham com estranheza, a tal ponto se habituaram a viver dentro de caixas bem isoladas que qualquer som espontâneo as incomoda, transportam em volta da cabeça uma caixa de vidro mental que se fecha por si mesma à menor suspeita de desordem, e então alguém propõe que quem estiver disposto a escutar os outros ponha na lapela uma pequena orelha verde.”
In O Silêncio


Em 2010, o mundo está já totalmente enlouquecido de silêncio e indiferença. Ninguém fala com ninguém, porque não há quem esteja disposto a ouvir, de facto, as dúvidas, as inseguranças, os medos ou, simplesmente, as pequenas coisas do quotidiano, sem qualquer importância. Ouvir é aceitar o outro. É, sem restrições, aceitar o seu ser mais profundo e verdadeiro. É, sem palavras, afirmar que estamos ao seu lado, em compaixão (no sentido etimológico do termo). E claro que toda a gente tem hoje coisas mais importantes para fazer do que estar com o(s) outro(s) dessa forma.

É por isso que, muito em breve, todos seremos forçados a ter pelo menos um blogue no qual escreveremos o que nos passa pela cabeça e depois responderemos aos comentários dos virtuais leitores como se estivéssemos, realmente, a conversar com alguém. Será, como convém, um virtuoso diálogo virtual  entre gente virtual, numa dimensão também ela virtual. Serão monodiálogos de faz-de-conta, cuja profunda inteligência, humor, sensibilidade e sentido crítico enganarão o vazio da nossa “caixa de vidro mental” e nos deixarão viver por mais alguns instantes nesta mansa loucura que é a ilusão de que, lá fora, ainda há alguém de carne e osso que se interessa por nós.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Embalar a angústia também é uma música assim

Pode ser que adormeça...

Palavras que se deixam morrer

Em Gaveta de Nuvens, a páginas tantas, José Gomes Ferreira escreve: "- O sr. já reparou bem num dicionário?... Num dicionário qualquer?... No de Morais, por exemplo... Ou no do povo... (Tanto faz!...) Já reparou?... (...) Pois a mim faz-me lembrar, sabe o quê?... Um jazigo de família. Ou melhor: um jazigo de nação. Uma espécie de mausoléu de papel, onde gerações de gatos-pingados empilharam séculos e séculos de palavras. Algumas já definitivamente mortas, cobertas de bichos e de coroas saudosas... Outras a vasquejarem os últimos estremeções... E muitas, apenas em estado cataléptico, à espera de um toque de dedos para regressarem à monotonia da vida diária... A este maldito bolor, onde utilizamos ao todo quantas palavras vivas - diga-me lá quantas? Quinhentas?... Mil?... Nem tantas, talvez!"

E assim é, de facto: há palavras que estremecem, ou que já morreram, há as que precisam de ser desinfectadas e limpas da sujidade com que o tempo as foi cobrindo e há também as que foram esquecidas ou ultrapassadas por novas modas mais ao gosto dos dias que vivemos. É o caso ilustrado neste "dicionário do povo" que é o "Lenço de Namorados":


De facto, a palavra "leal" é uma das que agoniza nos dicionários. A própria forma como está aqui grafada ("lial") atesta que pertence sobretudo a um tempo de crédula ingenuidade, já muito distanciado de nós, urbanos e globalizados. Palavra e referente são hoje, para muitos, meras preciosidades arqueológicas que se admiram na vitrina de um museu, mas ninguém sabe muito bem para que serviram na sua época.

Já não se usa ser leal com ninguém. Muitos nem sequer o são consigo próprios, como é que poderiam sê-lo relativamente a alguma coisa ou alguém. A lei impiedosa do "vale tudo" é que impera, luminosa, no espírito e no coração dos homens, sobretudo dos poderosos.

Mas dá pena ver definhar assim as palavras que faziam a diferença. E às vezes  apetece gritar em coro com José Gomes Ferreira: "...não deixem morrer as palavras, assassinos! Não deixem morrer as palavras!" 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Diferentes, de facto!

Poema do afinal

No mesmo instante em que eu, aqui e agora,
limpo o suor e fujo ao Sol ardente,
outros, outros como eu, além e agora,
estremecem de frio e em roupas se agasalham.

Enquanto o Sol assoma, aqui, no horizonte,
e as aves cantam e as flores em cores se exaltam,
além, no mesmo instante, o mesmo Sol se esconde,
as aves emudecem e as flores cerram as pétalas.

Enquanto eu me levanto e aqui começo o dia,
outros, no mesmo instante, exactamente o acabam.
Eu trabalho, eles dormem; eu durmo, eles trabalham.
Sempre no mesmo instante.

Aqui é Primavera. Além é Verão.
Mais além é Outono. Além, Inverno.
E nos relógios igualmente certos,
aqui e agora,
o meu marca meio-dia e o de além meia-noite.

Olho o céu e contemplo as estrelas que fulgem.
Busco as constelações, balbucio os seus nomes.
Nasci a olhá-las, conheço-as uma a uma.
São sempre as mesmas, aqui, agora e sempre.

Mas além, mais além, o céu é outro,
outras são as estrelas, reunidas
noutras constelações.
Eu nunca vi as deles;
eles
nunca viram as minhas.

A Natureza separa-nos.
E as naturezas.
A cor da pele, a altura, a envergadura,
as mãos, os pés, as bocas, os narizes,
a maneira de olhar, o modo de sorrir,
os tiques, as manias, as línguas, as certezas.
Tudo.

Afinal
que haverá de comum entre nós?

Um ponto, no infinito.











António Gedeão, Novos Poemas Póstumos

Proverbiais e aforísticas


Tenho reparado que, nas obras da Parque Escolar aqui da minha escola, no final de turno, branco sai com branco e preto sai com preto. Da mesma maneira que engenheiro sai com engenheiro ou, quando muito, com arquitecto. E reparei também que estes são todos brancos.

E que tem isto a ver com o aforismo acima transcrito? Nada. São apenas coincidências...

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Portugal em fogo lento

Quase todos conhecemos, apenas da teoria ou, se calhar alguns também da prática, a experiência da rã que, colocada no copo com água muito quente, salta imediatamente, mas que, se for colocada em água fria e depois levada a lume brando, acaba por morrer cozida já que a sua reacção ao aumento da temperatura é como que anulada pela progressiva habituação do organismo ao aumento gradual da temperatura.

Ora esta cruel experiência animal bem pode ser aproximada à representação de Jerónimo Bosch, para constituir a parábola dos dias que vivemos: Portugal transformado num caldeirão cuja água já está bem mais do que tépida e onde começamos todos a sentir algum incómodo.


O problema é que, mesmo percebendo que é preciso dar o salto para salvar a vida, a esmagadora maioria não vai fazê-lo porque:
não pode, não quer, não está para isso, não quer saber, ainda não deu por nada, acredita que alguém, ou algo, vai apagar o lume antes do ponto de cozedura, acredita que tudo acabará bem, não acha possível que façamos isto ao nosso próprio país e povo, vai acontecer um milagre, é o nosso fado, é a crise internacional, a UE não deixa ferver o caldeirão, se sente bem instalada, tem muito a perder, não consegue ou não tem força de vontade, etc. etc.

Sempre quero ver é o que vai acontecer quando a água começar mesmo a ferver...

Da condição de professor

Os fins de semana passados a corrigir testes são, a cada ano que passa, mais penosos. Especialmente para quem, como eu, fez da profissão vida pessoal e, há três anos atrás sentiu fugir-lhe o chão debaixo dos pés. Talvez seja por isso que, de vez em quando, me recordo das seguintes e aforísticas palavras do Padre Vieira: “Para ensinar sempre é necessário amar e saber; porque quem não ama não quer; e quem não sabe não pode; mas esta necessidade de sabedoria e amor não é sempre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas é necessário maior sabedoria que amor; para ensinar nações bárbaras e incultas é necessário maior amor que sabedoria.”

O enunciado do teste solicitava aos alunos do 12º ano de escolaridade que, num texto de carácter expositivo-argumentativo e com base na leitura de A Aparição de Vergílio Ferreira, mencionassem a dimensão simbólica e a reflexão sobre a condição humana que assumem nesta obra maior da ficção portuguesa da segunda metade do séc. XX, uma especial relevância.

Entre outras, esta resposta: "Vergilio Ferreira era uma pessoa que se preocupava com o que o rodiava.
Ele ponha o Homem acima do divino, de Deus. Para mim a personagem mais relevante, como já podem calcular, é a Aparição, sendo a personagem feminina a mais importante da obra, desenvolvendo-se todo o romance á sua volta.
A obra está relacionada com o divino, devido a isso é que a personagem feminina é muito relevante, sendo ela uma “Aparição”.
Não podendo esquecer que devido a revolução do séc XIX, XX levaram muitos autores a idealizarem um mundo melhor para eles e para os leitores o que está também presente neste romance; dando a personagem feminina uma grande participação com o seu papel.”

Padre António Vieira, tem toda a razão no que diz: é preciso amar, mas amar mesmo muito estes “bárbaros”, para ser capaz de engolir que alguém brinque desta forma com todo o esforço e trabalho desenvolvido nas aulas e, sobretudo, continuar a trabalhar com eles e a “amá-los” como se nada se tivesse passado. É grave que um aluno decida nem sequer ler a obra que, já sabe, vai sair no exame nacional de acesso ao ensino superior. Mas o que magoa mais é a desonestidade intelectual que leva esse mesmo aluno a pensar que, se encher uma página A4 com frases sem qualquer sentido ou nexo, o professor – coitado - nem vai dar por nada.

O descrédito dos professores, e da própria escola, chegou a este ponto e quando, seguindo directivas superiores, somos forçados a corrigir isto com “água benta” por causa dos rankings e dos números do insucesso, é porque já não deve ser possível descer mais baixo.

E, Padre António Vieira, não tenho palavras suficientes e adequadas para lhe dizer o quanto é preciso “amar” um trabalho onde coisas como esta, e outras piores ainda, são “o pão nosso de cada dia”, de modo a conseguir assegurar o meu “pão de cada dia”.