domingo, 31 de outubro de 2010

Depois da chuva

Depois do temporal a manhã despontou com uma reverberação diferente, um ar mais límpido e luminoso. Gosto destas grandes chuvadas que lavam e levam o pó do verão que já findou, arrastando consigo as folhas secas e o lixo acumulado nos cantos. Gosto de ouvir a água ruidosa que se despenha dos beirais e que, límpida e aos borbotões, corre depois pela rua, envernizando as pedras pardas da calçada. Gosto destas grandes chuvadas que lavam as ruas lá fora e me fazem também sentir mais limpa por dentro.

“Lamentável”

“Lamentável” foi o adjectivo que me ocorreu enquanto assistia, ontem, à representação da última peça do Cendrev em parceria com o Teatro del Astillero de Madrid: Flutuando no espaço.

Ao todo, não deviam sequer estar vinte almas numa plateia fria e desconsolada. À semelhança do próprio átrio do teatro, onde não há uma cadeira, um banco confortável, aquecimento, enfim, qualquer coisa que torne a ida lá mais acolhedora ou, pelo menos, mesnos desconfortável. Recordo-me que, enquanto se realizaram obras no museu municipal, havia umas esculturas no átrio que até cortavam a despida frieza do espaço, embelezando-o. Agora, é apenas um vazio desconsolado.

O espectáculo que pretendia ser “provocador, irreverente, incómodo até” afirmava ainda uma intenção programática de arriscar “caminhar por territórios do íntimo, do privado reflectindo sobre a fronteira cada vez mais difusa/confusa entre o público e o privado na sociedade actual.”

Afinal, o texto de Luis Miguel Cruz, bilingue e com algumas passagens multilingues, é uma espécie de patchwork de frases feitas, misturadas com palavrões e referências sexuais explícitas, que se (des)enrola à volta de uma pretensa nave espacial que, pousada no palco,“flutua no espaço” (daí o título). A música dos Beatles funciona como uma espécie de leitmotiv, enquanto os actores debitam anúncios pessoais de cariz pornográfico, arremedam sessões de psicoterapia ou encontros tipo “blind date”. As actrizes desfilam por diversas vezes no palco, de perfil, ao estilo pin-up dos anos 50, usando roupa coleante e com as pernas em evidência sobre saltos altos. Em certos momentos os actores falam inglês com um sotaque péssimo que compromete a compreensão de frases que não são mais do que lugares-comuns do cinema e das novelas: a referência à mulher com cancro e à sua posterior morte é um exemplo paradigmático dos clichés de que a peça é feita. Há uma altura em que, claramente, o espectáculo se arrasta penosamente em círculos.

Enfim, tão confrangedor e absurdo que alguns dos poucos espectadores presentes, em noite de sábado de um fim de semana prolongado, abandonaram a sala antes do termo de espectáculo. Alguma coisa está muito errada numa companhia de teatro que insiste num caminho que acaba justamente por contribuir para aquilo que mais critica e lamenta na política cultural da cidade: o caminho que não leva a lugar nenhum ou o deserto cultural que tem afugentado as pessoas para outras paragens mais interessantes.

sábado, 30 de outubro de 2010

Os três da vida airada: cócó, ranheta e facada

Estas últimas semanas têm sido, em termos políticos, um verdadeiro festival. O primeiro-ministro, com uma espécie de máscara funerária no rosto, anuncia ao país que assim não se pode continuar. Não é que lá fora não nos queiram continuar a emprestar dinheiro para comprar bananas, querem é emprestá-lo com juros tão altos que, na prática, é como se as bananas fossem de platina, ou algo assim. Tornámo-nos oficialmente país pouco (con)fiável e, por isso, estamos no top 10 da lista dos possíveis maus pagadores. Prevenindo o futuro, eles emprestam-nos o dinheiro mas cobram-nos elevados juros como forma de minimizar eventuais futuros prejuízos. Assim, caso deixemos de pagar as dívidas, eles pelo menos já não perdem tudo. Tudo isto, claro, cirurgicamente planeado e gerido pela bem oleada máquina da propaganda e da comunicação, de forma a garantir que o nefando orçamento para o próximo ano não levantasse um motim da populaça. E é por isto que os três da vida airada - primeiro-ministro, líder do principal partido da oposição e presidente da república - têm andado numa roda viva.

O primeiro diz e repete em tournée de comícios por esse país fora que este é “O” orçamento que salva o país e, de caminho, protege as famílias e o emprego(!?). Afirma ele ainda do alto estrado da sua presunção que este é “O” orçamento certo, no momento exacto. Aqui há uns tempos dizia mais ou menos o inverso: que as grandiosas obras públicas é que eram necessárias para alavancar a economia e tirar o país do buraco onde já estava enterrado até à cintura. Agora vem dizer que é necessário ficarmos todos na penúria para salvar o país, e que, em vez de gastar, temos é que poupar. E por isso vai dar ele próprio o bom exemplo poupando onde é mais fácil, barato e dá milhões: nos salários da função pública. E, de caminho, aumenta o IVA para garantir que todos pagamos ainda mais. Sobre o que vai ser feito para tentar tirar a economia da recessão em que se encontra, nada, zero. Sobre a desastrosa (des)governação que nos atascou até ao pescoço, nem uma palavra. Sobre a ineficácia óbvia das medidas que tomou anteriormente – aumentos do IVA e de toda a carga fiscal, congelamento de progressões e emagrecimento (?) da função pública, limitação nos aumentos salariais, PEC 1, 2 e 3, etc., etc. - nem uma explicação sequer.

O segundo, líder do principal partido da oposição - faminto de poder e já a salivar com os resultados das últimas sondagens -, começou por fazer de lobo-mau ao declarar enfaticamente que não assinava, não aprovava e não concordava! Depois, aceitou negociar, mas impondo duras e intransigentes condições para mostrar que o lobo-mau, afinal, também sabe ser cordeirinho quando se trata de começar a mostrar aos portugueses que lhe poderão vir a dar o voto como é que se governa um país. E, ao que tudo indica, o IVA dos pacotes de leite com chocolate foi mesmo decisivo para que as negociações chegassem a bom termo!

No meio de tudo isto, o terceiro, actual presidente da república, incansável: reuniões, audiências, visitas, declarações em que diz e em que diz que, afinal, não disse, vocês é que dizem que eu disse, mas eu não disse e apoteóticas aparições públicas de toda a espécie e feitio, sim, que isto, quem não aparece, esquece, como é sabido. Sobretudo agora que já é oficialmente (re)candidato a novo mandato de uma magistratura que, nas suas próprias palavras, era de “influência” e que agora vai ser “activa”. Numa atitude que me pareceu prudente não explicou depois o que significava “magistratura activa”, mas talvez seja aproveitar todas as oportunidades para fazer declarações em directo ao país a dizer que ele já tinha dito, ele já tinha avisado, ele já sabia que ia ser assim...

Como é conhecido, depois de vários episódios e respectivas declarações à imprensa em que cada um procurou o melhor que sabia marcar o território, tudo ficou resolvido, ao serão, em casa do chefe da delegação do PSD - ele próprio um antigo ministro das finanças, que não deixou muito boa memória mas, em política, o tempo lava sempre mais branco, como sabemos – num ambiente familiar, informal e de saudável confraternização, com direito a fotografia no telemóvel e tudo!! (Não terão também actualizado as respectivas páginas do facebook e feito seguir a mensagem para os seguidores no twitter?...) Assim se concluiu uma espécie de jogo de pingue-pongue entre dois adversários que, embora usem equipamentos de cor diferente, são, afinal, muito semelhantes. Sobretudo na ambição desmedida e na falta de escrúpulos. Por isso andam tão empatados. Ou ainda haverá dúvidas de que, para estes dois, os fins justificam os meios? Sem esquecer, claro, essa espécie de árbitro que quer ficar de bem com deus e com o diabo, valendo-se dos seus pergaminhos de economista - já um tanto amarelecidos e ultrapassados -, para justificar a sua permanência no cargo. Por fim, lá dormiu mais descansado: tudo está bem quando acaba bem, Maria, e ainda não foi desta que tive de tomar uma decisão realmente... decisiva.

E aí o temos agora “O” tal orçamento que vai permitir ao país continuar a endividar-se alegremente lá fora para que, cá dentro, empresas e famílias possam continuar a viver a crédito e acima das suas reais possibilidades, e também para manter as mordomias de uns quantos e pagar a outros como se fossem os salvadores da pátria e não simples gestores competentes. (Ou não é isso que se deve exigir e esperar de alguém que gere uma empresa?) Todos os dias ouvimos os apelos à contenção das famílias no que ao crédito diz respeito, mas é agora o próprio estado que, com este orçamento, dá o pior dos exemplos. Ainda por cima numa conjuntura económica e internacional que já não é só difícil, é irreversível. Os gloriosos anos 80/90 do consumo desmedido, do crescimento imparável e da especulação desenfreada já lá vão. Já todos percebemos que os próximos tempos serão de salve-se quem puder, de olho por olho e dente por dente, na europa e em toda a parte.

Também já percebemos como todo este circo mediático apenas serviu para que engolíssemos a pílula, mesmo sem água. E há que o dizer: nisto, os três da vida airada foram profissionais, pois com o anúncio oficial de que se o orçamento não fosse aprovado vinha aí o bicho-papão comer-nos a todos, até respirámos de alívio quando nos disseram que se tinham entendido e que tudo se resolveria pelo melhor!!?

Mesmo maldizendo e resmoneando entre dentes, quase ficámos contentes por saber que, afinal, não precisamos de enfrentar o bicho-papão: basta-nos curvar o espinhaço ao peso dos impostos e do custo de vida, basta-nos pagar, pagar, pagar e pagar mais ainda. Até ver, só mesmo a vida destes três – cócó, ranheta e facada - é que vai airada. A nossa nem por isso.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Escrever...

A propósito do seu último livro “Viagem à Índia”, que o próprio autor descreve como “uma coisa e o seu oposto” - um romance, “também, em parte, um ensaio”, e ainda uma espécie de glosa inquietante e em verso a Os Lusíadas de Luis de Camões -, Gonçalo M Tavares diz que “Pode parecer estranho, pois tenho a imagem de alguém muito cerebral, mas escrevo instintivamente. Quando as coisas correm bem escrevo sem pensar em nada. Nunca penso antes de escrever. Tento que o pensamento coincida exactamente com o acto de escrita – não estão separados no tempo. Nunca planeio ou projecto. Quando começo um livro não sei que personagens vão existir, não sei o que lhes vai acontecer. Se já sei o que vou escrever, não escrevo. A minha escrita é claramente para mim um acto de investigação, tentar descobrir o que não sei.”

Sobre o seu próprio estilo de escrita diz ainda que “Muito do meu trabalho sobre o texto é eliminar. Se tenho dez palavras que tentam dizer algo numa frase, eu peno se posso passar para cinco palavras, mantendo a essência da frase. E este é o ofício mais difícil: trabalhar para o texto ser cada vez mais pequeno e forte. Ganhar força à medidia que perde palavras. Gosto que as frases sejam exactas e ambíguas, ao mesmo tempo, o que é um pouco paradoxal – mas tem algo a ver com isto: eliminar o explicativo e o que adoça a frase. Assim, julgo que fica mais espaço para o leitor.”

Se, mesmo assim, Gonçalo M Tavares vai já no seu 27º romance só podemos imaginar o que seria se, por acaso, o seu estilo fosse mais do tipo palavroso ou queirosiano...

Nota: Citações da entrevista dada por Gonçalo M Tavares ao Ípsilon, 28/10/10

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Dos dias que vivemos

O perfume inebriante do poder atrai sempre multidões de amigos e de apoiantes...


Afinal, há que garantir a possibilidade de apanhar nem que seja umas migalhinhas do banquete...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O lado melhor das novas tecnologias

Computadores e internet permitem hoje aceder aos mais variados sítios (reais e virtuais), informações, pessoas (e personalidades) e documentos. Na sociedade da informação online o conceito de “biblioteca” mudou radicalmente. E para bem melhor.

Exemplo disto mesmo é a digitalização e disponibilização online de toda a biblioteca particular de Fernando Pessoa, ao todo 1142 volumes, constituída entre os anos de 1898 e 1935 no endereço http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/index/index.htm

À semelhança do seu proprietário também ela tem óbvia vocação universalista, pois é constituída por obras de todos os géneros, escritas em diversas línguas, todas elas anotadas à mão pelo próprio Fernando Pessoa.

Inês Pedrosa, a actual directora da Casa Fernando Pessoa, refere na página de entrada que “... uma biblioteca desta importância devia tornar-se património da humanidade” e Jerónimo Pizarro – um dos três autores do projecto – diz também numa nota prévia: “Que leu Pessoa? Com que propósitos? Estas são algumas das perguntas que agora se podem começar a formular com mais assiduidade.”

Esta curiosa biblioteca surge-nos classificada por categorias temáticas e inclui ainda poemas e ensaios manuscritos pelo autor nas páginas de guarda de muitos dos livros. É possível pesquisar por autor, ano, ordem alfabética e por tema (religião, psicologia, etc.). Os autores do projecto acrescentaram ainda interpretações para determinados aspectos das obras, bem como informações sobre estudos e bibliografia. É também possível fazer o download das obras completas em formato pdf.

Abre-se assim mais uma janela para iluminar o labirinto da mente de Fernando Pessoa(s). Mas o melhor de tudo é pensar que por mais janelas que se abram, nunca se desvendarão por completo os mistérios da sua complexidade. Até porque, como elae próprio escreve em Isto:

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

In Cancioneiro


terça-feira, 26 de outubro de 2010

Música sem fronteiras

Parece que em 1996 o produtor Nick Gold e os guitarristas Ry Cooder e Eliades Ochoa sonharam promover um encontro musical entre músicos de Cuba e do Mali, o qual nunca chegou a acontecer porque não foram emitidos os vistos necessários para que estes últimos pudessem entrar em Cuba. Resolveram então avançar para um projecto alternativo a que chamaram Buena Vista Social Club. Esta reunião de ´glórias "sénior" da música cubana foi um enorme sucesso a nível global e, em consequência, a música cubana nunca mais deixou de dominar o panorama da world music.

No entanto, o ambicioso projecto inicial não ficou esquecido e 16 anos depois tomou forma sob a designação de AfroCubism e dele o crítico Luís Maio diz que "será sempre comparado a "Buena Vista", mas o seu trunfo é sacudir essa pressão, mantendo-se fiel a um programa de cruzamento entre sonoridades acústicas, ancestrais e eminentemente rurais. É o son e a guaracha, típicas dos trovadores de Santiago de Cuba, ao encontro do blues do deserto e do reportório dos griots do Mali, misturados para além dos seus lugares comuns." (in Ípsilon, 22/10/2010). Será de facto tudo isto mas, para mim, é sobretudo um dos melhores discos que ouvi nestes últimos tempos. Não consigo parar de o ouvir, mesmo enquanto trabalho. A cada nova audição descubro sonoridades em que ainda não tinha reparado antes. É um verdadeiro exemplo de como a multiculturalidade pode ser uma coisa extraordinária, desde que misturada com talento. E todos estes músicos o têm, e muito.



segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Frases que fazem pensar

Sempre que vejo as notícias e ouço os nossos (des)governantes a justificar o injustificável ou, se calhar, apenas a utilizar os seus “quinze minutos de fama” penso nesta frase de Andy Warhol:

Disse o que pensava? Disse o que sabia? Disse o que achava ser verdade? Com Warhol, que dominava como ninguém a arte da provocação, nunca o saberemos.

E no entanto esta frase faz cada vez mais sentido...

domingo, 24 de outubro de 2010

"Minorias éticas"

Falei aqui há tempos dos cartuxos de Évora a propósito do filme-documentário de Philip Gröning  “O Grande Silêncio” ("Die Große Stille”) para dizer que acho muito importante que os políticos que governam a cidade respeitem esta comunidade que escolhe afastar-se do mundo para viver no silêncio, na oração e na meditação, enquanto formas de alcançar patamares mais elevados de consciência e de sabedoria. Julgo que o desenvolvimento urbanístico da zona envolvente ao convento deve ser pensado com cuidado para, justamente, não pôr em causa a permanência da comunidade. Acho até que a presença dos monges é uma prova de que, no que à ganância dominante se refere, certos limites da decência ainda não foram ultrapassados. Pelo menos completamente.

Contudo, a construção desenfreada de prédios horrorosos, tipo cubo-lego, que cercam já de forma compacta toda a cintura amuralhada da cidade não deixa antever nada de bom. E no entanto, com tanto terreno disponível em volta da cidade e para lá dela, com o gritante envelhecimento populacional, com a crise generalizada a todos os níveis (até do espírito), não se entende por que raios é preciso vivermos todos em cima uns dos outros num espaço reduzido, sufocado pelas muralhas ou estrangulado pelas vias de circunvalação entupidas de trânsito!

Vem isto a propósito de um texto tocante hoje publicado pelo ex-Director do Museu de Évora – Joaquim Caetano – no Público (24/10/2010) e intitulado muito adequadamente “Minorias éticas”:
"Comemora-se o cinquentenário do restauro do Convento da Cartuxa. O conde de Vilalva comprou o convento e mandou restaurá-lo. Como o dilema ainda não se punha entre fazer daí um hotel ou um centro cultural, o conde teve a ideia estranha de repovoar o espaço com monges cartuxos, a mesma ordem que tinha sido obrigada a deixar o convento em 1834. Os seguidores de S. Bruno vivem em solidão e silêncio e têm basicamente a noção de que o mundo podia ser um sítio melhor, se aprendêssemos a estar calados. Mas são generosos. Apoiaram-me muito ao aceitar, durante as obras do Museu de Évora, recolher lá centenas e centenas de peças de pedra de grandes dimensões e isso deu-me o direito de passar alguns momentos muito agradáveis no enorme e silencioso edifício e nos seus jardins. Recordo-me de que, quando as televisões davam noticiários de hora a hora sobre o estado de saúde de João Paulo II, eles viveram no total desconhecimento, até que um monge soube e deixou na capela um pequeno papel com uma linha escrita a lápis sobre a doença do Papa, telegráfica nota que lá ficou até amarelecer. Um dia queixei-me junto de um dos cartuxos das funcionárias do museu não poderem ver as peças pela interdição à entrada feminina, e recebi a resposta rápida e directa: “Não vamos deixar de ser como somos, só para agradar a quem não é como ós.” Tinha obviamente razão, nem na igualdade as maiorias devem poder impor-se contra a natureza do diverso. São melhores e mais ricas as cidades assim, respeitando as minorias, mesmo as que decidem calar-se. A acção do conde de Vilalva possibilitou isso, um espaço íntegro, na sua forma e na sua função, habitado por homens silenciosos, e íntegros também eles.

Depois de ler o texto pensei que os monges cartuxos estão para Évora como os canários estavam antigamente para os homens que escavavam o fundo das minas. Para estes, a morte da ave alertava para a falta de oxigénio ou para a presença de gases tóxicos. Dizia-lhes que corriam perigo de vida e era necessário abandonar os túneis o mais depressa possível. Se um dia a cidade de Évora se tornar insustentável e/ou incompatível com a comunidade cartusiana não tenho dúvidas de que eles partirão e isso será, sem dúvida, o sinal mais evidente de que a cidade se desumanizou e se tornou igual a qualquer outra das megacidades do país: um mero dormitório de autómatos sem alma do qual é melhor fugirmos e bem depressa. Apenas posso desejar que esse dia esteja bem distante.

sábado, 23 de outubro de 2010

Little life

A demolição da Torre de Babel

No seu Atlas das Línguas em Risco a Unicef afirma que existem seis mil línguas em todo o mundo. Cerca de 2500 correm já hoje sério risco de desaparecimento e 199 são faladas por menos de dez pessoas. Na prática é como se já estivessem mortas, pois para sobreviver uma língua tem que ser falada por mais de cem mil pessoas e, se não for usada por mais de 30% das crianças, começa a correr risco de extinção.

A esmagadora maioria das línguas inventariadas no Atlas da Unicef (90%) não está representada na internet o que, num mundo globalizado e a muito curto prazo, pode significar a sua extinção. Quatro por cento dessas línguas são faladas por cerca de 97% da população mundial e algumas previsões indicam que, em 2100, 90% das línguas actualmente existentes estarão extintas.

De uma maneira geral é nos países com maior diversidade linguística que este risco de extinção é maior. Contudo, também esta regra apresenta excepções, como é o caso da Papua Nova Guiné: no seu território falam-se nada menos do que 800 línguas e, destas, só 88 estão em risco de extinção. E não é caso único: as línguas aymara e quechua no Peru, a língua maori na Nova Zelândia e a língua guarani no Paraguai conseguiram recuperar com sucesso de uma quase extinção.

Ora, ao longo da história da humanidade sempre houve línguas que se extinguiram, tal como também desapareceram civilizações inteiras, quase sempre por razões diversas. O que está agora diferente, segundo a Unicef, é o ritmo acelerado a que essa extinção está a acontecer. As causas desta extinção em massa são muitas e de grande complexidade: há línguas mais apetecíveis do ponto de vista económico do que outras, como é o caso do inglês, por exemplo; há ainda um discurso nacionalista disseminado a nível global que desde o séc. XIX se apoia muito na ideia da homogeneidade e, consequentemente, no conceito de uma língua nacional, que constitui a norma padrão à qual todas as outras se submetem. Isabel Tomás (Univ. Nova de Lisboa) aponta ainda três tipos de morte para as línguas: a morte súbita provocada pelo desaparecimento catastrófico de todos os seus falantes (genocídio); a morte radical provocada por uma forte repressão política; ou ainda a morte gradual provocada pelo abandono por parte dos seus falantes (que adoptam a língua dominante, com maior prestígio ou mais valor no mercado) que cessam assim de a transmitir às gerações mais novas. Também as línguas que não têm uma forma escrita (ou seja, ortografia oficial e gramática) têm mais dificuldade em sobreviver. O mais grave de tudo é que a extinção de uma língua conduz também ao desaparecimento de tradições, da cultura e dos conhecimentos acumulados ao longo de séculos que lhe estão associados. Ou seja, a humanidade fica culturalmente mais pobre sempre que uma língua se extingue.

Depois há ainda a complexa questão da classificação do que é língua e do que é dialecto. O linguísta Hugo Cardoso considera que, muitas vezes, a distinção é mais sociocultural e política do que apenas linguística. É o caso da ex-Jugoslávia onde os dialectos passaram a ser considerados como línguas por mera decisão política, tornando-se desta forma uma manifestação de soberania dos novos estados. Em países como a China, pelo contrário, os dialectos são tão distintos entre si que poderiam ser classificados como línguas de plenos direito mas, para garantir a homogeneidade e a coesão nacional, o estado centralizado impede que tal aconteça. Certo também é, que quando um dialecto passa a ser considerado língua fica, de certa forma, protegido.

Porém, salvar uma língua da extinção não é fácil: requer que seja ensinada nas escolas, utilizada nos meios de comunicação, nas cerimónias religiosas, na literatura, até mesmo no aparelho burocrático do estado e, sobretudo, que a sua comunidade de falantes esteja interessada e motivada para evitar o seu desaparecimento. Veja-se, a este propósito, o que está a acontecer ao mirandês que, pouco a pouco, está a ser transmitido para as gerações mais novas, ou com o patuá de Macau que está a ser recuperado por uma questão de identidade e para manter vivas as referências culturais dos seus falantes.

Em muitos casos, contudo, pouco mais há a fazer do que documentar e registar para estudar depois e para perpetuar a memória. Foi o que aconteceu agora com o crioulo indo-português de Cochim, nascido no séc. XV da interacção entre o português e o malaiala, cujo último falante – William Rozario – morreu recentemente. É, aliás, o que está a acontecer com muitos dos crioulos nascidos da nossa expansão marítima. As estatísticas dizem mesmo que a cada duas semanas há menos diversidade linguística no mundo, ou seja, estamos a desmantelar a Torre de Babel.

A Torre de Babel de Pieter Brueghel, o Velho
(Síntese do artigo de Francisco Gorjão Henriques intitulado “Rozario morreu e com ele uma língua inteira”, Público, 20/10/2010)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Teatro dos dias

Ninguém cheira melhor
nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
da cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.

Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência, Fund. Eugénio de Andrade, 1994, 1ª ed.

Blue as your blood

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Metáforas (quase) naturais - IX

Estremoz, 21/10/2010
O dia começa a descer devagar pelo outro lado do outeiro e, por entre os vinhedos, o chão parece estar coberto de cinzas sobre as quais um sangue ressequido e quebradiço vai caindo, abundante, num gotejar contínuo, como se as videiras chorassem de dor pelos frutos usurpados. Algumas, já exangues, deixam ver o tronco contorcido e nodoso que parece ter ardido por dentro até à petrificação. Paira sobre toda a paisagem um silêncio adocicado que anuncia o começo deste luto colectivo.

E no entanto, depois das chuvas do inverno, sob o olhar atento de um sol já primaveril, é certo que voltarão a cobrir de verde os campos como quem, esquecida a dor, acreditasse que, dessa vez, será diferente.

Contemplo-as e penso como a permanência da memória é, justamente, o que nos impede muitas vezes de fazer o luto das nossas próprias dores.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

And When I Die...

in 2010. Passei uma boa parte da minha adolescência a ouvir a sua voz límpida e as canções de sonoridade folk que cantou no trio Peter, Paul and Mary.

Pre(sen)tenciosa

Blaise Pascal escreveu um dia que “À força de falarmos de amor, apaixonamo-nos”.

Hoje, ao deparar com a citação no jornal pensei que, seguindo esta lógica, então “À força de escrevermos o desamor, dasapaixonamo-nos.”

Mais simples e claro não deve ser possível. Mais fácil também não. Agora só falta mesmo é acontecer exactamente assim.




terça-feira, 19 de outubro de 2010

Brasil: o paladino da portugalidade?

1. A língua
Há uns meses atrás escrevi aqui e disse que o Brasil, para defender dos seus próprios interesses em África e não só, tem feito pela língua portuguesa, tanto em termos de divulgação como de promoção, tudo aquilo que Portugal - seu território de origem - não tem, mas deveria ter feito: refiro-me apenas à criação do Museu da Língua Portuguesa em S. Paulo e ao Acordo Ortográfico (porque do ensino da língua é melhor nem falar). Em relação a este último, ficou bem claro que, com a nossa proverbial passividade e espírito de "deixa andar", quando nos demos conta do que se estava a passar já não havia muito a fazer e o (des)Acordo Ortográfico é, sobretudo, o que o Brasil entendeu fazer dele e com ele. Nós limitámo-nos a assinar de cruz.

Em relação ao Museu da Língua Portuguesa, o Ministério da Cultura (no pretérito reinado de Isabel Pires de Lima), certamente embaraçado com esta falha gritante, ainda pensou em fazer qualquer coisinha do género alí para os lados de Belém, mais propriamente no edifício do Museu de Arte Popular. Para não se tornar tão óbvio que, por incrível que pareça, mais não éramos do que macaquinhos de imitação, chamar-se-ia Museu do Mar e da Língua Portuguesa. Chegou a apontar-se a sua abertura para o ano de 2008, para poder beneficiar ainda de fundos comunitários, num investimento que rondaria (mais coisa, menos coisa) os 2,5 milhões de euros. Foram até estabelecidas parcerias com o Ministério da Ciência e falou-se da hipótese de o Centro Ciência Viva também vir a integrar o projecto. Contactou-se ainda a Fundação Roberto Marinho, patrocinadora do museu brasileiro, para a cedência de software e para a "partilha de experiências", no sentido de se replicar em Portugal a ideia de um museu que não tivesse um único objecto exposto, mas em que o visitante pudesse de forma interactiva conhecer e compreender melhor a sua própria língua.
Com a saída da ministra, os cacos do projecto foram varridos para debaixo do tapete e não mais se voltou a falar do assunto. E nem me parece que o assunto volte a ser referido pois, se na época dita "das vacas gordas", não houve grande interesse em fazer o Museu, agora que as ditas vacas estão a morrer à fome, mesmo que houvesse interesse (que continua a não haver) faltariam certamente as verbas necessárias para o concretizar. 

2. A literatura
Mas não é apenas na defesa da língua que o Brasil vai à frente. O mesmo está a acontecer com a divulgação da literatura portuguesa (sim, do território português e não a de expressão portuguesa). É por isso que hoje, na Casa Fernando Pessoa, será apresentado o Dicionário de Escritoras Portuguesas, um ambicioso projecto da autoria de três professoras de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte: Conceição Flores, Constância Lima Duarte e Zenóbia Collares Moreira.

Este projecto de investigação, que teve início em 1985,  é constituído por cerca de duas mil entradas, abarcando uma cronologia alargada: do séc. XV até à actualidade. Apresenta todas as escritoras consagradas, mas também nomes conhecidos apenas a nível local e regional, ou até no mais restrito círculo dos amigos e da família. Segundo noticia a Lusa, "Resgata muitos nomes ao esquecimento e ao ostracismo, identifica pseudónimos através de verbetes remissivos, colige informações dispersas de tempos diferentes, congregando mulheres que ao longo dos séculos publicaram ou deixaram os seus textos manuscritos, os quais foram posteriormente redescobertos pelos investigadores/as. Os verbetes reúnem informações biográficas e bibliográficas, munindo o leitor de dados que, regra geral, ele não encontra agrupados, o que constituí um instrumental indispensável para alunos, professores, investigadores e todos aqueles que se interessam pela literatura escrita por mulheres."

Considerações feministas (ou machistas à parte), esta é, sem dúvida, uma obra importante para se conhecer melhor a história da nossa literatura no feminino. E também não duvido de que se tornará numa obra de referência obrigatória em tudo quanto é bibliografia escolar e académica (e não só). Já quase nem me espanta que, mais uma vez, venha de terras do Brasil para cá. E quase aposto que já deve haver, algures numa universidade brasileira, uma equipa semelhante a tratar de elaborar a versão masculina do dito dicionário. Assim se salvaguardará a igualdade de géneros (pacificando assim os ânimos mais exacerbados) e se consolidará o conhecimento sobre a nossa própria literatura nacional. Só temos é que agradecer aos brasileiros este interesse que, pelos vistos, nós próprios já perdemos ou, pelo menos, temos descuidado muito. Mas deveríamos era pensar que, ao fazer isto, o Brasil está sobretudo a velar pelos seus próprios interesses e futuros proveitos e começar a aprender também como se faz.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A curva da estrada

Às vezes, ao volante, entretinha o pensamento a imaginar que a seguir à curva daquela estrada estarias tu, à minha espera. Mas depois, curva após curva, fui verificando que, de ti, não havia nem sequer um sinal. Até que às curvas tantas percebi que essa tua ausência é que era, verdadeiramente, o sinal de ti. Percebi ainda que, naquela estrada, depois de cada curva nada mais havia para mim do que estrada e mais estrada. De ti, nem sinal.

domingo, 17 de outubro de 2010

Grande saber com longa experiência misturado dá uma música assim

Júlio Pereira entre mulheres e no seu melhor: Graffitti.

Fragmentos de conversa

Fascínios
Quando li um dos seus [Fernando Pessoa] poemas em inglês, há já bastante tempo, fiquei fascinado com esse homem extraordinário que considero a figura central do modernismo europeu. (…) É por causa desta figura maior da literatura que Lisboa surge com frequência na minha obra. A personalidade de Pessoa é fascinante, tal como as dos poetas Wallace Stevens e T. S. Eliot; o primeiro trabalhava em seguros e o segundo num banco, o que demonstra como a figura pública pode ser tão diferente da verdadeira personalidade. Tudo isto tem a ver com a questão da identidade – e Pessoa, com os seus heterónimos, é mais e melhor do que todos os outros, é um universo em si próprio. (…)

A questão da identidade
Creio que a identidade é uma das preocupações mais prementes do ser humano. Hoje em dia estamos mais conscientes desse facto e colocamos, continuamente, as eternas questões: poderíamos ter tido uma vida diferente? Será que somos sempre a mesma pessoa? O que mudou desde a nossa juventude? Perguntas desse tipo são feitas por toda a gente e não apenas por escritores.

A força do destino
Penso que as nossas vidas são regidas pela boa e pela má sorte que temos. Adam [protagonista de “Tempestade”], que parece uma figura quase divina – um homem que produz chuva -, é impotente perante as forças da pouca sorte. Esta ideia da força do “destino” está sempre presente nas minhas obras. (...) Os acontecimentos, em “Tempestade” [o seu último romance publicado em Portugal], reflectem essa absoluta indiferença do universo, que, embora pensemos o contrário, não nos deve nada. É uma questão de lançar os dados, de atirar a moeda ao ar. (…) Fazemos o que podemos, mas, no final, o que é que isso conta?

Falhar é a coisa mais humana que existe
No nosso dia-a-dia vemos amigos e conhecidos a soçobrarem e pensamos no que é que aconteceu para que tenham esquecido o que é fundamental nas suas vidas; também há pessoas que acham que têm que ser necessariamente felizes e falham, e falhar é a coisa mais humana que existe. Falhamos mesmo quando as oportunidades estão diante dos nossos olhos.


Um bom romancista pode ser uma pessoa feliz?
Um grande amigo meu, romancista, que também tem uma vida feliz e estável, diz sempre que quem anda à deriva numa jangada num mar infestado de tubarões não precisa de saltar para a água, só para experimentar a sensação de ser devorado.

William Boyd, excertos de uma entrevista feita por Helena Vasconcelos para o Ípsilon (15/10/2010)

sábado, 16 de outubro de 2010

Desencontros

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

Água de uma fonte misteriosa

como os teus olhos ou a tua boca...

The Novel: Live - the end

Está quase a chegar ao fim a maratona de escrita na Hugo House em Seattle. Trinta e um capítulos estão já escritos e disponíveis para quem quiser ler no link: http://www.thenovellive.org/novel/

Hoje, Jamie Ford, Clyde W. Ford, Elizabeth George e Susan Wiggs redigirão os capítulos finais e esse trabalho pode espreitar-se em http://www.thenovellive.org/novel/live/ 

Mesmo que não venha a transformar-se em best seller do ano os organizadores da Arts Crush Literay Week  podem já respirar de alívio por terem conseguido concretizar tão arriscada e ousada proposta, para já não falar da excelente capacidade de organização para gerir tempos, pessoas e tarefas em tempo útil.

É de ideias assim que é feita a cultura e a animação cultural. Contudo, ainda é cedo para se saber se com elas se virá a fazer também literatura. Aguardemos, pois.

A beautiful soul de Aloe Blacc

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O movimento fixado em imagens



Hélios fotografado em Contemplation Rock, Glacier Point 
O autor destas imagens fantásticas nasceu em Londres, em 1830, sob o nome de Edward James Muggeridge, mas cedo partiu para a América onde se reinventou como o excêntrico, ambicioso e genial fotógrafo Eadweard Muybridge que assinava as suas fotografias como Hélios, o deus grego do sol. Começou por fotografar as mais espectaculares paisagens do continente americano, passou pelo retrato e, um dia, decidiu fazer voar um cavalo, ou seja, inventou uma elaborada técnica que permitia fazer fotografias em sequência, capturando assim o movimento, e tornou-se o precursor do cinema.

Em 1972 Muybridge colocou 24 máquinas fotográficas alinhadas de frente para um painel branco. No meio uma espécie de corredor com interruptores estrategicamente colocados e que o cavalo pisava à medida que ia avançando, fazendo assim disparar as câmaras que lhe captavam então a sequência de movimentos. Levou seis anos a apurar a técnica que lhe permitiu ainda inventar o Zootrópio (mais tarde aperfeiçoado e designado como Zoopraxiscópio), espécie de máquina de  projecção onde, fazendo girar um slide circular, era possível observar o movimento registado fotograficamente.



Nunca mais parou de coleccionar gestos, movimentos e expressões, desde os mais elaborados - uma rapariga a dançar - aos mais corriqueiros - um homem a tirar o chapéu - como se quisesse registar e catalogar todas as variantes possíveis do movimento. Com o passar do tempo as sequências fotográficas tornam-se cada vez mais longas e, claro, mais narrativas, anunciando e aproximando-se cada vez mais do que viria a ser mais tarde o cinema.

Na fase final da sua longa vida deu conferências um pouco por toda a Europa, divulgando o seu trabalho e a técnica que tinha inventado e desenvolvido. Colaborou até com faculdades de medicina fotografando doentes cujas imagens eram depois objecto de estudo. Fotografou-se ainda a si próprio, a caminhar, nu, com longas barbas brancas de profeta, corpo seco e musculado, com os olhos vivos e brilhantes, mas também perturbadores, de quem viu e, sobretudo, viveu muito. Teve ainda tempo de retornar à sua Londres natal, onde veio a morrer em 1904.

Quando, em 1895, os irmãos Lumière filmaram a saída das operárias da fábrica de Lyon havia qualquer coisa de novo e, ao mesmo, de déjà vu naqueles escassos segundos de filme:

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Espécie de carta ao pai natal

Muito antes de ter lido a Razão de o Pai Natal ter barbas brancas de Jorge de Sena já eu não acreditava no Pai Natal. Vicissitudes várias me desenganaram desde cedo em relação às histórias fantasiosas com que as famílias sustentam nas crianças a ilusão de que o mundo é naturalmente bom, e as pessoas que vivem nele também. No entanto, como metáfora (ou talvez até alegoria) das pequenas satisfações que alguém nos proporciona apenas pelo prazer – seu e nosso – de vir ao encontro de secretos desejos e vontades, a ideia do Pai Natal funciona tão bem como qualquer outra.

Assim sendo, decidi-me a cumprir o ritual infantil, ou talvez nem tanto assim, da “carta ao Pai Natal” para anunciar de antemão a quem de direito o pequeno capricho que espero me seja satisfeito. Claro que não se trata de tarefa fácil, nem sequer óbvia até porque, se assim fosse, o “Pai Natal” desconfiaria com certeza das minhas boas intenções..

E, querido Pai Natal, o que eu gostaria que alguém colocasse no meu sapatinho seria uma tradução/edição portuguesa do Dicionário de Lugares Imaginários de Alberto Manguel. Não é que eu não possa lê-lo na versão original (inglês), na sua tradução francesa, ou mesmo na versão em português do brasil mas, na minha língua materna teria, sem dúvida, outro sabor.

 Para quem como eu se dedica às viagem irrealizadas este guia dos lugares que não constam dos mapas convencionais, mas sim nas melhores páginas da literatura universal, é algo de indispensável. Na sinopse oferecida pela editora brasileira é dito que “O viajante literário tem a oportunidade de conhecer paisagens inusitadas como Frívola, a terra das maravilhas ténues, com seus cavalos tão frágeis que ninguém pode montá-los. Ou Capilária, região povoada por mulheres louras gigantescas que devoram os bullpops (criaturas pequenas e indefesas, semelhantes a órgãos sexuais masculinos). Ou ainda Pauk, uma sala vazia cujo único habitante é uma aranha gigante.” O livro percorre a literatura e os seus lugares como se de um verdadeiro guia de viagens se tratasse. Entre muitos outros, lá estão a Abadia de O nome da Rosa ou o País das Maravilhas de Alice. Tudo enriquecido com mapas, ilustrações e recomendações úteis que muito facilitarão a vida dos afoitos viajantes.

Na edição brasileira tiveram até o cuidado de acrescentar os lugares míticos da literatura autóctone, como a lendária Pasárgada de Manuel Bandeira ou o encantador e bucólico Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Pois então Querido Pai Natal não poderiam também as nossas editoras nacionais(?) agora reunidas em grandes e poderosos conglomerados – que é o mesmo que dizer “endinheirados” –, assim como quem não quer a coisa, disfarçada no meio da abundante literatura sobre vampiros, martirizadas, segredos de alcova e guias de auto-ajuda (que ajudam sobretudo as finanças dos seus autores) mandar traduzir a obra, podendo até enriquecê-la com os lugares míticos da nossa literatura nacional: a Sintra de Byron ou de Eça, o plaino alentejano de Manuel da Fonseca, Mafra segundo José Saramago, a Lisboa pessoana, as “terras do demo” de Aquilino, e tantos outros? Eu acho que és a pessoa certa para os convenceres, com o teu tonitruante ho-ho-ho-ho.

É que num planeta devassado pela tecnologia e delapidado em nome do desenvolvimento e da economia os lugares que nos tocam fundo o coração são cada vez mais estes, os da imaginação. É pois de um guia assim que eu preciso para depois te ir visitar à Lapónia, querido Pai Natal, onde espero ainda vivas em paz, aquecido pelo bafo das tuas renas e de onde partes todos os anos para povoar os sonhos e a imaginação de todos aqueles que ainda podem, ou conseguem, acreditar que o mundo é bom e que o Pai Natal vive nele. Eu cá acredito mais naquela de “o natal ser quando um homem quiser” (e tiver dinheiro) mas, à cautela...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A estrada branca da noite escura também é uma música assim

O reality show da escrita: The Novel Live!

Ao terceiro dia da maratona de escrita  da Arts Crush Literay Week  em Seattle o romance colaborativo vai já no seu 13º capítulo, tantos quantos os autores que se sentaram até agora ao computador para escrever e, pelo vistos, inspiração não tem faltado aos participantes! O ambiente animado na Hugos’s House (há até uma happy-hour) também deve ajudar.

Pode-se espreitar o trabalho em directo neste link http://www.thenovellive.org/novel/live/ (há que ter em conta as diferenças horárias e as vicissitudes da rede) e também mandar palpites através do chat (in english, please).

terça-feira, 12 de outubro de 2010

S.O.S.

O mundo inteiro está sozinho. Cada pessoa vive isolada no meio das multidões. As multidões são formadas por indivíduos, por numerosíssimos indivíduos separados uns dos outros.
As palavras caem perdidas no chão.
Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade inteira está reduzida à solidão de cada um dos seus indivíduos.
O mundo inteiro está dividido em tantos mundozinhos individuais, pequeníssimos, microscópicos, quantos são os seus habitantes.
Mas aquele mundo da colaboração de todos, o único mundo real afinal de contas, esse já não existe. Veio cada qual roubar-lhe o seu pedacito e o mundo ficou feito em migalhas, reduzido a grãos de areia, pó, nada!
(...)
S.O.S. perdidos, desencontrados, sozinhos! S.O.S. estamos todos desencontrados, estamos todos sozinhos, perdidos todos! S.O.S. sozinhos! S.O.S. desencontrados! S.O.S. perdidos! S.O.S. sós! S.O.S. sós! S.O.S.
S.O.S. é o sinal internacional de telegrafia a pedir socorro.
Está formado pelas três letras iniciais da frase inglesa: «Save Our Souls», que quer dizer em português: «Salvai Nossas Almas».
Estas três letras S.O.S. são as mesmas com que se escreve em português o plural do indivíduo isolado: Sós.

Almada Negreiros, Sudoeste, Nº 2, 1935, In Obras Completas

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Romance a 72 mãos

Trinta e seis escritores de língua inglesa (uns mais conhecidos do que outros), reunidos em Seattle para a Arts Crush Literay Week (http://www.artscrush.org/), aceitaram o desafio arriscado de escrever, em conjunto e ao vivo - para todos vermos como é que se faz e aprendermos também a fazer - um romance de 60 mil palavras em seis dias. Assim se pode resumir o projecto “The Novel: Live!”, cujo trailer revela bem a espectacularidade de que o evento está já rodeado:


As linhas orientadoras da história que vai ser contada – personagens, temas, espaços – foram apresentadas ontem ao fim da tarde e o primeiro escritor sentou-se ao computador hoje às 10 horas no palco do Richard Hugo House. Até ao próximo dia 16 de Outubro, data limite para a sua conclusão, de duas em duas horas, um autor assume a tarefa de se sentar ao computador para escrever ao vivo o romance, numa autêntica maratona de escrita com resultados não apenas incertos, mas também imprevisíveis.

O público pode assistir ao trabalho criativo dos escritores “ao vivo”, através de um ecrã gigante colocado na sala e também é possível visionar tudo na internet no sítio http://www.thenovellive.org/. Espectadores e internautas estão autorizados a comentar e a dar sugestões, inclusivamente para a capa. Se tudo correr bem, no final, o público poderá adquirir o e-book em vários formatos, com o apoio da Amazon.

Garth Stein, um dos organizadores do projecto, e que também nele participa como escritor, revelou que no início pensaram que era impossível concretizar com sucesso uma tal ideia, mas depois aperceberam-se que todos os autores pensavam assim sempre que se decidiam a escrever um livro. Mas, no final, o livro estava escrito. Por isso decidiram avançar.

Este tipo de projecto de escrita colectiva não é novo mas, até agora, os resultados conseguidos não foram brilhantes. Foi o caso, por exemplo do projecto de romance colaborativo “A Million Penguins” da editora Penguin, sobre o qual o próprio editor, John Mackinson, declarou que “Era mesmo terrível”. No entanto, a enorme adesão à fase criativa do projecto revelou como as pessoas estão hoje ávidas de participar em projectos criativos e como se interessam e muito pela própria escrita. E o sucesso dos cursos ditos de “escrita criativa” aí está para o confirmar.

Resta-nos desejar a todos os autores participantes um bom e inspirado trabalho e aguardar pacientemente pelo resultado final. Até lá podemos ir espreitando por cima do ombro dos autores, uma vez que aqui a curiosidade não “mata o gato”, bem pelo contrário.

domingo, 10 de outubro de 2010

Nascidas para morrer

Évora, 10/10/10
Durante a tarde, no espaço de uma hora, a cidade enfeitou os telhados com uma bandolete em forma de arco-íris e, logo depois, a primeira vaga de formigas aladas desaguou pelas ruas e encheu as paredes caiadas, as portas, as janelas e o próprio chão de pontos negros. Parece uma maré viva de insectos mas, quando afinamos o olhar, percebemos que muitas estão já mortas e as outras agonizam à sua volta como se, num pacto suicida, se tivessem atirado propositadamente contra os muros para morrer. As formigas de asas são a carne para canhão destas primeiras chuvadas de outono.

Arqueologia das palavras: a crise do teatro

Teoria

“Acho que o teatro português está em crise permanente, que a crise é a sua natureza, porque o homem português é extremamente teatral, exerce a sua teatralidade em casa, na rua, no café, nos transportes comuns, e já não precisa de teatros profissionais. Todos os latinos têm uma grande carga de teatralidade. A rua aqui é diferente da de Estocolmo como a de Roma difere da de Berlim. Umas são ruas animadas, onde se passa sempre alguma coisa, onde acontecem sempre «cenas», enquanto que nos países nórdicos (não latinos, não católicos, protestantes), a teatralidade é muito mais contida, e a gente para se conhecer através da teatralidade tem que ir ao teatro. Daí que este, nos países frios, é muito mais procurado, muito mais cultivado, e talvez melhor. Em Portugal, essa crise está ligada à natureza humana, que não precisa do teatro porque o faz.”
Jorge Listopad, in Jornal Universitário, Nº 1-12/1985

Contra-teoria

“Teoria aliciante – a vida do teatro substituída pelo teatro da vida – a lembrar Evreinoff. As coisas, porém, que é como quem diz z prática, aí estão para corrigir a teoria. É que o teatro existe, opera, interessa as gentes, lá no mundo latino e católico. É ver aqui ao lado, em Espanha, em França, em Itália: o teatro nas ruas mas também o teatro nos palcos, nos teatros, quase sempre cheios.

Não, a meu ver as coisas têm menos a ver com a epistemologia e mais com a política. Não apenas a grande política, mas também com a pequena, com o comodismo, o desinteresse, a imbecilidade, que andam por aí aos pontapés e exercem uma censura permanente sobre o que existe ao mesmo tempo de mais frágil e de mais subversivo. O teatro precisamente. Enquanto o teatro for tratado como é, na comunicação social, em especial na RTP, nas escolas, nos próprios teatros, enquanto não for encarado como uma vivência do nosso quotidiano, tão indispensável como qualquer outra, o cinema, a televisão, o futebol, a bica – enquanto isso não acontecer continuaremos a lutar quase em vão.”
Carlos Porto, In Imprensa, 14/1/86

sábado, 9 de outubro de 2010

A cultura e os subsídios, o ovo e a galinha

É hoje inquestionável que existe um fosso cada vez mais profundo entre o cidadão comum e os políticos que lhe (des)governam a vida, da mesma forma que, nestas últimas décadas, se verificou um claro distanciamento entre o público comum e as formas mais elitistas de arte.

Para atrair o público, muitas instituições culturais viram-se de certa forma compelidas a adoptar estratégias de sedução e de aproximação relativamente a esse público mais arredio. Veja-se o caso de sucesso exemplar de muitas iniciativas do CCB em Lisboa ou da Fundação de Serralves no Porto. Só que muitos questionam esta forma de levar ao público sobretudo aquilo que o público gosta, quando o percurso também deveria passar, justamente, pelo inverso: dar ao público novas experiências, até mesmo controversas, para gerar diálogo, discussão de ideias, reflexão; para gerar, no fundo, mais e melhor conhecimento e desenvolvimento. Para muitos críticos, esta forma quase submissa de alimentar o gosto do público para garantir «casa cheia», e o consequente sucesso financeiro, subverte e corrói por dentro aquilo que é talvez a função mais nobre das artes: abrir janelas para o desconhecido, forçar-nos a abandonar por instantes a nossa zona de conforto, a sairmos de nós para chegarmos a compreender e a conhecer melhor os outros.

Compreende-se que o tempo em que os grandes intelectuais, poetas e pensadores europeus faziam escola e criavam movimentos culturais relevantes à mesa do café já lá vai. Compreende-se que é hoje preciso chegar junto do público para o “puxar para cima”, mas, com a crise, o problema está agora em como fazer isso e com que dinheiro.

Esta é claramente uma questão polémica e, talvez até mesmo insolúvel, um pouco à semelhança do dilema do ovo e da galinha. Alguns argumentam que os subsídios à cultura serão sempre um encargo, uma vez que muitas actividades culturais não geram nem nunca virão a gerar qualquer retorno financeiro significativo. Outros, por sua vez, afirmam que a contribuição das artes e da cultura é do domínio imaterial – estariam assim em causa coisas tão importantes como a socialização e a participação cívica consciente e responsável, o sentimento de pertença e de reforço de identidades colectivas, a regeneração e a revitalização urbanas – e, por isso, deve ser apoiada e incentivada por si mesma.

Certo, certo, é que a ministra da cultura não tem tarefa fácil e, no actual estado da arte governativa e económica do país, corre mesmo o risco de ser apenas uma figura decorativa à frente de um ministério que, para além de sair caro em termos de manutenção, também não produz nada de muito relevante e, ainda por cima, alimenta uma verdadeira corte de gente (especialistas, técnicos, programadores e pseudo criadores) que, à pala da cultura e das artes, também não faz lá grande coisa.

A música também é um Karma

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A cultura popular portuguesa já não é o que era

A definição de povo “enquanto sujeito da nação moderna” (p. 125) tem-se desenvolvido em torno de duas concepções distintas. Uma delas, associada aos ideais das Revoluções Francesa e Americana, considera que o povo são os cidadãos, ou seja, uma unidade política. A outra, oriunda do historicismo romântico do início do séc. XIX, considera que o povo é uma unidade cultural: a dos camponeses. Esta segunda concepção, de carácter etno-genealógico, esteve por detrás do surgimento de um grande número de nações europeias e, mesmo aquelas em que prevaleceu o modelo cívico-territorial, passaram por fases em que as ideias etnoculturais desempenharam um papel relevante.

Foi também a partir desta ideia de povo que o romantismo criou o conceito de cultura popular - por oposição à noção classicista de cultura erudita – estabelecendo entre ambas uma distinção moral. Assim, a cultura erudita surge associada às elites e é definida como sendo “artificial, cosmopolita e desnacionalizada” (p. 126), enquanto a cultura popular se assume sobretudo como campesina e, por isso também, “autêntica, nacional, antiga” (p. 126). Não deixa de ser curioso verificar que foi à volta deste conceito de cultura popular que os autores românticos desenvolveram todo um trabalho erudito de reflexão ensaística e de criação literária, sobretudo no campo da etnografia, da etnologia e da antropologia. Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Leite de Vasconcelos, entre outros, foram pioneiros no trabalho de recolha. Por sua vez, autores como Almeida Garrett ou Teixeira de Pascoaes destacaram-se na vertente criativa e evocativa.

Mas o modelo da “Kulturnation” de Meinecke também deu origem a um modelo de nação. E, por isso, o discurso político (sobretudo do Estado) se apropriou desde cedo deste conceito de cultura popular para o transformar num “modo etnográfico de discursar a nação” (p. 126), tanto à escala nacional como regional. A forma mais ou menos explícita como esse discurso político foi assumido foi variando ao longo do tempo. 

Esta visão político-etnográfica da cultura popular e da identidade nacional gerou, segundo João Leal, as grandes constantes em que se baseou toda a reflexão sobre a cultura popular europeia no séc. XIX e boa parte do séc. XX:
a) testemunho dos processos étnicos e espirituais da formação da nação;
b) forma de pensar a «alma nacional», a essência espiritual da nação;
c) conjunto de aspectos, traços, elementos e objectos (folclore, mitologia, festas, crenças, cancionairo, etc.) sobre os quais se fundam as identidades nacionais modernas (aquilo que alguns autores designam como patrimonialização);
d) fonte de controvérsias (muitas vezes estratégicas) à volta da ligação diferenciada entre popular e nacional.

Em Portugal a objectificação da cultura popular (a constante c), isto é, a sua transformação em coisas que devem ser estudadas, reinterpretadas, catalogadas, seleccionadas e exibidas como signos de uma identidade local e/ou nacional tem já uma longa história. Este processo proporciona aos objectos patrimonializados uma espécie de segunda vida em que eles deixam de ser objectos da vida rural quotidiana (a sua primeira vida) para passarem a ser objectos de exibição ou exposição em museus e galerias. Aí se exibem a si mesmos para darem testemunho de um tempo e de uma vida que já não existe, ou que está em vias de extinção.

Contudo, a antropologia tem evoluído desde os anos 60 para novas formas de pensar e interpretar a ruralidade, distanciando-se cada vez mais destes meros “programas identitários” (p. 132). O êxodo populacional para as cidades e o consequente declínio do mundo rural levou a que uma nova geração de antropólogos (surgida já depois do 25 de Abril de 74) se interessasse por novos terrenos e objectos de pesquisa, sobretudo em contexto urbano.

Assim, foi apenas uma questão de tempo até que se começasse a questionar a pertinência de encarar a cultura popular de base rural como base de uma identidade nacional e como objecto central dos estudos antropológicos. A nossa adesão à CEE/UE na década de 80 e a voragem modernizadora que se lhe seguiu, tanto no discurso, como nas práticas, tornou mais difícil “o uso da ruralidade como signo identitário. João Leal aponta a Expo 98 e o seu alheamento do mundo rural, como a melhor prova disso mesmo. Foi assim que, com o tempo, os museus ditos de “Arte Popular” e de “Artesanato” se tornaram objectos estranhos, ou mesmo dispensáveis. Muitos encerraram portas um pouco por todo o país (o Museu de Arte Popular em Lisboa, o Museu do Artesanato em Évora ou o Museu da Alfaia Agrícola em Estremoz, por exemplo). Alguns reabriram entretanto, não pela actualidade do seu projecto, “mas pelo valor patrimonial que esse projecto encerrava” (p. 132) e que muitos consideram ainda ser necessário preservar.

Muitos destes espaços que reabriram sobrevivem agora apenas graças aos apoios das câmaras municipais e ao interesse de outras entidades locais (associações, por exemplo), já que o estado declinou aqui as suas responsabilidades (o que revela como está hoje ultrapassada esta ligação directa entre cultura popular e identidade nacional).

É pois pela via das artes que a cultura popular está a ser re-descoberta: Joana Vasconcelos ou Catarina Portas “continuam a discursar Portugal a partir da cultura popular” (p. 133). Só que os seus discursos estéticos já nada têm que ver com a “cultura popular rural dos etnógrafos portugueses nacionalizadores.” (p.133). Poderemos talvez dizer que esta será a terceira vida dos objectos da cultura popular.

Este distanciamento do estado em relação a estes equipamentos museológicos favoreceu ainda uma apropriação e uma revitalização da cultura popular a uma escala sobretudo local ou regional que tem conduzido, um pouco por todo o país, ao renascimento de muitas tradições e práticas (música, folclore, festas, feiras, recriações históricas e etnográficas, etc.).

Esta evolução da cultura popular portuguesa – do plano nacional para um plano sobretudo local ou regional – garantiu-lhe, por um lado, a sobrevivência nestes tempos conturbados da globalização e, por outro, permitiu-lhe transformar-se em “terreno a partir do qual podem continuar a ser declinadas as identidades das pessoas e dos colectivos” (p. 136).

E, a meu ver, a chamada “world music” é um bom exemplo de como novas formas culturais podem nascer no país pós-rural em que nos transformámos e assim “redesenhar o campo das culturas populares urbanas” (p. 136). Funciona até como forma de “investigar os cruzamentos entre formas culturais locais e processos culturais globais” (p. 136-7), já a piscar os olhos às culturas populares urbanas e às sonoridades trazidas pelas populações imigrantes. A “world music”, que deitou raízes na cultura popular, é assim como um fio de Ariadne que re-liga o passado ao presente e nos entreabre a porta para o futuro.



Os Galandum Galundaina cantam naquela que é a segunda língua oficial portuguesa (o mirandês), e são um bom exemplo desta nova forma de discursar a cultura popular e a identidade local e/ou regional. Os sons do plaino mirandês vão ecoar aqui pela sulidão amanhã. (E eu cá já tenho bilhete.)

Nota: Todas as citações são de João Leal, “Usos da cultura popular”, In Como se faz um povo, Coord. de José Neves, Tinta da China Ed./Fundação EDP, 2010, pp.125-137.