Poema do afinal
No mesmo instante em que eu, aqui e agora,
limpo o suor e fujo ao Sol ardente,
outros, outros como eu, além e agora,
estremecem de frio e em roupas se agasalham.
Enquanto o Sol assoma, aqui, no horizonte,
e as aves cantam e as flores em cores se exaltam,
além, no mesmo instante, o mesmo Sol se esconde,
as aves emudecem e as flores cerram as pétalas.
Enquanto eu me levanto e aqui começo o dia,
outros, no mesmo instante, exactamente o acabam.
Eu trabalho, eles dormem; eu durmo, eles trabalham.
Sempre no mesmo instante.
Aqui é Primavera. Além é Verão.
Mais além é Outono. Além, Inverno.
E nos relógios igualmente certos,
aqui e agora,
o meu marca meio-dia e o de além meia-noite.
Olho o céu e contemplo as estrelas que fulgem.
Busco as constelações, balbucio os seus nomes.
Nasci a olhá-las, conheço-as uma a uma.
São sempre as mesmas, aqui, agora e sempre.
Mas além, mais além, o céu é outro,
outras são as estrelas, reunidas
noutras constelações.
Eu nunca vi as deles;
eles
nunca viram as minhas.
A Natureza separa-nos.
E as naturezas.
A cor da pele, a altura, a envergadura,
as mãos, os pés, as bocas, os narizes,
a maneira de olhar, o modo de sorrir,
os tiques, as manias, as línguas, as certezas.
Tudo.
Afinal
que haverá de comum entre nós?
Um ponto, no infinito.
António Gedeão, Novos Poemas Póstumos