Que a tal crise está instalada, sobretudo nos nossos bolsos, disso já ninguém duvida. Que continuamos a ouvir o mesmo arrazoado de sempre, pronunciado em nome dos superiores interesses político-partidários instalados, também não: não somos nós, é a crise internacional; nada podemos fazer, o mundo mudou e nós não... Julgo que também já todos percebemos que foi, de certo modo, o nosso alheamento cívico que nos trouxe até aqui, pois foi também ele que deu carta branca ao grupo alargado de gente corrupta, inconsistente e até tenebrosa que tem dominado os sectores económicos, financeiros e políticos do país nos mais diversos patamares de gestão, direcção e administração pública, ou mesmo privada. As notícias confirmam isso todos os dias e, provavelmente, apenas revelam a ponta do icebergue. E contudo, nunca como agora houve tantos indícios de que, na consciência dessa maleável e manipulável entidade chamada “povo”, há qualquer coisa a levedar lentamente... e as novas tecnologias ligadas à informação têm alguma coisa a ver com isso.
O descrédito, senão mesmo o desprezo pela classe política, é nestes dias que vivemos o sentimento dominante e crescente no espírito da maior parte dos cidadãos. Talvez seja por isso que o número de independentes que concorrem em actos eleitorais, sobretudo para as câmaras municipais, tenha vindo a crescer nestes últimos anos com assinalável sucesso. De notar que, alguns deles, se candidatam até em ruptura com os partidos que antes lhes tinham garantido a eleição. Nem o mais alto cargo político da nação – presidência da república – tem escapado a esta tendência. Mas não se ficam por aqui os sinais de mudança: é hoje possível convocar uma manifestação por sms, desde que o motivo e o momento sejam os adequados. Mesmo que não impressione pelo número dos que nela participam, vale sobretudo pela convicção inabalável e pela tenacidade dos manifestantes.
No panorama deste desânimo geral que ameaça submergir-nos começam agora a entrar em acção as redes sociais, especialmente aquela que, se fosse um país, era o mais populoso do mundo: o Facebook. Mais do que na blogosfera ou na sintética twittosfera é por aqui, no “livro dos rostos” e também no YouTube, que se jogará o braço de ferro entre os cidadãos e os poderes instituídos. É justamente o que propõe fazer agora Eric Cantona do alto do seu carisma de ex-jogador de futebol (condição que, como é sabido, faz de qualquer homem comum um herói nacional). Primeiro numa entrevista a um jornal francês, e agora no Facebook e no YouTube, Cantona incita os seus concidadãos a atacar em massa o sistema bancário – um dos maiores responsáveis por esta crise internacional – fazendo levantamentos de dinheiro concentrados num único dia. Nessa mesma entrevista Cantona declara aquilo que, afinal, já todos sabemos: greves e manifestações são inúteis para, no actual contexto, mudar o sistema financeiro e económico que nos está a sufocar. Será preciso uma revolução para o conseguir. Mas Cantona acredita – talvez ingenuamente - que é possível fazer essa revolução sem pegar em armas, bastará para tanto destruir os bancos em que o próprio sistema assentou os seus alicerces. Das suas palavras nasceu o StopBanque, movimento que, nestes últimos dias, muito tem dado que falar na net e que, através das redes sociais, rapidamente se propagou a outros países europeus, incluindo Portugal. Em teoria, a ideia tem pernas para andar e dado que os bancos lidam sobretudo com papéis, números e registos, e não com dinheiro vivo, até nem seriam necessários muitos levantamentos concentrados para gerar o caos e bloquear todo o sistema (basta recordar o caso ocorrido no ano passado na Grã-Bretanha com o Northern Rock). Contudo, o sistema bancário é tão poderoso, e criou ao longo do tempo tão grandes dependências nos consumidores, que poucos acreditam que, no próximo dia 7 de dezembro, alguma coisa de muito grave possa vir a acontecer. Até porque as consequências de uma tal acção colectiva seriam tão gravosas que ofuscariam certamente o prazer desta vingança moral dos cidadãos chamados agora a pagar por erros cometidos pelos bancos. É nesse receio colectivo que a banca se escuda para acreditar que nada de realmente drástico venha a acontecer nesse dia. Contudo, nada garante também que, com o agravamento da crise e das respectivas penalizações na vida dos cidadãos, e com a influência crescente das redes sociais, esta ideia não possa ainda vir a fazer mossa quando as pessoas já tiverem, de facto, pouco a perder com a sua concretização.
Mas, até lá, vamor ter todos que pagar pelos erros cometidos por apenas alguns. E já que o Orçamento Geral do Estado pouco mais é do que a soma do dinheiro que não chega a entrar nos nossos bolsos mais o dinheiro que dele sai a toda a hora, bom seria que começássemos a vigiar melhor a forma como ele é gasto pelos nossos (des)governentes. E podemos começar, por exemplo, pelo projecto europeu dos Orçamentos Participativos. Á semelhança do que acontece em vários países europeus, há já uma década que, em Portugal, os cidadãos podem decidir (votar) sobre a forma como as câmaras municipais gastam uma parte do seu orçamento. E podem fazê-lo propondo eles próprios projectos de intervenção ou escolhendo as propostas que lhes parecem prioritárias ou mais interessantes para a sua cidade/comunidade. Em todo o país, apenas doze municípios* integram esta nova forma de participação responsável por parte dos cidadãos e promotora, parece-me, de um debate saudável sobre os temas e situações que realmente nos afectam e importam. Em todo o Alentejo são apenas três as câmaras municipais que até agora, aderiram ao projecto dos Orçamentos Participativos, como se pode conferir na página do observatório criado para os acompanhar e monitorizar: Alvito, Serpa e Castro Verde.
Nas autarquias por onde ando, vivo e trabalho – Évora e Estremoz – ainda não ouvi a ninguém uma única palavra sobre isto e estou, é bom de ver, a falar dos cidadãos, não dos políticos. Acredito que, para estes, a ideia de ter que partilhar com os eleitores uma parte das suas decisões financeiras seja, no mínimo, desconfortável. Mas a nós, cidadãos que tanto criticamos (todas ou quase todas) as medidas tomadas pelos governantes municipais e que temos depois que pagar pela má gestão que eles fazem do nosso dinheiro, que nos impede afinal de exigir aquilo que é um direito nosso: participar directamente nas decisões de investimento e gestão da nossa própria autarquia? Essa passagem das palavras à acção é que seria, na verdade, uma atitude de maturidade cívica e democrática que levaria muitos políticos a pensar duas vezes antes de tomar certas resoluções que, depois, todos teremos que pagar. Está na altura de passarmos da levedação à acção, ou seja, de fazermos mais do que apenas pagar as contas. Afinal, é o nosso futuro que está em causa.
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