Falei aqui há tempos dos cartuxos de Évora a propósito do filme-documentário de Philip Gröning “O Grande Silêncio” ("Die Große Stille”) para dizer que acho muito importante que os políticos que governam a cidade respeitem esta comunidade que escolhe afastar-se do mundo para viver no silêncio, na oração e na meditação, enquanto formas de alcançar patamares mais elevados de consciência e de sabedoria. Julgo que o desenvolvimento urbanístico da zona envolvente ao convento deve ser pensado com cuidado para, justamente, não pôr em causa a permanência da comunidade. Acho até que a presença dos monges é uma prova de que, no que à ganância dominante se refere, certos limites da decência ainda não foram ultrapassados. Pelo menos completamente.
Contudo, a construção desenfreada de prédios horrorosos, tipo cubo-lego, que cercam já de forma compacta toda a cintura amuralhada da cidade não deixa antever nada de bom. E no entanto, com tanto terreno disponível em volta da cidade e para lá dela, com o gritante envelhecimento populacional, com a crise generalizada a todos os níveis (até do espírito), não se entende por que raios é preciso vivermos todos em cima uns dos outros num espaço reduzido, sufocado pelas muralhas ou estrangulado pelas vias de circunvalação entupidas de trânsito!
Vem isto a propósito de um texto tocante hoje publicado pelo ex-Director do Museu de Évora – Joaquim Caetano – no Público (24/10/2010) e intitulado muito adequadamente “Minorias éticas”:
"Comemora-se o cinquentenário do restauro do Convento da Cartuxa. O conde de Vilalva comprou o convento e mandou restaurá-lo. Como o dilema ainda não se punha entre fazer daí um hotel ou um centro cultural, o conde teve a ideia estranha de repovoar o espaço com monges cartuxos, a mesma ordem que tinha sido obrigada a deixar o convento em 1834. Os seguidores de S. Bruno vivem em solidão e silêncio e têm basicamente a noção de que o mundo podia ser um sítio melhor, se aprendêssemos a estar calados. Mas são generosos. Apoiaram-me muito ao aceitar, durante as obras do Museu de Évora, recolher lá centenas e centenas de peças de pedra de grandes dimensões e isso deu-me o direito de passar alguns momentos muito agradáveis no enorme e silencioso edifício e nos seus jardins. Recordo-me de que, quando as televisões davam noticiários de hora a hora sobre o estado de saúde de João Paulo II, eles viveram no total desconhecimento, até que um monge soube e deixou na capela um pequeno papel com uma linha escrita a lápis sobre a doença do Papa, telegráfica nota que lá ficou até amarelecer. Um dia queixei-me junto de um dos cartuxos das funcionárias do museu não poderem ver as peças pela interdição à entrada feminina, e recebi a resposta rápida e directa: “Não vamos deixar de ser como somos, só para agradar a quem não é como ós.” Tinha obviamente razão, nem na igualdade as maiorias devem poder impor-se contra a natureza do diverso. São melhores e mais ricas as cidades assim, respeitando as minorias, mesmo as que decidem calar-se. A acção do conde de Vilalva possibilitou isso, um espaço íntegro, na sua forma e na sua função, habitado por homens silenciosos, e íntegros também eles.”
Depois de ler o texto pensei que os monges cartuxos estão para Évora como os canários estavam antigamente para os homens que escavavam o fundo das minas. Para estes, a morte da ave alertava para a falta de oxigénio ou para a presença de gases tóxicos. Dizia-lhes que corriam perigo de vida e era necessário abandonar os túneis o mais depressa possível. Se um dia a cidade de Évora se tornar insustentável e/ou incompatível com a comunidade cartusiana não tenho dúvidas de que eles partirão e isso será, sem dúvida, o sinal mais evidente de que a cidade se desumanizou e se tornou igual a qualquer outra das megacidades do país: um mero dormitório de autómatos sem alma do qual é melhor fugirmos e bem depressa. Apenas posso desejar que esse dia esteja bem distante.