Em 1995, Isabel Allegro de Magalhães publicava uma colectânea de leituras de ficção narrativa a que deu o título de “O Sexo dos Textos”. À questão com que abre a Introdução - “Poder-se-á dizer que os textos têm sexo?” -, a autora respondia da seguinte forma:
“Aparentemente, só os autores têm sexo, não os textos” mas “...os textos são tecidos linguísticos e a matéria da língua – em particular a das línguas latinas, no Ocidente – é toda ela sexuada. Artigos, pronomes, algumas flexões verbais, substantivos (...), adjectivos, são em grande número marcados por um género gramatical...”.
Para além disso, “...a linguagem escolhida, recriada por cada falante e por cada escritor/a – manifesta também ela, preferências diversas, a nível morfológico, fonético, sintáctico, semântico, e tembém rítmico, rimático, etc., preferências essas que podem ser olhadas como espelhos, mais ou menos nítidos, dos universos de experiência de homens e mulheres. E não apenas a linguagem expressa essa dualidade sexuada, como ainda as antenas de percepção do mundo, as sensibilidades, as lógicas (racional, afectiva, onírica); os pontos de vista, também eles, variam.”.
A autora diz depois que os textos “...expressam a diversos níveis essa inegável diferença – antropológica, histórica e cultural – que existe entre uma maneira de estar no mundo própria dos homens e outra própria das mulheres. Uma diferença que em cada sociedade toma modalidades específicas ao longo dos tempos.”.
Conclui depois o seu raciocínio afirmando que “...sempre houve escritores em quem, de certa forma, reconhecemos uma «escrita feminina», assim como há também escritoras que criam uma «escrita masculina». (...) E é assim que se configuram predominâncias, de forma a podermos distinguir duas fundamenatais modalidades de escrita: uma mais próxima do que é a vida, historicamente determinada, das mulheres, e outra mais de acordo com a amneira dominante de estar no mundo, a dos homens (com tantas variantes em cada uma delas quantos os autores).” .
Podemos dizer que este texto está de certa forma marcado cronologicamente, porque se refere muito em particular a uma ficção narrativa de autoria feminina que criou raízes e cresceu em quantidade e em qualidade na segunda metade do século vinte e afirmou a sua maioridade sobretudo a partir da década de setenta. Contudo, ele levanta questões bastante pertinentes face às novas realidades da comunicação globalizada.
Uma delas é justamente esta, em espelho com as afirmações da autora: «Poder-se-á dizer que os bogues têm sexo?»
Haverá nos blogues uma «escrita feminina» e uma «escrita masculina»?
Haverá bloggers que, no desejo de explorar em si mesmos o «continente» do outro sexo, se aventurem a uma escrita mais próxima das características da escrita dita feminina e vice-versa?
Vamos então às provocações:
1) Poderá este ser um exemplo da consciência de que homens e mulheres escrevem, de facto, de forma diferente?
Beijo Ardente
Quando eu era novata nos blogues, achei que seria curioso criar um personagem masculino. Tentava pensar como um gajo, imaginar a vida que um gajo solteiro poderia levar e escrever sobre isso. Até arranjei uma ninfa virtual, por quem sofria de amores.
O blogue que eu e Bentinho criámos era muito sombrio e eu divertia-me imenso a chatear os outros bloggers.
Havia um blogger, já não me lembro bem qual, que terminava sempre os comentários e os posts com «um grande bem-haja». Achei aquilo delicioso.
Quando me resolvi dedicar a este Blogue e contar as peripécias diárias da Capitú (com toda a ficção que lhe consigo imprimir), decidi também construir uma despedida típica.
Beijos todos mandam, mas «beijo ardente» só pode ser da Capitolina.
Um beijo ardente para todos então e, já agora, um grande bem-haja,
Capitolina.
Postado por Capitu do blogue Capitu e a Cidade
2) Poderá este ser um exemplo de escrita dita feminina?
eu de mim não me queria
minhas grandes inconstâncias
minhas tantas insolências
meu saltitar cansativo
e de mim quase abortei
então de mim fui ficando
fui gostando dessa mim
acomodando-me as beiras
e se eiras eu não tinha
agora tenho
eu de mim já muito quero
pus-me à frente em minha fila
mas porém sem holofote
dessa luz eu não preciso
tenho eu clarão de mim~
Postado por Líria Porto do blogue Tanto Mar
3) Poderá este ser um exemplo de escrita dita masculina?
ECCE HOMO
eu que matei deus
e descredenciei credos,
oro entre pernas,
num gozo profundo
onde o mais profundo
dos infernos
ousaria chegar.
religo-me ao que tenho
de mais animal e primitivo:
dentes, carnes, gemidos
e não me detenho
ante as cruzadas...
sejam pernas, sejam armas.
meu amor,
frente ao que é meu
frente ao que é seu
o bem e mal
são os preconceitos de deus.
nós somos imortais.
Postado por Rubens Guilherme Presenti do blogue Poemastigando
4) Poderá este ser um exemplo de escrita que, embora masculina, se aproxima de uma forma mais feminina de ver o mundo?
Devoto do silêncio
Por vezes perguntam-me sobre os motivos que me levaram a pedalar até Ourique e por aqui ficar. Existe a suspeita de que o faço para curar um desgosto de amor, mas é um erro. A partir de certa altura, o desgosto de amor deixa de ser uma desilusão e passa a ser uma inevitabilidade. Um dos verdadeiros motivos que me trouxeram para Ourique foi a ressaca que experimentava depois de falar em público. Se no início ficava em pânico quando precisava de enfrentar uma plateia, uma vez cumprida a tarefa sentia-me bem. Mas com os anos o pânico deu lugar a uma melancolia por antecipação, pois era inevitável que iria ressacar depois da aula, do seminário ou da palestra. Nunca - mas nunca - me senti minimamente realizado com estas actividades. Uma frustração imensa apoderava-se de mim e só uma noite bem dormida era capaz de a fazer partir. A simples ideia de dar aulas regularmente, uma das poucas saídas profissionais com que podia contar, desesperava-me. Esta fobia foi depois crescendo. O que dizia aos jantares. O que respondia quando me apresentavam alguém. A troca de impressões com o sector terciário - excluindo uma rapariga que trabalhava no bar do meu local de trabalho e com quem tinha uma interacção com um subtexto de malandragem e completamente inócuo que muito nos divertia. Aqui em Ourique, um lugar em que por vezes passo dias sem abrir a boca, percebi finalmente que a exposição oral, da anedota à palestra, não é para mim e que apenas no comentário espontâneo consegui ser mediano. Sonhava em interagir com o mundo por escrito. Escrever as palestras e as aulas, em vez de as dar de improviso ou após uns ensaios. O improviso não é para qualquer um. Por isso, só ambicionei ter um gadget na vida: o teleponto. E na vez em que visitei um familiar que tinha sido operado à língua e só podia comunicar com um bloco de notas, senti uma enorme inveja. A inveja de não ter sofrido um daqueles acidentes que legitimam as nossas mais inconfessáveis excentricidades. Bem sei que este desabafo passa por capricho e cobardia, e é até ofensivo para quem quem realmente teve um desses acidentes, mas fazê-lo assim - por escrito - talvez seja uma atenuante.
Postado por Eremita da planície do blogue Ouriquense
5) Poderá este ser um exemplo de escrita que, embora feminina, se aproxime de uma escrita dita masculina?
Boliqueime
Peguei finalmente na Ler de Dezembro. Com enfado. Como quem cumpre uma obrigação ou um ritual de vida saudável. Lá estava ela no correio dos leitores: a Fátima, a leitora mais que tudo da Ler. É uma chata. Deve ser psicótica ou coisa que o valha. Não há um único mês em que não esteja na coluna dos leitores derramando erudição, exibindo saber literário, dando gritinhos de prazer com as crónicas e recensões que lá se publicam. A masturbação é uma coisa boa. Reconheço-o. As saudades que tenho dos tempos em que me bastava um texto, uma imagem, uma lembrança para também eu libertar os meus instintos básicos e sentir uma vertigem de prazer. Mas a masturbação, quer assuma a sua natureza básica e rudimentar, como no meu caso, que me contento com qualquer par de mamas, quer consubstancie formas mais sofisticadas, sublimes, exigentes, como no caso da Fátinha, que há-de molhar as cuequinhas com Verlaine e Rimbaud, exige recato. Não serei a pessoa mais indicada para o afirmar, eu que aqui venho ciciar repentes suicidas e outros segredos, mas uma mulher deve chorar e masturbar-se com discrição.
Postado por Ana Cássia Rebelo do blogue ana-de-amesterdam
6) E finalmente, poderá este ser um exemplo da consciência de que os blogues são uma ficção, cuja escrita nos permite criar personagens e máscaras dentro de nós para, deste modo, vivenciarmos outras realidades?
muquirana
ele é bonito gostoso
por mim eu não cobrava
mas a dona da pensão
fica na porta do quarto
de mão estendida
Postado por líria porto do blogue Putas Resolutas
Nota final: o meu agradecimento aos vários bloggers citados, cujos blogues admiro e visito, esperando que não se sintam ofendidos com estas minhas provocações.