quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Metáforas (quase) naturais - IX

Estremoz, 21/10/2010
O dia começa a descer devagar pelo outro lado do outeiro e, por entre os vinhedos, o chão parece estar coberto de cinzas sobre as quais um sangue ressequido e quebradiço vai caindo, abundante, num gotejar contínuo, como se as videiras chorassem de dor pelos frutos usurpados. Algumas, já exangues, deixam ver o tronco contorcido e nodoso que parece ter ardido por dentro até à petrificação. Paira sobre toda a paisagem um silêncio adocicado que anuncia o começo deste luto colectivo.

E no entanto, depois das chuvas do inverno, sob o olhar atento de um sol já primaveril, é certo que voltarão a cobrir de verde os campos como quem, esquecida a dor, acreditasse que, dessa vez, será diferente.

Contemplo-as e penso como a permanência da memória é, justamente, o que nos impede muitas vezes de fazer o luto das nossas próprias dores.