sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

E para variar...

...uma vez que é o dia final deste ano e que apetece fazer/ouvir algo de diferente fica aqui uma bela ideia, sobretudo para quem, como eu, gosta de gatos, de música e de bicharadas várias: miar, ou melhor, o "Duetto buffo di due Gatti" de Gioachinno Rossini pelos Petits chanteurs à la croix de bois. Uma pequena delícia musical.

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Um piano esventrado e um pianista de pantufas

Uma das boas descobertas que fiz este ano foi a da música do canadiano Gonzales (nascido Jason Charles Beck). Mais do que pianista é um performer que toca um piano vertical com as entranhas à vista e sempre de pantufas (estas são, aliás, uma das suas imagens de marca). Vive actualmente em Paris e, numa entrevista recente, declarou que "Podia viver apenas com um piano, um computador e alguns livros." (Ípsilon, 5/11/2010), o que não será de estranhar já que o talento também enche o espaço.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Uma alegre campanha - VIII

Um regato musical

Em jeito de sumário

Agora que o fim do ano já está mesmo aí, à nossa frente, é tempo para muitos de fazer um balanço ou uma síntese do que de mais relevante, pior ou melhor, estranho, criativo, imprevisto, assim-assim ou perfeitamente inútil possa ter acontecido ao longos destes doze meses para fazer uma espécie de memória futura.
A Time já tem online o seu "Top 10 Everything of 2010", distribuído por 50 listas diferentes. Pode ser uma boa ajuda para os mais meticulosos nestas coisas. A consultar em http://www.time.com/time/specials/packages/0,28757,2035319,00.html.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Um alegre campanha - VII



Os -ismos do momento

Um pouco por toda a aldeia global, as redes sociais têm potenciado curiosos e, mais ou menos sérios fenómenos e movimentos de cidadãos que percorrem o largo espectro que vai do protesto à reivindicação, passando pela divulgação ou pela defesa dos mais variados e singulares direitos. Não é um caminho novo mas é, sem dúvida, um caminho diferente este que as novas tecnologias vieram proporcionar. Durante o ano de 2010 vários desses movimentos usaram as potencialidades e as acessibilidades do Facebook para se expandirem. Um deles, liderado por João Nogueira dos Santos, é o “Adere, Vota e Intervém dentro de um Partido: Cidadania para a Mudança”. Tem como pressuposto a ideia de que os partidos políticos portugueses precisam de mais cidadãos-militantes que injectem novas ideias e reivindiquem as necessárias mudanças numa estrutura partidária feita sobretudo de clientelismos, como forma de potenciar a mudança na própria hierarquia política. O movimento pretende, sobretudo, ser uma forma de abrir espaço para aqueles que, sendo competentes e portadores de novas ideias para a causa pública, não conseguem, contudo, quebrar as paredes de vidro do ciclo vicioso do clientelismo político-partidário.

Nascido do descontentamento e da óbvia desconfiança dos cidadãos que, um pouco por toda a Europa e também por cá, reclamam a reconfiguração urgente dos sistemas políticos, o Movimento sabe que essa mesma mudança dificilmente será concretizada fora do sistema partidário tal como o conhecemos. Por isso o seu mentor propõe que os cidadãos se inscrevam no partido político com que mais se identificam em termos ideológicos ou em que mais têm votado nestes últimos anos. Pede ainda que participem depois activamente nas reuniões partidárias manifestando aí de viva voz o profundo descontentamento que até agora se tem limitado muito à blogosfera, ao twitter e às próprias redes sociais, para exigir as mudanças que todos sabemos serem não apenas necessárias, mas também urgentes e ainda apoiar e votar em líderes partidários diferentes dos que até aqui se têm limitado a conquistar o poder para depois continuar a fazer a mesma coisa. No fundo, o referido Movimento quer que os cidadãos se tornem vozes críticas dentro dos partidos e não se limitem às queixinhas anónimas e ao voto em branco ou à abstenção como formas de protesto, aliás inúteis como todos sabemos.

Se movimentos como este virão ou não a implementar-se, se conseguirão ou não mudar, de facto, alguma coisa na relação dos cidadãos com os partidos e com a própria política só o tempo o dirá. Para já o mais relevante é que estes movimentos quase telúricos estejam a despontar, apesar da letargia e do alheamento cívico em que temos andado mergulhados nestes tempos de crise.

São, no fundo, ondas de optimismo que se atiram contra o paredão rochoso do pessimismo vigente e revelam que, afinal, ainda há quem acredite de forma sincera, mesmo que um tanto ingénua, na possibilidade de mudar o mundo para melhor. O optimismo do Movimento revela-se também claramente na forma como acredita que ainda é possível melhorar partidos políticos anquilosados por décadas de prática viciada e viciosa de conquista e exercício do poder político. No fundo, são gente boa, crédula e fiável. Por isso os partidos fazem deles e dos cidadãos que os integram, muitas vezes, os bobos da festa.

E embora considere o seu esforço meritório e as suas ideias interessantes, acho difícil que este tipo de propostas venha, de facto, a fazer a diferença. Mas isto talvez seja porque o meu pensamento e, sobretudo, o meu sentimento em relação a políticos, partidos e politica é de grande cepticismo. E, como sabemos, o céptico é, por definição, aquele que já não acredita ou que deixou de ser capaz de acreditar. O que é bem diferente de ser pessimista, pois aqui há sempre a possibilidade de uma reversão do pensamento e do sentimento, desde que as condições sejam favoráveis. É que um céptico dificilmente pode ser militante de um partido, pois essa condição é hoje, sobretudo, uma “questão de fé” e o verdadeiro céptico é aquele que não acredita nem no seu próprio futuro, quanto mais no futuro comum dos seus concidadãos ou até do seu país (embora se sinta mal por isso). Contudo, não é de todo mau saber que nestes dias difíceis que vivemos anda por aí gente optimista, capaz de acreditar nessas coisas todas e que gasta uma boa parte do seu tempo livre a pregar a sua “fé” nas redes sociais. Talvez – e agora num lampejo optimista muito pouco vulgar em mim – ela se possa transmitir pela rede como uma espécie de vírus que nos contaminará o espírito (para além dos computadores) e nos levará, nem que seja por breves instantes, a acreditar que a mudança é possível e está ao nosso alcance. Eu até nem me importava nada de ser contaminada e de ir fazer um autêntico escarcéu nas reuniões partidárias, mas depois logo me vem ao espírito aquela passagem em que D. Quixote luta contra os moinhos de vento...

O que me preocupa a sério é que os próprios líderes partidários de sempre, os que nos conduziram até aqui, estejam agora também eles a adoptar uma postura de cepticismo, traduzida por exemplo na tal ideia da intervenção do FMI. A forma como o dizem lembra-me um pouco aquelas crianças caprichosas que, já fartas do brinquedo, o vão entregar a um adulto para que tome bem conta dele até que lhes apeteça novamente voltar a brincar. Outro exemplo desta espécie de infantilização que parece ter atacado os nossos políticos/governantes é a forma como a culpa é sempre dos outros: da oposição, dos sindicatos, dos mercados internacionais, etc, etc.

Agora a sério, temos é que, por todos os meios ao nosso alcance, estar muito atentos a gente que é capaz de tudo só para salvar a pele – a sua e a dos amigos, que da nossa não querem eles saber. E, sobretudo, não nos deixarmos levar nem por optimismos patetas, nem por pessimismos paralisantes, e muito menos por cepticismos estéreis, e sim pela análise realista, ponderada e serena das coisas, das situações e das pessoas. E agir em conformidade, seja seja dentro ou fora dos partidos, seja nas redes sociais ou apenas na rede, seja em movimentos organizados de cidadãos ou através da mera iniciativa individual, como o voto, por exemplo. Afinal, é o nosso futuro que está em causa.

sábado, 25 de dezembro de 2010

E no entanto até parece Carnaval

Este ano é notório que estamos a viver uma espécie de Natal dos pequeninos (eufemismo natalício para “mais pobrezinho”, claro está). Ainda é talvez um pouco cedo para saber se este é o Natal da crise, se a crise do Natal. Sei é que as iluminações de rua foram reduzidas a uma expressão minimalista e arrastaram consigo as próprias decorações natalícias das montras e das lojas, também elas bem menos exuberantes que em anos anteriores. Só teve uma vantagem: os nossos ouvidos foram poupados à enjoativa banda sonora habitual, capaz de pôr em franja até os nervos do próprio Menino Jesus. No fundo, tudo a condizer com a verdadeira cara de enterro dos clientes que entram nas lojas à procura de prendas ou circulam apressados pelas ruas a caminho de algum sítio.

É nítido ainda que este ano muitos pouparam nas prendas, seja porque têm pouco dinheiro nos bolsos (o número de portugueses desempregados é impressionante), seja porque começam já a pensar nas dificuldades acrescidas que vão chegar a partir de janeiro (corte nos ordenados), seja porque estão endividados até ao limite das suas possibilidades (ou mesmo para além dele).

E no entanto, o Estado que tanto nos incita a poupar e, sobretudo, nos garante que vai poupar consigo mesmo e também connosco no próximo ano, afinal, dá exemplos intrigantes de esbanjamento nos presentes de natal que oferece aos amigos: 400 milhões de euros para o BPN, já inseridos (e aprovados) no Orçamento de 2011. O ministro das Finanças chama-lhe “aumento de capital”. E só para perceber melhor a alcance desta “prenda” é bom lembrar que o BPN teve em 2006 um lucro de 86 milhões que, no ano seguinte, subiu para os 77 milhões. Mas, menos de um ano depois, em finais de outubro de 2008, apresentava já um prejuízo de 700 milhões de euros. E, com o ano de 2010 quase no seu termo, são já de 4,8 mil milhões de euros os prejuízos acumulados pelo banco. Dá que pensar como é que se volatilizou tanto dinheiro no espaço de tão poucos meses. Deve ter, de facto, algo a ver com a intervenção de especialistas como Oliveira e Costa. A todos estes milhões há ainda que acrescentar mais de 2 mil milhões de activos, agora ditos “tóxicos” que, na opinião de vários economistas, ainda estão (convenientemente) por contabilizar. Quando isso acontecer – e é apenas uma questão de tempo -, o prejuízo subirá para cima de 7,7 mil milhões de euros. Qualquer coisa como 5% do PIB nacional para um banco que está à venda por uns escassos 180 milhões de euros!!!

Cereja no topo deste enormíssimo bolo é a declaração do nosso ministro das Finanças afirmando a pés juntos que ainda não gastou dinheiro dos contribuintes com o BPN!! Dito assim, com todas as letras, exactamente pelo mesmo ministro que afirma com ar compungido que em 2011 vai ser preciso baixar salários aos que nunca, mas mesmo nunca, deixaram de pagar ao Estado um único cêntimo dos seus impostos, acabar ou reduzir drasticamente com o pagamento de diversas prestações sociais e com alguns benefícios fiscais, aumentar todos os impostos sobre o consumo e reduzir a actividade económica e o nível de vida ao patamar da recessão + depressão para garantir não se sabe bem o quê, mas certamente que não a redução do défice do estado. Ou melhor, não se sabia. Agora já sabemos o que se pretende garantir com todas estas medidas de redução da despesa do estado: o BPN e seus apaniguados que, pelos vistos, têm amigos em lugares influentes (governo incluído).

Acho que o tal Oliveira e Costa devia mas era enviar um postal a cada contribuinte português para agradecer a belíssima prenda de natal que recebeu do ministro das Finanças, que é como quem diz, de todos nós. Mas até consigo compreender que ainda não o tenha feito porque, embora o calendário indique que é Natal, isto tudo se parece bem mais com um Carnaval antecipado.

imagem do sítio http://miguel-lima.com/?m=200811


Uma alegre campanha - VI

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Por ser natal...

...  e para regalar os (meus) ouvidos (e os olhos também).

Não cortem o cordão

Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,
o cordão astral à criança aldebarã, não cortem
o sangue, o ouro. A raiz da floração
coalhada com o laço
no centro das madeiras
negras. A criança do retrato
revelada lenta às luzes de quando
se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore.
Não talhem a placenta por onde o fôlego
do mundo lhe ascende à cabeça.
Linhas cristalográficas atravessando os cornos.
A veia que a liga à morte.
Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega
braço a braço. Sufoca.
Mas não desatem o abraço louco.
A terra move-a quando se move.
Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide,
não o removam.
A árvore de alabastro que as ribeiras
frisam, deixem-na rasgar-se:
- Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva
e a criança do sopro, suba
tanta opulência. O trabalho confuso:
que seja brilhante a púrpura.
Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas
pulmonares. Deixem que se espalhem as redes
da respiração desde o caos materno ao sonho da criança
exacerbada,
única.

Herberto Helder

Uma alegre campanha - V

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Não digo do Natal

Não digo do Natal – digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquíssima e exacta
nas mãos que não sabem de que cio

nasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardos

por dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,

e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.

Pedro Tamen

Uma alegre campanha - III

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Uma alegre campanha - I

Sabedoria antiga, estranhamente actual

ou talvez não tão estranhamente assim...

Dizia o Padre António Vieira que "Os pequenos não comem, nem podem comer, os grandes; os grandes, porque podem, são os que comem os pequenos. Por isso, os povos estão tão despovoados e tão comidos, e os comedores tão cheios e tão fartos." (in Sermão do Santíssimo Sacramento, Pregado no Real Convento da Esperança, Lisboa,1669)

"Morrem cedo os que os deuses amam"

domingo, 19 de dezembro de 2010

Debates tipo entrevista de emprego

Após as costumeiras polémicas que passam por negociações de bastidores, complicações de agenda e, claro, mútuas acusações de que o candidato x ou y quer mas é fugir com o rabinho à seringa, lá se iniciaram os debates televisivos entre os candidatos presidenciais. Bem à medida da política que temos. Começa logo pela própria designação. Debate? Dois candidatos em postura rígida, artificial, em mesas individuais e bem afastadas fisicamente, com o tempo de intervenção cronometrado ao segundo, que não falam directamente um para o outro, nem discutem aquilo que um e outro vão declarando, antes se limitam a ir respondendo às questões colocadas pela jornalista e aqui também moderadora. Eu diria mais que são entrevistas em duo, com perguntas milimetricamente calculadas (e negociadas?) para encaixarem na perfeição nas respostas previamente preparadas pelo staff de cada candidato. De debate só mesmo o nome. Cada um procura justificar por que razões deve ser o candidato escolhido para desempenhar funções em Belém, muitas vezes repetindo, por outras palavras, os argumentos que o candidato concorrente acabou de debitar. Eu diria até que se entrevistam em duo porque estamos em tempo de crise e é preciso poupar também nos tempos de antena roubados à publicidade que dá bem mais lucro às televisões.

Os argumentos apresentados são de uma pobreza quase confrangedora: Manuel Alegre repete a ideia peregrina de que o Presidente da República tem o «poder da palavra» e deve usá-lo como se fosse uma varinha de condão para pôr o Governo na ordem. Francisco Lopes só fala da taxação dos «lucros do grande capital», ou melhor, da sua falta, como se ainda não tivesse percebido que, agora, está a jogar para um outro patamar da hierarquia política. Fernando Nobre, manifestamente longe do seu território natural, apresenta um mix de argumentos que são, sobretudo, aquilo que o povo repete na rua e nos cafés, sem saber às vezes muito bem do que está a falar. E depois lá vem Cavaco Silva, com o seu ar de douto «Professor» de economia e finanças dar umas lições aos pretendentes e concorrentes explicando, com vagares de quem sente a continuidade garantida, qual é afinal a função de um presidente da república. A sorte do «senhor Professor» é que já não tem que dar aulas a sério porque se fosse para uma escola secundária leccionar aos meninos naquele tom enfastiado e monocórdico e com aquele ritmo de dicção, estava feito. Não durava uma semana. Pelo meio, uns piropos encapotados ao adversário não vá o diabo tecê-las e a gente ainda tenha que se unir numa putativa segundavolta. Chego até a sentir saudades do «candidato Vieira» e das suas surrealistas intervenções de campanha que tinham pelo menos a vantagem de ser genuínas. Aliás, qualquer coisa é preferível a este artificialismo que soa a plástico e a que se convencionou chamar «debate».

Poderíamos pensar que se salvavam as campanhas de rua, mas nem isso. Falta convicção, falta sobretudo carisma aos candidatos. Não há uma ideia consistente ou um rasgo de luz nos seus discursos feitos de argumentos que soam a oco. Aliás, os candidatos não discursam, mandam recados: para dentro ou para fora do próprio partido, para os candidatos concorrentes, para o governo, até para os possíveis eleitores. Em último caso, recorrem mesmo à ameaça: atenção, ou eu, ou o dilúvio, vejam lá bem o que fazem! As próprias campanhas na rua já não se fazem de participação espontânea e entusiasta, a favor ou contra os candidatos, fazem-se com gente contratada, bem ensaiada e bem comportada. As acções de campanha, sobretudo almoços e jantares, marcados para a hora de abertura dos telejornais, são orquestradas pelas máquinas partidárias e lembram tounées nacionais em que só mudam a cara do artista, perdão, do candidato, e as bandeiras que se agitam nas suas costas. Tudo o resto é igual.

Na verdade, não estamos em campanha eleitoral. Estamos a cumprir calendário para as eleições legislativas, as únicas que, à luz da actual situação de crise, contam e interessam, de facto. Na verdade, não estamos a assistir a debates políticos (e supostamente ideológicos também), e sim a entrevistas de emprego. Só que, até agora, ainda nenhum candidato me convenceu de que merece o «emprego» para o qual se está a candidatar.

sábado, 18 de dezembro de 2010

A (dis)função social da literatura

Tempos houve em que a Arte, nas suas múltiplas formas, incluindo a Literatura, procurava sobretudo o Belo, a que muitos contrapunham a afirmação de uma inequívoca vocação social de denúncia, de alerta e até de moralização da sociedade. Tempos houve em que a Arte era vista como uma forma de elevação e de iluminação, se não mesmo de salvação. Não é assim nos dias que vivemos. A literatura tornou-se uma espécie de vazadouro do lixo e da podridão humana que o público consome, indiferente ou conformado. Submetida às regras do «não literário» e da massificação agressiva, abunda por aí uma certa literatura bem escrita, de linguagem escorreita e sem defeitos, mas tão simplória e superficial que se torna infantil e, sobretudo, infantilizadora. A tal ponto que qualquer figura mediática, no auge dos seus quinze minutos de fama, publica livros atrás de livros, com assinalável sucesso de vendas. Em termos literários, não há neles nada de novo, não são mais do que droga que alimenta o vício intelectual da coscuvilhice deprimente e coitadinha. Podem ser literatura, mas nada têm que ver com Arte, pois esta caracteriza-se, justamente, por trazer algo de novo para a sociedade.

Só que hoje, cada vez mais o verdadeiramente «novo» vem de uma literatura que explode em violência, em dor, em ficções brutais, apocalípticas e escatológicas que estilhaçam a esperança e consolidam o mais profundo cepticismo e descrédito do homem em relação a si mesmo e aos outros. São obras de arte desmedidas e poderosas, mas também inquietantes, que não deixam muita margem para a esperança. É quase como se a Literatura nos quisesse arrastar para o abismo ou nos desafiasse a chegar mais perto, sempre mais perto, do precipício cruel da desumanidade, em vez de nos indicar o luminoso caminho da Beleza, da Verdade ou até do próprio Bem que nos incita a ser melhores e a querer ficar mais próximos da perfeição. Parece até que, numa sociedade cada vez mais disfuncional, a própria Literatura cumpre agora uma (dis)função social: a de nos confrontar com a nossa falência enquanto sociedade. O que virá a erguer-se destas cinzas «literárias» ainda é, por enquanto, uma incógnita a que se costuma por vezes chamar ficção científica:

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cantar histórias

O caminho e a caminhada

Tempos houve em que, bem mais do que o caminho ou a caminhada, era o ponto de chegada que me interessava. Mas agora, o ponto de chegada parece-me cada vez mais uma grande (des)ilusão (se não mesmo um imenso logro). Por isso, já só me interessa a caminhada: prossigo-a de forma quase instintiva, colocando devagar um pé à frente do outro e procurando não pensar em mais nada. Tudo se resume e se esgota nesse gesto mecânico da sobrevivência passo-a-passo: um pé à frente do outro. E o velho dilema do caminho certo ou errado perde assim o sentido pois, na verdade, qualquer caminho serve quando não se vai a lugar algum.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Uma harpa na voz

Salmo

Marc Chagall, Poeta com Pássaros, 1911
















A vida
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho
breve.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Livr.Sá da Costa, s.d.

Um jogo contínuo de espelhos

Devia ser proibido escrever sobre si próprio, porque se tem sempre de escolher; e, na realidade, quando se revela oculta-se, do mesmo modo que ocultando se revela. Toda a nossa vida é um jogo contínuo de espelhos, entre nós e os outros."

 João Caraça, "Duas ou três coisas que sei de mim", In Jornal de Letras, Artes e Ideias, 995, 19/11/2008

domingo, 12 de dezembro de 2010

O detestável natal

A cada ano que passa detesto mais e mais o natal e aquela imagem hipócrita (e falsa) da família reunida em clima de harmonia e felicidade a trocar prendinhas que a publicidade tanto gosta de nos enfiar pelos olhos dentro a ver se vende mais umas quantas bugigangas inúteis. Tudo muito colorido e brilhante como mel que escorre pela tampa de um frasco mal fechado.

Por isso acho excelente a ideia dos "demotivators". E não, não é engano nenhum: "desmotivadores" mesmo. São calendários, canecas, t-shirts, posters e muita outra parafernália que se vende online sob o argumento de que "você precisa mesmo de mais porcaria inútil sobre a sua secretária", ou ainda "o mais forte depressor que se pode adquirir sem receita médica"...

Tendo em conta que a maior parte das prendas de natal são  mesmo "pequenas inutilidades" e que estamos já todos fartos de ouvir falar em optimismo e espírito positivo acho que, se calhar, está na altura de nos deixarmos levar pelo espírito negativo. Afinal, não sei porque é que o espírito positivo há-de ser melhor que o outro. E, neste caso particular, tem ainda por cima a vantagem de ter bastante mais sentido de humor.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Sátira aos homens (e às mulheres) quando estão com gripe

Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.

Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.

Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo

Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha, fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.

Faz-me tisana e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer

António Lobo Antunes

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

José & Pilar: revisitar o mito

No documentário "José & Pilar" de Miguel Gonçalves Mendes Saramago diz a certa altura que se tivesse morrido aos 63 anos, antes de ter conhecido Pilar del Rio, teria morrido muito mais velho do que quando chegasse a sua hora. Como se a vida (neste caso Pilar) o tivesse devolvido à própria Vida, numa espécie de inversão do mito de Orfeu e Eurídice, .

Mais do que premiado com o Nobel da literatura, Saramago foi bafejado pela sorte quando, se calhar, até já não esperava muito da vida. E estava bem consciente disso. É também uma linda declaração de amor de José Saramago que acrescentou ainda que esperava  "morrer lúcido e de olhos abertos" ou, pelo menos, gostaria que fosse assim. E assim foi, de facto.


Sobre o documentário realizado por Miguel Gonçalves Mendes ao longo de vários anos escreveu Inês Pedrosa no Expresso (Única, 4/12/2010):

Pilar, José e o amor

Onde se prova que as pessoas podem ser felizes para sempre.

O estereótipo de há cinquenta anos rezava: «casaram e foram felizes para sempre». O estereótipo contemporâneo preconiza: «casamento, pantufas, aborrecimento». Um estereótipo não é melhor, nem mais inteligente, do que o outro – a ideia de que os casamentos estão condenados ao tédio só parece mais brilhante do que aquela que toma a felicidade como um dado adquirido porque o pessimismo dá sempre uns fumos de ilustração aos seus praticantes: quem futura em negativo passa facilmente por lustroso cérebro porque há sempre um desastre ao virar da esquina – e muito mais mirones para o desastre do que para a alegria. As relações nascem muitas vezes mortas por falta de fé – falta-nos amor por esse amor que é como uma espécie de terceira entidade gerada pela atracção entre dois seres, e que precisa de ser estimado como milagre concreto.

As pessoas casam-se trocando juras de amor já com os códigos do divórcio e das partilhas debaixo do braço. Ou casam-se ainda no mito da paixão inexpugnável, e depois deixam-se pasmar atarantadas diante dos cacos da paixão misturados com as peúgas de anteontem. Ou casam-se por interesse, isto é: escolhendo, como no supermercado, o pedaço de homem ou mulher que mais garantias dá de criar bem os filhos e de fazer uma boa dupla sócio-económica. Os casamentos «arranjados» desapareceram da civilização ocidental mas são frequentemente substituídos pelos casamentos de conveniência – versão ainda mais triste, porque sonsa, feita de faqueiros e fancaria, dos explícitos arranjos familiares e comerciais de outrora. Ganhámos medo do amor, e o medo amarfanha. A literatura lançou um estereótipo avassalador: o de que o amor só pode ser chamejante em estado de clandestinidade. A experiência das ditaduras, mais ou menos universal, criou um modelo infantil de relação: o do grupo de resistentes bonzinhos que agem pela calada contra a sociedade dos maus. É dessa matéria que são feitos os livros da Enid Blyton e os sonhos da adolescência. A associação absoluta entre o prazer e a clandestinidade mata as alegrias da vida adulta.

O belíssimo filme de Miguel Gonçalves Mendes, «José e Pilar», demonstra que as coisas não têm de ser assim: o amor pode ser público e oficial (é difícil imaginar uma relação mais pública e oficial do que esta, assumida em duas cerimónias de casamento) e permanecer íntimo, faiscante, vivo. A história do início da relação entre Pilar e José é apenas aflorada por José, para esclarecer que Pilar nunca, ao contrário do que se disse, o entrevistou: telefonou-lhe dizendo que era jornalista, leitora e admiradora sua, e que queria conhecê-lo. José acrescenta que mal a viu chegar percebeu que aquilo era sério. Este abalo imediato e definitivo está descrito de um modo sublime no romance «História do Cerco de Lisboa» – mas isso já não consta do filme. Porque a singularidade deste filme está em começar anos depois do beijo fulgurante que sinaliza a união do par, para nos dar a ver exactamente isso em que nos custa tanto a acreditar: a vida que um amor pode ter, mais de vinte anos depois de ter começado. Pilar e José são duas personalidades fortíssimas, contrastantes, muitas vezes discordantes. A cena em que discutem por causa de Hillary Clinton (que Pilar defende e José ataca) é exemplar quanto à vivacidade de cada um deles – e desse amor, que não só resiste a todas as discussões como parece alimentar-se delas. A química intensa que se desenha no ar sempre que eles estão juntos – um olhar, uma carícia, um abraço, o corpo de um procurando continuamente o corpo do outro – constitui a pedra de toque deste documentário, de uma imensa delicadeza. «Pilar e José» não é sobre a vida de uma vedeta da literatura (embora a contenha, inevitavelmente) – é sobre a relação de amor entre duas pessoas particularmente expostas.

José dirá, a dado momento, que se pudesse voltar a viver a sua vida, repeti-la-ia toda, exactamente como foi. Parece estranha, esta afirmação, por parte do mesmo homem que diz: «Se eu tivesse morrido aos 63 anos, antes de conhecer a Pilar, morreria muito mais velho do que aquilo que sou». Na dedicatória das suas memórias de infância (« As Pequenas Memórias»), José escreveu: «A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar». Então, porque não diz José que, numa segunda vida, preferiria conhecer Pilar vinte anos mais cedo? Provavelmente, porque vinte anos antes não saberiam fazer durar o amor. Aprende-se a amar (como a correr ou a desenhar) caindo, falhando, errando muitas e muitas vezes. Até ao momento em que ficamos prontos para ser felizes para sempre. Há é pouca gente para dar por isso.
Nota: Inês Pedrosa escreve de acordo com a antiga ortografia.

A Declaração é Universal, os Direitos é que (ainda) não

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

João Sabadino Portugal: quanto vale uma vida humana em tempo de guerra?

Em vésperas de "celebração" da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a triste história de vida de João Sabadino Portugal - criança-mascote das tropas portuguesas em Moçambique, durante a guerra colonial - é paradigmática.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

The heart is slow to learn

A chá e comprimidos

Para quem, como eu, é incapaz de desenhar uma simples linha recta que seja, de facto, rectilínea, coisas como esta são maravilhosas (a imagem é o link), ainda que seja uma simples tisana capaz de me aliviar desta maldita constipação...

Quem tem medo do Wikileaks?

O mundo está globalizado, e sociedade é a da informação, a internet é nossa amiga, democracia a rodos, a liberdade de expressão é sagrada, mas... para uns mais do que para outros, sobretudo quando os todo-poderosos do mundo - com os Estados Unidos à cabeça - ficam mal na fotografia. Aí já é melhor não.
Julian Assange foi preso em Londres, muitos respiraram de alívio com esta notícia e as fugas de informação, provavelmente, não voltarão a ser o que foram nestes últimos meses. Tudo está bem quando acaba bem. Para alguns, claro.

Cartoon de Bleibel, www.nytsyn.com/cartoons

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Se ao menos o inverno fosse uma música assim

Uma lâmpada acesa na noite

A estrada parece abrir-se à passagem do carro, como passadeira que se desdobrasse pela luz dos faróis à medida que avanço pela noite escura. Sigo ladeada pelos choupos de troncos esbranquiçados e despidos que lembram ossos. Parecem esqueletos verticais que correm em sentido contrário, como se estivessem a fugir do sítio para onde, justamente, me dirijo. Por instantes penso que vou na direcção errada e que talvez devesse inverter a marcha e seguir os choupos que correm junto à estrada, pois deve haver uma boa razão para que corram assim, espavoridos, estrada fora. Mas continuo sempre e, ao sair de uma curva, vejo à esquerda, no meio do campo enegrecido, uma pequena luz que, sozinha, luta contra a escuridão. De repente parece quase inverosímil que uma simples lâmpada consiga afirmar a sua presença numa noite tão escura e num sítio tão isolado como este. Parece até que a qualquer momento vai desaparecer, engolida pelo pesado negrume que a rodeia.

...numa noite assim têm que ser muito fortes as razões que acendem na escuridão uma luz como aquela: talvez ela confirme a alguém que está no caminho certo e que deve logo ali tomar o atalho que mal aparece à esquerda, quase escondido pelas silvas e assinalado apenas por uma caixa de correio já muito ferrugenta; talvez marque o ponto de chegada para alguém que ali é esperado, mas ainda não veio; ou talvez esse alguém já tenha até chegado mas, na alegria do reencontro, se tenha esquecido de apagar a lâmpada agora tornada supérflua; talvez seja apenas um hábito antigo que ainda não se perdeu, embora já ninguém ali espere ou seja esperado; talvez, de forma inconsciente, a pequena lâmpada ainda homenageie com a sua luz a presença ancestral dos lares e penates que protegiam a casa; ou talvez não seja mais do que uma simples lâmpada acesa apenas porque sim... não sei...

Certo é que, para mim, mais do que sinalizar a existência de vida humana num sítio ermo, aquela pequena lâmpada acesa no imenso escuro da noite simbolizou, naqueles breves instantes, a fragilidade efémera da própria vida humana.

sábado, 4 de dezembro de 2010

O teste da 'panela de pressão'

Os mais recentes dados do Eurobarómetro confirmam que, no espaço de um ano, os níveis de confiança dos portugueses no funcionamento da democracia, nas instituições e no próprio futuro cairam a pique:

- Em Maio de 2009, 60% dos portugueses não confiavam no governo; em 2010, são já 76 %;
 - É já de 67 % a taxa dos que manifestam desconfiança em relação ao parlamento quando, em 2009, eram 50%;
- Quanto aos partidos políticos agravou-se claramente a taxa de desconfiança de 2009: de 72% subiu para 82%.
- Insatisfeitos com o funcionamento da democracia no nosso país estão agora 69% dos portugueses (em 2009 eram 57%).
- Quanto à evolução da situação do país nos próximos doze meses 55% acredita agora que vai piorar (eram 32% no ano passado) e 26% acha que tudo vai ficar na mesma, contra os 41% que, em 2009, assim pensavam.

Contrariando aquilo que é mais habitual em termos estatísticos, estes números colocam-nos nos lugares cimeiros da tabela, muito à frente da maioria dos europeus. Embora sejam muito recentes, são anteriores à aprovação do PEC III e, claro, do OE para 2011, o que significa que os próximos estarão a bater mesmo no fundo.

São vários os sociólogos que, face aos números agora divulgados, advertem para a pressão social que se está a acumular e que pode ter consequências imprevisíveis. Alguns referem estranheza perante o silêncio e a quietude das ruas durante a greve geral, apesar da evidente mobilização da população e alertam para a possibilidade de se desencadearem focos de violência colectiva, à semelhança do que aconteceu na Grécia e noutros países.

Outros, pelo contrário, referem que a histórica passividade e impassibilidade do povo português impedirão a eclosão de violência nas ruas e julgam que o descontentamento se manifestará sobretudo nas urnas e apontam como exemplo outros estudos de opinião reveladores de que os portugueses são dos que têm os mais baixos níveis de participação política. Uns quantos reforçam esta ideia acrescentando ainda um outro argumento: o de que uma população fragilizada e empobrecida – como idosos de baixos rendimentos ou desempregados de longa duração – não dispõe dos recursos materiais e culturais necessários para desencadear uma (re)acção colectiva. Acresce a tudo isto uma cultura de cidadania muito incipiente e passiva. No entanto, poucos duvidam de que a cada vez maior desigualdade social entre ricos e pobres e o agravamento constante da situação económica dos mais atingidos pela crise podem vir a constituir um rastilho para protestos violentos. A reforçar esta perspectiva o medo que tem servido de travão ao protesto de muitos portugueses em situações laborais muito precárias (mais de um milhão), mas que se pode transformar em revolta se pensarmos que o pior da crise ainda está para vir.

Vamos ver o que dá tudo isto. Em janeiro, com a entrada em vigor das violentas medidas de contenção da despesa pública para a esmagadora maioria de todos nós (há uns quantos que manterão as mordomias, claro está), iniciar-se-á uma espécie de contagem decrescente para vermos então o que e até onde aguenta esta autêntica 'panela de pressão social'.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A vez dos cidadãos? Talvez...

Que a tal crise está instalada, sobretudo nos nossos bolsos, disso já ninguém duvida. Que continuamos a ouvir o mesmo arrazoado de sempre, pronunciado em nome dos superiores interesses político-partidários instalados, também não: não somos nós, é a crise internacional; nada podemos fazer, o mundo mudou e nós não... Julgo que também já todos percebemos que foi, de certo modo, o nosso alheamento cívico que nos trouxe até aqui, pois foi também ele que deu carta branca ao grupo alargado de gente corrupta, inconsistente e até tenebrosa que tem dominado os sectores económicos, financeiros e políticos do país nos mais diversos patamares de gestão, direcção e administração pública, ou mesmo privada. As notícias confirmam isso todos os dias e, provavelmente, apenas revelam a ponta do icebergue. E contudo, nunca como agora houve tantos indícios de que, na consciência dessa maleável e manipulável entidade chamada “povo”, há qualquer coisa a levedar lentamente... e as novas tecnologias ligadas à informação têm alguma coisa a ver com isso.

O descrédito, senão mesmo o desprezo pela classe política, é nestes dias que vivemos o sentimento dominante e crescente no espírito da maior parte dos cidadãos. Talvez seja por isso que o número de independentes que concorrem em actos eleitorais, sobretudo para as câmaras municipais, tenha vindo a crescer nestes últimos anos com assinalável sucesso. De notar que, alguns deles, se candidatam até em ruptura com os partidos que antes lhes tinham garantido a eleição. Nem o mais alto cargo político da nação – presidência da república – tem escapado a esta tendência. Mas não se ficam por aqui os sinais de mudança: é hoje possível convocar uma manifestação por sms, desde que o motivo e o momento sejam os adequados. Mesmo que não impressione pelo número dos que nela participam, vale sobretudo pela convicção inabalável e pela tenacidade dos manifestantes.

No panorama deste desânimo geral que ameaça submergir-nos começam agora a entrar em acção as redes sociais, especialmente aquela que, se fosse um país, era o mais populoso do mundo: o Facebook. Mais do que na blogosfera ou na sintética twittosfera é por aqui, no “livro dos rostos” e também no YouTube, que se jogará o braço de ferro entre os cidadãos e os poderes instituídos. É justamente o que propõe fazer agora Eric Cantona do alto do seu carisma de ex-jogador de futebol (condição que, como é sabido, faz de qualquer homem comum um herói nacional). Primeiro numa entrevista a um jornal francês, e agora no Facebook e no YouTube, Cantona incita os seus concidadãos a atacar em massa o sistema bancário – um dos maiores responsáveis por esta crise internacional – fazendo levantamentos de dinheiro concentrados num único dia. Nessa mesma entrevista Cantona declara aquilo que, afinal, já todos sabemos: greves e manifestações são inúteis para, no actual contexto, mudar o sistema financeiro e económico que nos está a sufocar. Será preciso uma revolução para o conseguir. Mas Cantona acredita – talvez ingenuamente - que é possível fazer essa revolução sem pegar em armas, bastará para tanto destruir os bancos em que o próprio sistema assentou os seus alicerces. Das suas palavras nasceu o StopBanque, movimento que, nestes últimos dias, muito tem dado que falar na net e que, através das redes sociais, rapidamente se propagou a outros países europeus, incluindo Portugal. Em teoria, a ideia tem pernas para andar e dado que os bancos lidam sobretudo com papéis, números e registos, e não com dinheiro vivo, até nem seriam necessários muitos levantamentos concentrados para gerar o caos e bloquear todo o sistema (basta recordar o caso ocorrido no ano passado na Grã-Bretanha com o Northern Rock). Contudo, o sistema bancário é tão poderoso, e criou ao longo do tempo tão grandes dependências nos consumidores, que poucos acreditam que, no próximo dia 7 de dezembro, alguma coisa de muito grave possa vir a acontecer. Até porque as consequências de uma tal acção colectiva seriam tão gravosas que ofuscariam certamente o prazer desta vingança moral dos cidadãos chamados agora a pagar por erros cometidos pelos bancos. É nesse receio colectivo que a banca se escuda para acreditar que nada de realmente drástico venha a acontecer nesse dia. Contudo, nada garante também que, com o agravamento da crise e das respectivas penalizações na vida dos cidadãos, e com a influência crescente das redes sociais, esta ideia não possa ainda vir a fazer mossa quando as pessoas já tiverem, de facto, pouco a perder com a sua concretização.

Mas, até lá, vamor ter todos que pagar pelos erros cometidos por apenas alguns. E já que o Orçamento Geral do Estado pouco mais é do que a soma do dinheiro que não chega a entrar nos nossos bolsos mais o dinheiro que dele sai a toda a hora, bom seria que começássemos a vigiar melhor a forma como ele é gasto pelos nossos (des)governentes. E podemos começar, por exemplo, pelo projecto europeu dos Orçamentos Participativos. Á semelhança do que acontece em vários países europeus, há já uma década que, em Portugal, os cidadãos podem decidir (votar) sobre a forma como as câmaras municipais gastam uma parte do seu orçamento. E podem fazê-lo propondo eles próprios projectos de intervenção ou escolhendo as propostas que lhes parecem prioritárias ou mais interessantes para a sua cidade/comunidade. Em todo o país, apenas doze municípios* integram esta nova forma de participação responsável por parte dos cidadãos e promotora, parece-me, de um debate saudável sobre os temas e situações que realmente nos afectam e importam. Em todo o Alentejo são apenas três as câmaras municipais que até agora, aderiram ao projecto dos Orçamentos Participativos, como se pode conferir na página do observatório criado para os acompanhar e monitorizar: Alvito, Serpa e Castro Verde.

Nas autarquias por onde ando, vivo e trabalho – Évora e Estremoz – ainda não ouvi a ninguém uma única palavra sobre isto e estou, é bom de ver, a falar dos cidadãos, não dos políticos. Acredito que, para estes, a ideia de ter que partilhar com os eleitores uma parte das suas decisões financeiras seja, no mínimo, desconfortável. Mas a nós, cidadãos que tanto criticamos (todas ou quase todas) as medidas tomadas pelos governantes municipais e que temos depois que pagar pela má gestão que eles fazem do nosso dinheiro, que nos impede afinal de exigir aquilo que é um direito nosso: participar directamente nas decisões de investimento e gestão da nossa própria autarquia? Essa passagem das palavras à acção é que seria, na verdade, uma atitude de maturidade cívica e democrática que levaria muitos políticos a pensar duas vezes antes de tomar certas resoluções que, depois, todos teremos que pagar. Está na altura de passarmos da levedação à acção, ou seja, de fazermos mais do que apenas pagar as contas. Afinal, é o nosso futuro que está em causa.

*ver http://www.op-portugal.org/territorio1.php

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Os pouco(s) Direitos Humanos

Com a aproximação do dia 10 de Dezembro, data do aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem -  assinada em 1948 - multiplicam-se um pouco por todo o lado as iniciativas que, não deixando de a celebrar, procuram também lembrar o muito que ainda falta fazer para garantir a sua verdadeira universalidade: hoje, por exemplo, assinala-se o dia das “Cidades para a Vida – Cidades contra a Pena de Morte”. São 22 as cidades portuguesas que se juntam a este movimento internacional contra a pena de morte que envolve em diversas actividades simbólicas 1184 cidades de 81 países.

Perante o cortejo de horrores em que se transformou o nosso mundo só podemos concluir que, em matéria de direitos humanos, falta fazer quase tudo. Não sei se devemos celebrar, se devemos chorar de vergonha perante aquilo que fazemos todos os dias ao nosso semelhante, ou melhor, a milhões dos nossos mais fracos e indefesos semelhantes.

Os Estatutos do Homem

(Acto Institucional Permanente)


Artigo I — Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida e, de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II — Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III — Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV — Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V — Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI — Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII — Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII — Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX — Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X — Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI — Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII — Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo XIII — Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final — Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

Thiago de Mello, Santiago do Chile, Abril de 1964

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A música também é uma "Estrada" assim

A escrita também tem morada

A casa que Eduardo Lourenço apelidou de "castelo de sonhos de toda uma geração" de autores como Fernando Namora, Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, Rui Feijó e Afonso Duarte (a geração do Novo Cancioneiro) renasceu agora em Coimbra como "Casa da Escrita" (Rua Dr. João Jacintho, 8).

Desde 2007 que havia em Ponta Delgada algo de semelhante - a Morada da Escrita - Casa Armando Côrtes-Rodrigues - mas, no Continente, é (tanto quanto sei) a primeira no género. É um projecto ambicioso este que pretende fazer da antiga residência do poeta João José Cochofel um espaço único no panorama cultural do nosso país: residência de criadores, ponto de encontro entre o público e os escritores, biblioteca, locais adequados para escrita e leitura, dinamização de actividades direccionadas para o público escolar, livraria, jardim de acesso livre...  A ideia parece-me, de facto, boa. Vamos ver é se há dinheiro para a levar em frente com as condições adequadas.

Só nos resta esperar que este "Pórtico" aberto para a escrita não se feche ou, como escreveu João Cochofel:

Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
— ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento das tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando...

Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm ...

in "Obra Poética"

domingo, 28 de novembro de 2010

A vida e a arte

Abbas Kiarostami declarou recentemente, a propósito do filme “Cópia Certificada”, que “A mais elevada forma de arte é a arte de viver. Mas a arte pode transformar a mais grosseira “arte de viver” numa forma mais elevada e ainda mais verdadeira do que a originalidade da vida.
Palavra de realizador de cinema que, apesar de tudo, sabe como a vida sem mediação da câmara de filmar tem, às vezes, muito pouco de artístico.

Um halo de limpa solidão bem no meio da rua

A D. Alice vive numa daquelas ruas sem história do centro histórico eborense. Uma rua tão anónima que permanece até hoje ignorada pelos guias turísticos e, tanto quanto sei, pela própria literatura toponímica que, com o beneplácito da classificação da cidade como “património da humanidade", tem sido publicada nestes últimos tempos. Veio morar para Évora numa tentativa de escapar à pobreza rural em que nasceu há já muitos anos. Aqui, entre outras tarefas, trabalhou nas limpezas durante a maior parte da vida. E tanto se empenhou nessa actividade que, a partir de certa altura, passou a viver para limpar.  Libertada primeiro por uma viuvez precoce, e depois pela reforma, dos horários e obrigações domésticas como compras, refeições, roupas, saídas ou visitas familiares a D. Alice ficou, de facto, disponível para limpar a casa de forma metódica e ininterrupta. A tal ponto que, com o passar dos anos, deixou até de cozinhar por ver nessa tarefa não só uma perda de tempo útil para as suas limpezas, mas sobretudo uma fonte de contaminação da casa. Para manter os níveis quase absolutos de higiene e arrumação viu-se também forçada a encontrar uma estratégia que lhe permitisse manter relações de convívio com a vizinhança mas garantisse, ao mesmo tempo, que ninguém  lhe entrava em casa para "sujar" o que ela limpava com tanto desvelo.

A lavagem da porta de entrada foi, desde sempre, a sua maior obsessão e a D. Alice aproveitou astutamente os seus padrões de exigência asséptica -  ou apenas a vontade de manter o epíteto de “porta mais lavada da zona, se calhar até da própria cidade e arredores” , como diziam  alguns passantes de forma irónica -, para comunicar com a vizinhança, sem chamar muito a atenção para a sua peculiar personalidade. Assim, enquanto ia lavando e esfregando o portado de mármore, às vezes durante horas seguidas, podia estar na rua para acompanhar em tempo real as idas e vindas dos vizinhos e interpelá-los de forma mais ou menos descarada para saber as últimas novidades da vida de cada um. E tão ocupada se manteve ao longo do tempo com essas duas actividades simultâneas - limpeza e coscuvilhice - que talvez nunca se tenha apercebido da perfeita inutilidade de tão árdua tarefa e da solidão que, com ela, estava a construir. 

Tal como todos os outros moradores da rua habituei-me, desde sempre, a entrar ou sair de casa sob o seu olhar perscrutador: dobrada, não interrompia a escovagem das pedras da calçada fronteira à porta senão quando avistava alguém que lhe despertasse verdadeiro interesse. Geralmente, este era proporcional ao número de novidades transmitidas. Julgo até que na cabeça da D. Alice sempre existiu uma espécie de hierarquia social que posicionava as pessoas conforme a quantidade e a qualidade das informações que lhe forneciam diariamente. Quem, enfastiado por aquela omnipresença, se limitava a dizer-lhe um seco “bom dia” e a seguir caminho apressado antes que ela tivesse tempo de disparar alguma pergunta inconveniente era ostensivamente proscrito da sua simpatia, quando não alvo da sua maledicência. Mesmo quando se ocupava das tarefas no interior da casa, D. Alice fazia questão de, ao mínimo sinal de movimento na rua, vir agitar freneticamente a bandeirola laranja do seu pano de pó, sinal inequívoco de que, mesmo ausente, se mantinha atenta às nossas actividades, por mais insignificantes que fossem. Ao longo dos anos, em consequência da vigilância cerrada sobre a vida alheia e das conversas cruzadas que foi alimentando com todos os transeuntes e habitantes das ruas vizinhas, arranjou um sem número de mexericos, intrigas e inimizades. Havia até quem a cumprimentasse apenas por receio das consequências da sua língua viperina.

A sua obsessão com a limpeza imaculada da porta foi sempre aumentando e alcançou níveis paroxísticos que tornaram a sua figura irritante, quase insuportável até. Muitos dos que antes a temiam – ou melhor, temiam a sua língua – acabaram mesmo por deixar de lhe falar e, à medida que foi perdendo interlocutores, foi-se esboroando também a barreira do respeito, ou do pudor, que ainda impedia alguns de comentar de forma jocosa aquele incessante labor higiénico em que ocupava já a maior parte do dia, em franco contraste com a "sujidade" da sua má-língua, praticada de forma contumaz e sem qualquer resquício de arrependimento. Até a família foi espaçando as visitas, devido ao óbvio incómodo que a D. Alice manifestava por ter que interromper a exigente rotina diária de limpeza para atender os visitantes e por ter depois que re-limpar tudo – com especial incidência no degrau da porta. Era como se as pessoas lhe conspurcassem a casa de tal forma que uma visita de apenas meia hora representava, pelo menos, um dia de trabalho sistemático e intensivo.

Com o decorrer dos anos, a sua coluna vertebral foi sofrendo como que uma adaptação “natural” à situação de estar dobrada quase permanentemente e, por isso, ela caminha hoje dobrada e com a cabeça ao nível dos joelhos. Embora fragilizada pela idade e pela doença, nada a impede de, pelo menos duas vezes por dia, cumprir o seu ritual diário de lavagem minuciosa do portado e das próprias pedras da calçada em frente da porta. Se juntarmos a isto a rigorosa manutenção da limpeza doméstica, julgo que a D. Alice apenas pára para dormir algumas horas por noite. E com pontualidade de relógio suíço, às sete da manhã, domingos e feriados incluídos, é invariavelmente o som áspero da sua vassoura de piaçaba que ecoa na rua e acorda de forma impiedosa a vizinhança. Quando todos ainda dormem, às vezes debaixo de frio intenso, tão dobrada que o cabo da vassoura a ultrapassa em altura a meio das costas, D. Alice varre sem parar até que dê por escoada toda a água entretanto vertida a baldes sobre a calçada. 

Vista assim, ao longe e de perfil, dobrada e como que trespassada pelo cabo de madeira em que se apoia, D. Alice  parece ter acabado por se transformar numa vassoura humana. Mas é esta a sua forma de garantir que, logo pela manhã, os primeiros a passar pela rua verificarão mais uma vez como aquela é, sem qualquer dúvida, a porta mais limpa das redondezas. Situação confirmada até por uma coloração distinta da calçada, uma espécie de halo semicircular que irradia da porta, fruto da lavagem, escovagem e lixiviação permanentes. É uma espécie de fronteira que separa dois mundos: o nosso e o da D. Alice que, de tanto ser esterilizado contra germes e bactérias, acabou por se tornar também ele estéril de pessoas e de afectos. Até os cães da vizinhança evitam marcar aquela espécie de terra-de-ninguém dos odores como se, instintivamente, percebessem a futilidade de tal acção. É, afinal, um halo de limpa solidão bem no meio da rua.

E, no entanto, vive feliz a D. Alice, pois conseguiu da vida exactamente o que mais queria e precisava: a atenção dos outros. Obteve até mais do que aquilo que se atreveu a desejar, porque o espanto que vê brilhar nos olhos dos que a observam - sejam amigos, vizinhos, familiares ou apenas gente que passa - é para ela a maior e melhor das recompensas, embora, onde ela veja admiração deslumbrada, não haja mais do que espanto e estranheza. É essa, talvez, a alavanca que a faz continuar, aos oitenta e muitos anos de idade, a levantar-se todos os dias de madrugada para lavar a porta. E é essa, certamente, a sua razão de viver.
Mas quando um dia, inevitavelmente, o som áspero da vassoura de piaçaba deixar de assinalar o começo da manhã, todos nós sentiremos a sua falta, apesar de tudo. Nesse dia, terá terminado a história de toda uma vida sem história (e a maior parte da minha também).