sexta-feira, 30 de abril de 2010

As palavras

Questões de retórica

Os Telejornais são, nos dias que vivemos, uma coisa curiosa. Já não apresentam propriamente notícias, pois estas são apenas o que passa a correr em rodapé, com erros ortográficos de fazer arrepiar os cabelos. Assistimos a um autêntico desfile de peças jornalisticas, mais ou menos elaboradas e/ou sofisticadas, nas quais a distinção entre facto, interpretação e juízo de valor já quase não existe. Relativamente ao “caso” que agora faz a abertura de quase todos os telejornais – a tentativa de compra da TVI pela PT e a pressão do governo, em especial do Primeiro-Ministro, primeiro para se fazer o negócio e, depois, para se desfazer –, tenho achado extraordinários alguns dos depoimentos que os administradores de topo destas empresas têm prestado à Comissão de Inquérito: um não sabia, o outro só soube pelos jornais, um terceiro nem sequer imaginava, quase todos desconhecem, e por aí fora.

Parece que, em Portugal, os grandes negócios são fruto do acaso. Não se fazem, nem se planeiam: simplesmente, acontecem. Deve ser por isso que também a maior parte daqueles em que o Estado se envolve são um desastre financeiro para o próprio Estado. Se ninguém sabe do negócio, se nenhum ouviu dizer que ia ser feito, como é que as coisas podem correr bem? Assim, também não admira que a economia do país esteja à beira do desastre. Nem sei até como é que a «jangada de pedra» não se afundou já nas profundezas do Oceano Atlântico.

Contudo, resta uma última questão que muito me intriga: como é que estas grandes empresas, geridas por gente que nada sabe, nada conhece, etc., conseguem apresentar lucros fabulosos todos os anos?

A ideia de que uma mentira repetida muitas vezes, às tantas, se torna verdade, talvez até mesmo a verdade oficial, faz cada vez mais sentido para mim. Por isso não me surpreende que telejornais e telenovelas tenham cada vez mais coisas em comum.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Civismos

Agora que as nuvens resolveram fazer uma pausa na tarefa de nos despejar baldes de água em cima, começam já os carros a ficar cobertos de pó.  E claro, logo a consciência cívica de certos cidadãos e também uma apuradíssima preocupação com a higiene e saúde públicas - aliás características de sociedades desenvolvidas como a nossa, como os nossos estimáveis governantes não se cansam de nos lembrar - os obriga a deixar, literalmente, recados... no pó.

São sempre expressões de elevada consideração pelos outros, de uma riqueza linguística e de uma variedade vocabular extraordinárias: "lava-me porco"; "lava-me porra". A pontuação surge esporadicamente mas, na maior parte dos casos, é inexistente. Os anónimos autores devem considerar que o conteúdo da mensagem, por si só, já tem força e riqueza suficientes, não precisando de mais artifícios. Mas o que eu acho ainda mais incrível é a facilidade com que, em qualquer parque de estacionamento, se encontram carros com estas inscrições. Deve haver por aí uma brigada de justiceiros de rua ou algo assim do género!

 Mais até do que a sociologia, penso que devia ser a psicologia a ocupar-se deste fenómeno que, se não for patológico em si mesmo, deve ser pela certa sintoma de alguma patologia. Vejamos então porquê. O cidadão deixa um recado anónimo (como é costume fazer-se por cá) assumindo um discurso de primeira pessoa (-me), como se em vez de um automóvel, estivesse a assumir a identidade de um indefeso ser emudecido por continuados maus tratos, incapaz de expressar a violência ou a humilhação pública de que é, supostamente, vítima. Só que a vítima, neste caso, é.uma... máquina.

Depois, é claro, o juízo de valor expresso sobre o proprietário do carro - "porco". E isto assim, sem sequer saber de quaisquer circunstâncias ou atenuantes que possam explicar uma situação que poderá, até, ser excepcional ou apenas transitória (o mais natural e normal).

Outra questão interessante é a do "porra": a enorme raiva e violência que exprime, como se o tal anónimo cidadão que escreveu o recado, caso se deparasse com o dono do carro, estivesse na disposição de, logo ali, lhe dar uma carga de porrada para ele aprender como é que deve proceder com os bens de que é legítimo proprietário ou utilizador.

Face a esta "sanha higiénica" só posso concluir que estes cidadãos anónimos que inscrevem recados nos carros alheios devem ser eles próprios um exemplo de limpeza e asseio, em tudo. Como tal, não deviam envergonhar-se de dar a cara, isto é, de assinar o que escrevem. Penso mesmo que é legítimo concluir que estes cidadãos preocupados nunca, mas mesmo nunca:
a) cospem ou escarram para o chão (e em Portugal, quando se anda na rua, difícil é não nos cruzarmos com pelo menos dois ou três escarro-cuspidores destes, de todas as idades e classes sociais);
b) despejam as beatas e a cinza do cinzeiro do carro no chão, junto ao carro, quando estacionam num sítio qualquer;
c) encostam repentinamente na estrada, ou se encolhem numa qualquer esquina para urinar, quanto mais públicas e visíveis forem uma e outra melhor, enquanto nós lá vamos passando a fingir que não vemos nada;
d) atiram papéis, garrafas, embalagens, etc, etc, pela janela do carro quando vão a conduzir a alta velocidade, ou para o chão no caso de irem pela rua; ou em alternativa sacos cheios de lixo e electrodomésticos;
e) batem no carro alheio quando estão a fazer manobras de estacionamento e dão à sola como se nada fosse e quem quiser que pague os estragos;
f) vandalizam propositadamente os carros, a coberto da noite, apenas porque sim;
g) infringem propositadamente as regras do código da estrada e do bom senso só para mostrarem como são "machos";
h) assobiam para o ar quando vêem uma criança maltratada, um idoso pobre ou os gritos da vizinha quando apanha a sova diária do marido na apartamento ao lado...

É estranho que, havendo tanta gente que se dá ao luxo de estar atenta a coisas gravíssimas como esta de ter o carro coberto de pó por uma qualquer razão, ou apenas por causa da meteorologia, continuemos a ser confrontados todos os dias com situações como as acima referidas. Por momentos, poderíamos ser tentados a pensar que tudo o resto estaria bem e, não havendo mais nada com que ocupar o espírito...

Para mim, tanto umas como outras são bem graves e demonstrativas do quanto é árduo o caminho que ainda temos a percorrer na área sempre sensível do civismo e do mais elementar respeito pelos outros.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Desolações ou talvez apenas insolações

Hoje, parece que ao Chef Universal apeteceu fazer um belo gratinado para o jantar e, por isso, ligou o grill do forno. Mas, como a idade já vai avançada, deve ter-se esquecido dele ligado... E nós aqui em baixo a penar por causa do calor, fechados na sala de aula, recém-restaurada e encharcada de cheiros novos, muito pouco primaveris. Pelas janelas abertas entra uma brisa morna e convidativa, carregada de aromas florais, de gorjeios e de promessas de verão antecipado. São quase quatro da tarde e nós aqui fechados até às tantas, a fazer de conta que estamos concentrados nos meandros sinuosos da literatura e da gramática.

Decidi que era a melhor oportunidade para os alunos compreenderem em profundidade a mensagem de Manuel da Fonseca no poema "Coro dos Empregados da Câmara".
E foi em pequenos "grupos corais" que o lemos. Embora com as normais hesitações de alguns, a leitura saíu expressiva, bem entoada. Saíu-lhes da alma. Durante alguns minutos fomos, na verdade, "o coro dos empregados da escola". Em dias e tardes assim não consigo deixar de pensar que a escola dita inclusiva, de braços abertos para  acolher a todos segundo as suas necessidades, está mas é a ensaiar diariamente o coro das "almas censuradas", como escreveu Natália Correia num dos seus mais poderosos poemas, ou até mesmo a formar "poetas castrados", no sentido em que o proclamava Ary dos Santos (in Resumo, 1973) .
Em dias assim, tentar conter o rio de sentimentos, emoções, hormonas e energia que é maior do que qualquer um deles, até mais poderoso do que todos eles juntos, usando apenas uma frágil barragem de conteúdos é, no mínimo, inútil. Ainda que esses conteúdos sejam relevantes para o futuro destes jovens. Não estamos a fazê-los perceber o que é o "Despondency" de Antero de Quental, estamos a forçá-los a viver esse sentimento durante noventa minutos, o que é bem mais grave.

Foi certamente por tudo isto que o poema de Manuel da Fonseca fez tanto sentido para eles esta tarde e, para mim, fez tanto sentido escolhê-lo num impulso e levá-lo para o ler com eles:

É tão vazia a nossa vida, é tão inútil a nossa vida
que a gente veste de escuro como se andasse de luto.
Ao menos se alguém morresse e esse alguém fosse um de nós
e esse um de nós fosse eu...
... O Sol andando lá fora, fazendo lume nos vidros,
chegando carros ao largo com gente que vem de fora
(quem será que vem de fora?)
e a gente praqui fechados na penumbra das paredes,
curvados prás secretárias fazendo letra bonita.
Fazendo letra bonita e o vento andando lá fora
rumorejando nas árvores, levando nuvens pelo céu,
trazendo um grito da rua (quem seria que gritou?)
e a gente praqui fechados na penumbra das paredes,
curvados prás secretárias fazendo letra bonita,
enchendo impressos, impressos, livros, livros, folhas soltas,
carimbando, pondo selos, bocejando, bocejando, bocejando.

In Obra Poética

Esta tarde dei comigo a pensar que, tal como escreveu José Jorge Letria, no seu Livro Branco da Melancolia (2001):
"(...)
A literatura está cansada
dos jogos do poder e da vaidade
que em nome dela se praticam.
A literatura quer viver a sua vida
sem ter quem a policie e interprete.
Não quer estar confinada aos laboratórios,
nem ao exercício interminável da pesquisa.

Ela fala das pessoas e dos seus dramas
E não gosta que a cataloguem ou classifiquem.
Ás vezes apetece-lhe abrir as asas e voar."

E também como escreveu Agostinho da Silva em "Textos e Ensaios Filosóficos": "...quando vier a hora de se reconhecer na palavra nada mais do que uma ferramenta, uma das muitas que serviram a erguer o edifício humano (temo que a palavra humano seja estreita), hão-de valer mais as vidas que os livros e ninguém nunca mais se lembrará dos que apenas tiverem deixado atrás de si as páginas que escreveram."

Hoje foi por aqui que o meu pensamento andou entretido em divagações, enquanto o corpo luta há já umas horas contra uma febre persistente. Mais do que desolação, deve ser... insolação.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

David contra Golias

Num poema a que deu o título de "Bucólica", Miguel Torga escreveu que

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;

E eu tomo a liberdade de acrescentar:
De ver esta maravilha:
O casal de melros, de penas lustrosas e bico amarelo, residente há já vários anos (pelo menos três) nas grandes árvores do espaço ajardinado da escola e que, apesar das implacáveis e ruidosas máquinas da ParqueEscolar, da lama e do pó, do movimento humano inusitado, encontrou um refúgio, até agora seguro, nas três árvores de um estreito separador de relva, situado no exterior, mas paralelo ao gradeamento.  Quando as obras se iniciaram tive receio de que se fossem embora ou sofressem algum descaminho. Mas não. Encontro-os regularmente a tratar da vida, indiferentes à confusão de máquinas e homens, logo ali ao lado. Ainda agora vinham à minha frente - estão já habituados à presença humana - avançando aos pulos pela relva, a piar suavemente.

A  capacidade de adptação e perseverança que estes dois pequenos seres revelam é extraordinária. Comovente até. Quero acreditar que se sentem sobretudo felizes por, apesar do bulício, poderem festejar juntos o sol e a abundância que lhes permitirá criar facilmente a prole deste ano.

É este campeonato dos melros versus modernização das escolas, que bem poderia ser o combate de  David contra Golias, que desperta a minha atenção e tem o meu apoio incondicional. E, se o indefeso David ganhar, como espero, não me esquecerei de dizer ao jovem engenheiro responsável pelo imenso estaleiro de obras que nos provou a todos ser afinal possível modernizar sem estragar. Ao menos isso.

domingo, 25 de abril de 2010

As comemorações do 25 de Abril:

Há várias coisas que fazem parte da «tradição» nas comemorações do 25 de Abril.
Uma delas, é a pomposa e formalíssima cerimónia na Assembleia da República, onde cada um tenta fazer um discurso auto-promocional mais demagógico que o do vizinho e se esforça, ao mesmo tempo, para não dizer nada de relevante, de chocante e, sobretudo, de alarmante. É que as agências de "rating" e os mercados financeiros que amanhã, logo cedo, retomarão os seus negócios de biliões não gostam de 'ondas'. Tudo muito "politicamente correcto", portanto. Como convém. Mas não é tarefa fácil e deve ser por isso que é sempre entregue aos mais "experientes" do hemiciclo...

A outra é, também desde há muitos anos, perguntar às pessoas anónimas que circulam na rua ou a figuras mais ou menos públicas/conhecidas: «onde estava no 25 de Abril?». E, claro, são cada vez menos os que têm, de facto, algo de interessante e relevante para contar. Até porque os que fizeram a Revolução 'por dentro' nunca foram muito numerosos. O povo que logo começou a festejar nas ruas e praças é que foi imenso, mas quando agora responde à questão dizendo as banalidades que todos já ouvimos vezes sem conta - estava a trabalhar aqui ou ali, ouvi na rádio, o amigo X ou Y telefonou-me a contar, etc, etc - interrogo-me sempre: o que é que isso adiantou na altura? o que é que sabermos isso, hoje, adianta para a questão do que foi o 25 de Abril e quais as suas consequências para o país? Nunca consegui compreender muito bem a utilidade dessa questão, nem como é que ela pode ser relevante para a nossa compreensão colectiva do que foi, de facto, o 25 de Abril, nem do que mudou em Portugal por causa desse dia.

Certo é que no próximo 25 de Abril - malabarismos verbais em pomposos discursos e clichés fatídicos - marcarão novamente presença.

25 de Abril

Trinta e seis anos depois do 25 de Abril de 1974, para mim, esta continua a ser a melhor imagem-metáfora do Portugal pós-revolução: pequenino, pobrezinho, crédulo e ingénuo. Do ponto de vista da cidadania, da consciência cívica, democrática e crítica, também continuamos - trinta e seis anos depois – exactamente assim: na infância.
É claramente uma imagem kitsch, à semelhança do país e do povo que a gerou. E gostemos dela, ou não, mantém-se actual.

sábado, 24 de abril de 2010

Mas afinal, para que serve a literatura?

Numa breve mas muito interessante monografia de 1996, intitulada “El Oficio de Escribir”, Ramon Nieto começa por analisar as questões, tão antigas como a própria literatura, do «realismo» e da relação da literatura com a realidade. Lembra que Platão foi ao ponto de expulsar os poetas da sua República ideal, por considerar a escrita como uma arte impura. Considerava Platão que, ao contrário de outras formas de expressão artística - como a pintura ou a escultura - que são apreendidas directamente pelos sentidos e assim interpretadas pela consciência, a literatura, por ter nas palavras a sua matéria-prima, se tornava ambígua. Isto porque as palavras têm significante e significado, ambos relevantes, tanto para a sua expressão, como para a sua compreensão.

Mas o que Platão nos ensinou sobretudo foi que esta «natureza impura» da literatura se deve ao facto de a realidade e a imaginação se confundirem e se implicarem mutuamente, inviabilizando a adopção de perspectivas maniqueístas (sedutoras para efeitos de análise e de 'rotulagem' mas, seguramente, empobrecedoras). Às vezes, como sublinha Ramón Nieto, “o caos de obras como Ulisses de James Joyce, reflecte bem mais fielmente o caos da nossa época, da nossa civilização, do que o índice de preços ao consumidor ou o traçado de uma autoestrada. E quando o mundo que nos rodeia parece absurdo, existirá alguma coisa mais realista do que as novelas absurdas de Samuel Beckett?” (p. 61, trad. minha). Outras vezes as obras são-nos apresentadas como «histórias verdadeiras», como é o caso de Robinson Crusoe de Daniel Defoe ou de As Viagens de Gulliver de Jonathan Swift. Mas o que elas são é verdadeiras histórias de pura ficção, cuja «realidade» é, sobretudo, “sustentada pelo suporte literário” (idem).

É por tudo isto que, em literatura, a simples distinção entre realidade e imaginação não chega: “A realidade em literatura é tão real quanto a nossa percepção sensorial, contudo, é uma realidade distinta.” (idem). Como exemplos, Nieto aponta as descrições de Londres por Charles Dickens, a de São Petersburgo por Fiodor Dostoievski, e eu aponto a de Lisboa por Eça de Queirós. Por mais que os seus autores tenham assumido estas obras como «crónica de costumes», a verdade é que não trabalharam com tijolos, mas sim com palavras e, por isso, as paisagens que descreveram são, na verdade, “cenários teatralizados”, tanto quanto os das obras ditas «de ficção».

Segundo Ramón Nieto, o verdadeiro «realismo» na literatura implica que o autor reflicta a sua própria realidade e não uma hipotética realidade objectiva, pois objectividade e realismo não são sinónimos; que o autor pretenda modificar essa mesma realidade, usando com intencionalidade a sua escrita; que o autor, com a sua escrita, perturbe a ordem estabelecida (o sistema); e que o autor vise uma mudança com base em inovações ideológicas ou formais.

Depois desta breve sistematização Nieto introduz duas questões importantes: Poderá a literatura modificar a sociedade? Valerá a pena tentar modificar a sociedade através da literatura?

Estas perguntas remetem directamente para um tipo específico de realismo, dito social, de testemunho, de denúncia ou de compromisso. Quanto mais não seja todos os escritores estão, desde logo, «comprometidos» consigo próprios e com os seus leitores. Mais uma vez a memória literária regista que a “postura beligerante (com a pluma) dos escritores se revelou bastante ingénua” (p. 63, trad. minha). Nieto aponta como exemplo o descrédito de Jean-Paul Sartre na fase final da vida e sobretudo quando, postumamente, se tornaram públicas obras reveladoras da escassa consistência do posicionamento político que lhe tinha conferido notoriedade. Apesar disso, a sua herança perdurou: a ideia de que a palavra não serve só para divertir, jogar ou fazer floreados, mas também pode ser usada como arma. Contudo a verdade é que, como disse Fernando Morán, a descrição da miséria não basta para desmontar o mecanismo que a gera. É quase consensual que a literatura não resolve nada, nem sequer a solidão. A excepção poderia ser O Segundo Sexo pois como declarou Simone de Beauvoir: “não mudou a vida de nenhuma mulher, mas com certeza ajudou-a a sentir-se menos só”. Na teoria, algumas obras dirigidas a um público muito específico, poderiam transmitir-lhe determinadas mensagens, numa espécie de diálogo autor-leitor. Na prática, esse circuito comunicativo é, no mínimo, duvidoso.

É certo que a história literária regista algumas obras que, por terem denunciado certos factos, conduziram de modo mais ou menos directo à sua posterior correcção: A Selva de Upton Sinclair levou a que Roosevelt promulgasse uma lei que permitiu melhorar a situação laboral nos matadouros americanos; Germinal de Émile Zola alertou para as precárias condições de vida e de trabalho dos mineiros franceses; da mesma forma que As Vinhas da Ira de John Steinbeck, influenciou a tomada de algumas medidas legais de protecção aos trabalhadores imigrantes. E por estes escassos exemplos se vê como é modesto o poder de mudar a sociedade/realidade que a literatura possui. Talvez por isso, Gabriel García Marques tenha dito um dia: “Nunca falo sobre literatura, porque não sei o que é e além disso porque estou convencido de que, sem literatura, o mundo seria exactmente igual.”

E no entanto a suspeição do poder político em relação aos escritores e às suas obras também é tão antiga quanto a própria literatura, o que parece desproporcionado se pensarmos na (in)capacidade prática da escrita para mudar a realidade: na Grécia antiga Anaxágoras e Eurípides foram perseguidos; Sócrates foi até condenado à morte; Roma desterrou Ovídio; a Inquisição condenou dezenas de autores por toda a Europa; e embora por razões bem distintas, tanto Salman Rushdie como Roberto Saviano têm a cabeça a prémio.

Então porque se assusta tanto o poder, especialmente os regimes totalitários, com a literatura e com os seus autores? Na verdade, o poder não teme a veracidade, ou sequer a verosimilhança das histórias contadas, o poder teme a provocação, o aparecimento de uma nova opção ou de uma outra possibilidade que até aí não existia. Exactamente o oposto daquilo que os regimes ditatoriais exaltam e proclamam, pois o princípio da permanência é a garantia da sua sobrevivência. Ora a história tem demonstrado que, quanto maior é a desconfiança das pessoas relativamente à realidade que as rodeia, maior é a sua apetência pela ficção. Isto significa que, numa situação em que o sistema vigente detém o monopólio do que se deve saber, fazendo as pergundas e impondo as respostas (ou impedindo que elas se façam), a liberdade de criação que toda a literatura implica, pode assumir um estatuto absoluto: o da Liberdade propriamente dita, enquanto sistema e código de conduta. Ainda recentemente, José Carlos de Vasconcelos, a propósito do Dia Mundial da Poesia, relembrava no programa Câmara Clara da RTP2 que, antes do 25 de Abril de 1974, declamava poesia em salas cheias de operários que se emocionavam até às lágrimas, ao ponto de ter optado por deixar de ler alguns poemas, tal era a emotividade que despertavam. È também por isso que, à pergunta “para que escrevo?” muitos continuam a responder que usam a palavra como incitação pessoal à liberdade, para desassossegar o conformismo social, ou ainda para questionar os conformismos políticos” (p. 68, trad. minha). Esta é, segundo Ramón Nieto, “... a exigência que o ofício de escrever comporta, ainda que a temática abordada se aproxime mais dos lírios do campo que das injustiças sociais. Há algo que o escritor não se pode permitir fazer, se não quiser contradizer a essência da sua vocação: permanecer em silêncio.” (p. 67, trad. minha).

Contudo, tal não significa que o escritor, ao não conseguir mudar a sociedade em que vive, se deva demitir da sua função para se dedicar à jardinagem, por exemplo. O escritor existe para (re)criar permanentemente a realidade, seja ela bonita ou feia: “A mim, como leitora, o que me importa é sentir-me fascinada por um mundo diferente que se cruza com o meu e que, no entanto, é diferente dele”, dizia Simone de Beauvoir. Enquanto leitora, também eu estou consciente de que nenhum escritor pode assegurar aos leitores que a realidade que lhes oferece nos seus livros tem “as máximas garantias de ser a mais construtiva ou a melhor” (p. 68, trad. minha).

E para que serve, afinal, a literatura? Segundo o autor espanhol, serve sobretudo para “revelar ao homem e à sociedade que nada começa ou acaba onde parece começar ou acabar – nem sequer os próprios sentimentos – e que esta reflexão é, em si mesma, um veículo de progresso.” (p. 68, trad. minha).

Concordo com esta ideia porque a considero, de facto,  como uma das respostas possíveis. Também porque a leitura desta monografia breve e despretensiosa, comprada em Barcelona (julgo que não tem tradução portuguesa) se revelou bem interessante e levantou interrogações bastante pertinentes que se prendem até com uma área bem distinta desta: a do jornalismo. Mas esse é um outro filme...

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Os livros têm hoje o seu dia oficial

Em 1969, o editor italiano Franco Ricci decidiu fazer uma edição facsimilada do magnífico baralho de cartas de tarot do séc. XV, iluminadas por Bonifácio Bembo, e que pertenceu aos duques de Milão: o chamado baralho Visconti.


Algumas das cartas - o Diabo e a Torre - perderam-se e as restantes pertencem em parte à Accademia Carrara de Bergamo e à Morgan Library de Nova Iorque. Italo Calvino foi convidado a escrever um texto que acompanhasse as reproduções e decidiu usar as próprias cartas como "motor narrativo" e combinatório. Como ele próprio explica na Introdução: "Apliquei-me sobretudo a observar as cartas de tarot com atenção, com olhos de quem não sabe o que sejam, e a extrair delas sugestões e associações, a interpretá-las de acordo com uma iconologia imaginária. Quando as cartas alinhadas ao acaso me davam uma história em que eu reconhecia um sentido, punha-me a escrevê-la." Foi assim que redigiu "O Castelo dos Destinos Cruzados"., composto por um total de sete pequenas narrativas interligadas. No final tinha a seguinte conjugação de cartas e narrativas:
O texto foi recebido com grande interesse, quer pela crítica literária, quer pelos próprios estudiosos da cartomância. De tal forma que se decidiu a publicá-lo autonomamente - o que veio a acontecer em 1973 - e escreveu até um segundo conjunto de histórias breves e todas interligadas, a que atribuiu o título de "A Taberna dos Destinos Cruzados". Neste  segundo conjunto de textos recorreu a um tarot diferente - o de Marselha -, criado no séc. XVIII e, hoje em dia, o mais conhecido e utilizado.

Não foi contudo uma tarefa fácil: "Assim passei dias e dias a desfazer e a recompor o meu puzzle, inventava novas regras do jogo, traçava centenas de esquemas, em quadrado, em losango, em estrela, mas havia sempre cartas essenciais que ficavam de fora enquanto acabavam por entrar cartas supérfluas, e os esquemas tornavam-se tão complicados (...) que eu próprio me perdia lá dentro."

Mais à frente, Calvino acrescenta até que "Por diversas vezes, com intervalos mais ou menos longos, nestes últimos anos, fui penetrando neste labirinto que logo me absorvia completamente. Estaria a enlouquecer? Seria a maligna influência destas figuras misteriosas que não se deixavam manipular impunemente? Ou era a vertigem dos grandes números que emana de todas as operações combinatórias?"

Várias vezes abandonou este fascinante e cansativo trabalho durante períodos de tempo mais ou menos longos, mas voltava sempre às cartas e aos esquemas combinatórios. Por fim, quase se tornou uma obsessão: "Certas noites acordava para ir a correr assinalar alguma correcção decisiva, que depois arrastava consigo uma infindável cadeia de alterações. outras noites deitava-me com a consolação de ter achado a fórmula perfeita; e de manhã ao levantar-me rasgava-a."

Ainda chegou a pensar num terceiro conjunto de textos que organizaria sob o título de "O Motel dos Destinos Cruzados", mas não passou da sua formulação ideal. Concluiu que: "O meu interesse teórico e expressivo por este tipo de experiências esgotou-se. É tempo (de todos os pontos de vista) de passar para outra coisa."

Tinha formado um quadrado com as 78 cartas que constituem o baralho do tarot de Marselha e com todas as histórias dispostas e interligadas. Feito, no mínimo, extraordinário.

Tudo se inicia com a descrição de um castelo misterioso no meio de um bosque denso e com um conjunto de personagens diversas (cavaleiros, damas, comitivas reais ou simples viajantes) que, surpreendidas pela noite, procuram refúgio no castelo. O espaço é requintado e o castelão oferece um lauto banquete aos seus hóspedes fortuitos numa ampla e requintada sala, onde todos se sentam "em volta de uma távola iluminada por candelabros". (p. 17) Contudo, o narrador estranha o silêncio que reina na sala. De facto, "Quando algum dos convivas queria pedir ao vizinho que lhe passasse o sal ou o gengibre, fazia-o com um gesto, e era igualmente por gestos que se dirigia aos criados para lhe trincharem uma fatia de faisão ou lhe deitarem meia pinta de vinho." (p. 19) Percebe depois que todos estão sob o efeito de um estranho feitiço que os impede de usar a palavra.

Quando o silêncio já se tinha tornado incómodo, o castelão pousa no centro da mesa um baralho de cartas de tarot. Depois de alguns instantes de hesitação, "Um dos comensais puxou para si as cartas dispersas, deixando livre uma boa parte da mesa; mas não as juntou nem baralhou; tirou uma carta e pousou-a à sua frente. Todos notámos a semelhança entre o seu rosto e o da figura, e julgámos compreender que com aquela carta ele queria dizer «eu» e se preparava para contar a sua história." (p. 20) É nem mais nem menos que o Cavaleiro de Copas. Curiosamente, ou talvez não, é ele que abre a primeira narrativa de cada um dos dois textos que constituem o livro.

Uma das histórias contadas em "A Taberna dos Destinos Cruzados" é a "História do Indeciso", ou do "homem que não escolhe" e que, por isso, sofrerá as devidas consequências. Na vida, como nos livros, cada decisão tomada é como uma carta que se retira do baralho e nos transporta para a fase seguinte. Cada decisão evitada ou adiada também. Tudo, na vida e no tarot, tem con-sequências. São histórias que falam, não apenas de uma outra forma de escrever literatura, mas sobretudo de uma outra literatura, distinta daquela que nos dá um murro no estômago ou na cabeça e que às vezes nos deixa agoniados.

É claro que ambas têm o seu lugar e o seu tempo próprios, ambas são relevantes, embora cumpram objectivos distintos. E ambas couberam perfeitamente na sessão de apresentação de livros que hoje - Dia Mundial do Livro e da Leitura - fizemos aqui na escola. O meu colega Luís apresentou "A estrada" de Cormac Mccarthy e eu decidi apresentar "O Castelo dos Destinos Cruzados" de Italo Calvino, publicado pela Teorema no passado mês de Janeiro.

Sem que tivesse havido qualquer combinação prévia, acabámos por conseguir exactamente o que se pretendia com tal sessão. Foi um feliz encontro de livros e de histórias na encruzilhada do passado, com o presente e com as visões do futuro. Terão as cartas ditado tal sorte?

quinta-feira, 22 de abril de 2010

"A Relíquia"

de Eça de Queirós em versão... motorizada e de maior cilindrada.

Os líderes políticos que temos

O líder de um partido da oposição proclamava ontem, diante de uma pequena multidão de extasiados seguidores, no característico tom empáfio-enfático de macho a marcar o território recém conquistado, que "não há empregos para a vida". E voltava a repetir, como se ninguém tivesse escutado ou, o que para ele é mais provável, entendido à primeira: "não há empregos para a vida". Assim mesmo, pronunciando muito bem cada uma das sílabas. Como se estivesse a dizer uma verdade universal, descoberta pelo próprio desde que se tornou iluminado, ou seja, desde que se tornou líder do seu partido. Coitado, deve pensar que o povinho é estúpido de todo!
É que o povo sente diariamente na pele uma taxa de desemprego de quase 11% e, por isso,  já está numa fase mais avançada da coisa: "não há empregos", ponto final. Quanto mais "empregos para a vida"! Na verdade, os que há estão a acabar e quem é que incentiva a criação de novos? Líderes políticos como este? Não me parece.

Parece mesmo é que, em Portugal, neste momento, a única coisa garantida para a vida é termos de aguentar certos políticos que, em regime de permanência ou de alternância, nos lavam o cérebro com todos os detergentes possíveis (medo, ameaça, intimidação, propaganda, demagogia, miserabilism, populismo, autoritarismo, etc.) de modo a conseguirem eternizar-se no exercício do poder e garantirem que nada mudará porque, no fundo, para eles, está bom assim.
As certeiras palavras de Cidinha Campos descrevem bem os políticos que nos governam. Lá para os lados de S. Bento, "os que mamam" devem respirar de alívio só de pensar que ela está lá longe no parlamento brasileiro. Mas lá que os debates quinzenais na Assembleia seriam bem mais animados...

terça-feira, 20 de abril de 2010

Proverbios: velhos, novos e fora do tempo

Temos tendência para pensar que os provérbios são textos antigos, anónimos, colectivos e de feição popular (“do povo”). Contudo, nem sempre assim é. Não é difícil encontrar os autores de muitos provérbios hoje já do domínio colectivo. Alguns até começaram por ser citações de textos literários que, com o tempo e o uso, se tornaram do domínio público e colectivo, ou seja, se tornaram provérbios: Séneca escreveu que “Cada galo canta no seu poleiro”, o Padre António Vieira pregou que “Não há juízo sem inclinação”, Benjamin Franklin declarou que “Tempo é dinheiro”, Fernando Pessoa versejou que “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

Curioso é verificar como a literatura contemporânea, mesmo a mais vanguardista ou transgressora dos valores estabelecidos não desdenhou desta forma de expressão. Antes pelo contrário. Alexandre O’Neill e Mário Cesariny, seguindo um modelo proposto pelos surrealistas franceses Paul Éluard e Benjamin Péret, puseram a circular em 1974 (ano de todas as transgressões e libertações) provérbios como estes:
Mulher francesa – toalha na mesa;
Mesa de pinho – carapauzinho;
Gente que berra – marinheiro em terra;
Pão a cozer – menino a ler;
Água a correr – é de endoidecer.

Na verdade são falsos provérbios, antiprovérbios, provérbios descontruídos ou mesmo reconstruídos. Mais importante foi terem aberto um verdadeiro filão (inesgotável?) nas letras portuguesas.

E mais dois exemplos, entre outros possíveis:

Mário Castrim
Águas passadas só movem tolinhos.
A galinha da minha vizinha é sempre melhor na caminha.
Candeia que vai à frente, apaga-se mais vezes.
Não guardes para amanhã o que podes desfazer hoje.
As ocasiões são para os amigos.
Longe do coração, longe da vista.
(in Diário de Lisboa)

Tomás Lourenço
Berbequim em mão descuidada, fica a casa toda furada.
Mastigar caroços quentes faz mal aos dentes.
É de tirar o sono pensar que o Sol espreita pelo buraco do ozono.
Levantar com maré vazia, isso é que é halterofilia.
É miopia de truz chamar passarinho a uma avestruz..
(in Provérbios Mós-Modernos)

Nem sequer interessa muito saber se estes novos provérbios “pegam”, ou não. A maior parte deles foi escrita apenas pelo puro prazer lúdico de jogar com as palavras e respectivos significados.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Gadgets com futuro



A Biblioteca Digital Mundial, patrocinada pela UNESCO em conjunto com outras instituições e coordenada por Abdelaziz Abid, já está disponível na Internet, através do sítio www.wdl.org.

Nela se reunem mapas, textos, fotografias, gravações e filmes de todos os tempos e explica, em sete idiomas (árabe, chinês, inglês, francês, russo, espanhol e português), as grandes obras e relíquias culturais de todas as bibliotecas do planeta: desde alguns códices precolombianos aos primeiros mapas da América, desenhados por Diego Gutiérrez para o rei de Espanha, em 1562. Os "tesouros" incluem o "Hyakumanto darani" , um documento em japonês, publicado no ano 764, e considerado o primeiro texto impresso da história; um relato dos aztecas, que constitui a primeira menção do Menino Jesus no Novo Mundo; trabalhos de cientistas árabes desvelando o mistério da álgebra; ossos utilizados como oráculos e esteiras chinesas; a Bíblia de Gutenberg; antigas fotos latino-americanas da Biblioteca Nacional do Brasil e a célebre Bíblia do Diabo, do século XIII, da Biblioteca Nacional da Suécia, etc, etc, etc.
Esta biblioteca digital tem, para já, 1200 documentos disponíveis mas foi pensada para acolher um número ilimitado de textos, gravações, mapas, fotografias e ilustrações.

PS. - Há mesmo gadgets que valem a pena! Este é um deles. Já visitei e é, de facto, um belo presente da UNESCO para todos nós.

A perenidade de certos diálogos

Sócrates – Diz-me, Alcibíades, sabes qual é a arte que nos pode tornar melhores do que somos?
Alcibíades – Não sei, não.
Sócrates – Em todo o caso estamos com certeza de acordo num ponto: isso não acontecerá por meio de um arte que conduza apenas à melhoria de uma parte do que em nós existe, mas tem de nos melhorar na totalidade.
Alcibíades – Tens razão.
(...)
Sócrates – Sendo assim, achas que poderemos descobrir a arte de nos tornarmos melhores sem sabermos o que realmente somos?
Alcibíades – Não, isso seria impossível.
Sócrates – Mas... achas que é fácil conhecermo-nos a nós mesmos ou será essa tarefa, pelo contrário, bem difícil?
Alcibíades – Se queres que te diga, Sócrates, muitas vezes pensando nisso, achei essa tarefa fácil para a maior parte das pessoas, mas outras vezes ela parece-me muito difícil.
Sócrates – Difícil ou não, estamos sempre em presença deste facto: conhecendo-nos a nós mesmos podemos, com certeza, tornarmo-nos melhores do que somos, mas se não nos autoconhecermos, isso será impossível.
Alcibíades – O que acabaste de dizer é perfeitamente certo.

Platão, In Alcibíades

Mas hoje, dia de abertura de mais uma semana, estou exactamente como a Mafalda: sei que é importante, talvez até seja urgente, mas não me apetece... Ou, como diria certo "Guardador de Rebanhos", também "Há metafísica bastante em não pensar em nada".
 
Quino, in O Regresso de Mafalda

domingo, 18 de abril de 2010

Proverbiais e aforísticas

Agora que a expressão "Deixai vir a mim as criancinhas" ganhou novos e repugnantes sentidos:

Quem não quer ser considerado pedófilo não lhe vista o hábito.

Vozes de vítimas não chegam ao Vaticano.

Uma encíclica lava a outra e duas ilibam os padres pedófilos.

Será o celibato o pai de todos os vícios?

À mulher de César não basta parecer séria e ao padre católico não basta parecer virtuoso.

Na casa do Senhor muito bem falam os pregadores e acoitam-se os predadores.

Padre pedófilo no orfanato é como raposa no galinheiro.

O hábito não faz o monge mas, pelos vistos, faz o pedófilo (e não devia).

Dúvida muito pessoal: como é que estes vermes encararão para si próprios o tal dia do "Juízo Final" com que andam a catequizar as consciências alheias?

O Homem; As Viagens

O Homem; As Viagens

O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na Terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a Lua
Desce cauteloso na Lua
Pisa na Lua
Planta bandeirola na Lua
Experimenta a Lua
Coloniza a Lua
Civiliza a Lua
Humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
Pisa em Marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
Vê o visto — é isto?
Idem
Idem
Idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o Sol, falso touro
Espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
Do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.

Carlos Drummond de Andrade

Partidas da Natureza

Certo vulcão islandês conseguiu pregar uma partida a toda a Europa hiperdesenvolvida, tecnologicamente avançada e sofisticada. De repente, num abrir e fechar de olhos, tudo o que se tomava como certo, garantido, até banal, foi posto em causa e o mundo ficou menos global.

Parece que a Mãe-Natureza, com a sua voz fumegante, nos vem oportunamente (re)lembrar até que ponto, na vastidão imensa do calendário geológico da Terra, o Homem, apesar de todos os seus caprichos e desejos, continua a não passar de um minúsculo ponto insignificante?

Resta-nos só esperar para ver se o vulcão que riu primeiro não será igualmente quem vai rir por último ou This Mess We're In...

sábado, 17 de abril de 2010

A minha geração

Tal como Bernardo Soares, também eu sinto que “Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais ainda tinham o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da ingenuidade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.

Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. (...) Ficámos, pois, cada um entregue a si-próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.

Sem ilusões vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de acção, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.

Uns de nós estagnaram na conquista alvar do quotidiano, reles e baixos buscando o pão de cada dia, e querendo obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço, sem a nobreza do conseguimento.

Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. (...)

Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.

Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si-próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir."
In Livro do Desassossego

Pertenço a uma geração que muitas vezes navega porque é preciso, esquecida de viver, mas outras vezes precisa de navegar para conseguir viver. Viver e navegar são, afinal, a mesma humana aventura. O porto de chegada a grande incógnita.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ironias da História

Cem depois da implantação da República – a revolução que em Portugal mais se aproximou daquilo que foi a Revolução Francesa, em termos de ideais, de valores e até de objectivos – e no que à situação das mulheres diz respeito, costuma dizer-se que mudou sobretudo o discurso, tudo o resto se mantém ainda muito igual. De facto, foram poucas as conquistas efectivas das mulheres, sobretudo em termos sociais e políticos.

Mesmo em termos discursivos é curioso verificar como há permanências ou estereótipos que se mantêm inabaláveis. Desde os primórdios da civilização grega que a expressão “homem público” constitui um elogio, um encómio, tem uma clara conotação positiva. No entanto, quando se aplica o mesmo adjectivo às mulheres, a coisa muda radicalmente de figura: a “mulher pública” é desde a noite dos tempos, a prostituta que vende o corpo aos homens em troca de dinheiro.

Os sucessivos escândalos políticos que têm sido divulgados nos últimos tempos no nosso país revelam uma outra face destes “homens públicos” que, para mim, em nada difere das tais mulheres ditas “públicas”, pois também eles se vendem por dinheiro (embora as somas em causa sejam substancialmente diferentes).

Dou por mim a pensar que, de uma forma bastante irónica, o sentido do adjectivo “público” para além de estar contaminado com o que de pior é atribuído à sua variante de género (prostituição), tem agora um outro aspecto mais negativo: pelo menos, as mulheres “públicas” assumem-se como tal e, por isso mesmo, ninguém que as procure pode dizer que foi enganado. Já o mesmo não se pode dizer de alguns destes tais “homens públicos”...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

"para viver até morrer"

Magreza

Tempos
magros.

Não
encher
o corpo
de porcarias:
colesterol,
gorduras,
açúcar,
álcool,
literatura.

Fazer
dieta
para
viver
até
morrer.

João Camilo dos Santos, In Poemas postmodernos

A vida num minuto

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Os passos para dentro e os passos para fora

Quando abrimos a invisível porta que nos separava de uma situação/relação nova, entramos num corredor-túnel desconhecido, escuro e que nada fica a dever à linha recta. A única razão que nos leva a transpor essa porta é acreditarmos na decisão tomada e em nós próprios e no outro. Por isso é como se no fim desse corredor sinuoso estivesse uma luz que, mesmo pequena, chega para nos guiar os passos e os dias. A cada passo que damos acreditamos um pouco mais que será possível chegar ao fundo do corredor: reconhecimento, interesse, atracção/deslumbramento, paixão/amor, dependência/hábito.

E depois, um dia, tropeçamos sem perceber muito bem em quê, no outro dia, damos uma valente cabeçada numa esquina da parede, a seguir apercebemo-nos de que continuamos a andar mas já não saímos do mesmo síto há algum tempo. E as pequenas ondas da frustração começam a crescer por dentro. E vem então o momento em que, quase sem querer, tocamos numa qualquer prateleira e toda a louça nos desaba aos pés. Rodeados de estilhaços ficamos num impasse: tentar avançar ou recuar? Sempre que pensamos em avançar sentimos coisas que rangem e se quebram debaixo das solas. De repente já nada corresponde a coisa alguma - o caminho parece não ter saída e a luz lá ao fundo, afinal, não passava de uma ilusão. Estamos desencontrados de nós e dos outros; dos objectivos, dos valores e dos ideais que nos tinham trazido até ali, desenquadrados até da própria situação.

Finalmente, perguntamo-nos: mas que estou eu a fazer aqui? E só há uma resposta/saída possível: recuar, antes que fiquemos também em estilhaços.

Começamos então a dar exactamente os mesmos passos que tínhamos dado antes, mas agora em sentido inverso e às arrecuas: perda, negação, raiva/frustração, desinserção/depressão, negociação/aceitação.

Passos lentos, penosos, às vezes hesitantes porque dados às escuras, cada vez mais distantes da luz, mesmo ilusória, que nos tinha guiado. E um dia, de repente, os braços estendidos no escuro (re)encontram o puxador da porta que tinhamos transposto no princípio de tudo. Ansiosos e ainda não refeitos do choque, damos connosco cá fora a piscar os olhos à luz natural.

terça-feira, 13 de abril de 2010

A boa e a má solidão

Thomas Merton, o escritor norte-americano que em 1941, aos 26 anos de idade, escolheu viver num mosteiro trapista (ou cisterciense) e é hoje considerado um precursor da chamada “teologia da libertação”, reflectiu muito ao longo da sua vida sobre o papel da solidão, tanto para os indivíduos, como para a própria sociedade. Escreveu um dia que “A solidão é necessária para a sociedade como o silêncio para a linguagem, o ar para os pulmões e a comida para o corpo.” pois é ela que permite “desenvolver a vida interior das pessoas”.

Contudo, Merton distinguiu claramente dois tipos de solidão, com consequências individuais também muito distintas: “A falsa solidão é quando um indivíduo, ao qual foi negado o direito de se tornar uma pessoa, se vinga da sociedade transformando a sua individualidade numa arma destruidora. A verdadeira solidão é encontrada na humildade, que é infinitamente rica. A falsa solidão é o refúgio do orgulho, e infinitamente pobre. (...) A verdadeira solidão não tem um eu no centro. Por isso é rica em silêncio, em caridade e em paz. Encontra em si infindáveis fontes de bem para os outros. A falsa solidão é egocêntrica mas porque nada encontra no seu centro, procura arrastar todas as coisas para ela e assim infecta tudo o que toca com o seu próprio nada, provocando a sua destruição. A verdadeira solidão é a que limpa a alma e se abre completamente aos quatro ventos da generosidade. A falsa solidão fecha a porta a todos os homens.
Ambas as solidões procuram distinguir o indivíduo da multidão. A verdadeira consegue, a falsa falha. A verdadeira solidão separa um homem de outros para que ele possa desenvolver o bem que está nele (...)." (In, Na Liberdade da Solidão)

Aqui pelo Sulidão é dessa «verdadeira solidão» que se anda à procura.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Desenvolvimento sustentável?

O tema da conversa era "desenvolvimento/Terra sustentável?" e o dinamizador apresentou uma série verdadeiramente demolidora de números e gráficos sobre consumos de energia, petróleo, população, consumo vs produtividade... Mas tudo se pode resumir em dois cartoons:
Luís Afonso

A consequência, está bem de ver, não pode ser outra. É só uma questão de tempo: 
            Alexander Wolf

A única conclusão possível é disjuntiva: ou queremos desenvolvimento, ou queremos sustentabilidade. Não podemos é ter os dois em simultâneo, pois o conceito de "desenvolvimento sustentável" é uma impossibilidade e uma utopia que interesses poderosos (e impiedosos) transformaram numa espécie de brinquedo de corda para entreter consciências.
Na prática, estamos já quase no ponto de não-retorno. Depois, quem sabe?

domingo, 11 de abril de 2010

Uma interpretação "não linear" da música clássica...

bem no espírito da tal "década zero" deste novo século...

Sinais do tempo

No passado mês de Janeiro, Vítor Belanciano, Vanessa Rato, Mário Lopes, entre outros, fizeram no Ipsilon (Público, 8/1/2010), uma óptima síntese sobre a primeira década do novo século, para dizerem que estamos “Perdidos. Na imensidão do espaço digital. No excesso de informação. Na proliferação de suportes, de maneiras de ouvir, ver, ler. Em todo o lado, a toda a hora, procurando, com ansiedade, a qualidade na quantidade.

Foi assim que vivemos a primeira década do séc. XXI. Foram dez anos em que as condições de produção, existência, partilha e distribuição da música, do cinema, da literatura ou das artes, plásticas e performativas, se alteraram profundamente. Foram dez anos esquizofrénicos em que as actividades culturais se confrontaram com uma espécie de esvaziamento, mas em simultâneo foram vistas como veículo de desenvolvimento económico, servindo para imaginar soluções para o crescimento sustentável. (…)

Quem continuou a usar velhas grelhas de leitura para pensar o que se passou na música, no cinema ou nas artes, saiu dessa análise confundido, sugerindo que nada de expressivo aconteceu, não porque nada tivesse sucedido realmente, mas porque o que se passou se manifestou de maneira diversa, a um nível micro, de forma rápida, disseminada, sem que muitas vezes chegasse a formar um todo coerente. (…)

Para “Quem tentou perceber procedimentos em aberto, não receando a desarrumação e as contradições que se apresentam à sua frente (…) Nunca aconteceu tanto em tão pouco tempo.” (sublinhado meu):

Até aqui, quem queria ser artista tinha que ser, primeiro, um criativo e, depois, ter acesso “aos meios de produção, distribuição e legitimação. Agora, o MySpace, o YouTube, os blogues, o Facebook e outras redes sociais transformaram os consumidores em criadores cuja “produção espontânea pode convergir directamente para o espaço virtual. (..) Nunca a fantasia do “faça-você-mesmo” pareceu tão real...” A internet, mas sobretudo a blogosfera tornaram-se também espaços preferenciais para a divulgação de música, filmes, livros e respectivos autores e criadores. Consequentemente: as empresas diminuiram, e muito, o investimento financeiro em publicidade na imprensa e nos meios de comunicação social; as publicações especializadas e os suplementos literários, bem como os “críticos literários encartados” estão em vias de extinção. Também aqui a sobrevivência está online.

Mas “Ao contrário do que muitos esperavam, a net não trouxe verdadeira democratização comunitária, antes uma democracia individualista. Cada um define o seu percurso na rede, recolhendo informação, saltando de meta ligação em meta ligação. Ninguém quer líderes ou pregadores”, embora continuemos “fascinados com figuras da dimensão icónica” de um John Lennon ou de um Joe Strummer. Esta “multiplicidade de escolhas” permitiu “mais diversidade e inovação. Mas as audiências também são mais segmentadas e estilhaçadas. Daqui resulta uma cultura de inúmeros pequenos cultos, que não se intersecta entre si, dispersa por infindáveis pequenos nichos.”

Na década de 60 Andy Warhol afirmou que “No futuro todos serão famosos por 15 minutos”. A máxima mantém-se pertinente e, ao longo desta década, foi mesmo ampliada pela afirmação de Momus em 91: “No futuro todos seremos famosos para 15 pessoas”. “A nova (des)ordem digital” não significou o fim das grandes estrelas planetárias que movimentam “cifras macroeconómicas” mas gerou novos ícones: “Mais humanos. Mais próximos de nós. Verdadeiros criadores e não figuras desenhadas a régua e esquadro (…) comunicando de facto para imensas minorias”.

Os dias que vivemos permitem-nos mergulhar 24/7 em filmes, música ou livros, “passíveis de serem experienciados onde e quando nos apetece – às vezes, mesmo quando não queremos. Essa imersão contínua tanto pode estimular como banalizar a experiência.”. Talvez tenha sido por isso que os grandes espectáculos ao vivo se tornaram tão importantes ao longo da década: eles assumiram-se como forma de reacção a esse “consumo indiferenciado e individual”, constituindo uma “experiência social” irrepetível que reafirma o prazer de ver, ouvir e sentir “em comunidade”.

As grandes metrópoles da criação – Nova Iorque, Paris, Berlim ou Londres – continuam “a servir de farol para perceber o que de mais importante se passou na música, no cinema ou nas artes. Mas da China ao Brasil, da Índia a África, depende-se cada vez menos desses centros de legitimação.”. Grandes mudanças como esta geram insegurança e também nostalgia “dos dias em que parecia existir uma espécie de unidade cultural, produtora de um sentido, em que todos se reflectiam um pouco” - criadores, público, até mesmo a grande indústria cultural. “Mas esses dias, é quase certo, não vão regressar.”

A nossa própria noção de História mudou ao longo destes dez anos: “Até agora o acesso ao passado era parcial, não cumulativo. Com a internet, talvez pela primeira vez na História, temos a sensação de poder aceder a todas as obras, de diferentes épocas, num ápice. Não admira que subsista uma impressão em que passado, presente e futuro se sucedem, não apenas um atrás do outro, mas todos ao mesmo tempo, conectando-se entre si, permeáveis.” Em vez de um “percurso preciso e contínuo, passámos a ter regressos, anacronismos, descontinuidades, recuperações e convivências.”

“É natural que aqueles que não sabem guiar-se na desordem se sintam desnorteados e acabem por regressar ao que sempre conheceram ou aos valores perenes – talvez por isso, esta foi também a década em que a memória foi mais celebrada, seja ela personificada pelos Beatles, por António Variações (Os Humanos) ou por Andy Warhol.”

Que poderemos então concluir?

  • Que vivemos no “contexto (...) de um mundo que se confronta com a circulação infinita de informação, onde há partilha e recriação generalizada do conhecimento.”

  • Que a internet é um “não tempo contínuo, espécie de super-consciência extática, onde o Big Bang está constantemente a criar o universo, hoje.”

  • Que, apesar do seu crescimento quase brutal, a internet “ainda é terreno de ambivalências, celebrada como abertura para novas possibilidades, mas também temida por constituir um sinal do fim da criatividade como a conhecíamos.”

  • Que “independentemente das tecnologias, o que interessa é a maneira como as artes e a cultura asseguram alguma forma de compromisso com a vida, reflectindo, ampliando e até antecipando o que acontece à nossa volta, num período histórico de grande experimentação política, económica e social.”

  • Sobretudo que o mundo agora global, “e com ele o mundo da cultura, está mais estimulante, do que há dez anos” pois fez nascer “uma nova forma de estar e pensar (…) sincrónica, em vez de diacrónica, viral, não-linear – um universo de contemporaneidade absoluta, de facto. Tão absoluta que se tornou categoria, em si.”
Esta foi claramente a década zero do século. Está tudo em aberto. Cá estaremos (ou talvez não, quem sabe?) para vi-ver com espanto o que aí vem.

sábado, 10 de abril de 2010

Proverbiais e aforísticas

Às vezes as aparências não enganam...

Por a, mais b, mais c

Durante algum tempo foi incapaz de perceber o verdadeiro alcance da atitude que tomou naquele noite de um sábado ainda pouco outonal. Passados alguns meses, quando o distanciamento temporal e afectivo lhe permitiram também uma maior objectividade de análise chegou às seguintes conclusões:

a) libertou alguém que há já muito tempo ansiava pela sua partida;

b) apaziguou muitas angústias e inseguranças manifestadas por familiares próximos;

c) pessoas mais ou menos conhecidas, e entretanto reencontradas, disseram-lhe que fez bem, que está melhor assim;

d) os amigos, embora sempre tivessem contado com a sua presença e apoio, manifestaram contentamento com a sua ainda maior disponibilidade.

Por a, mais b, mais c e mais d concluiu que, se tomou a decisão acertada para tanta gente, então, naquela noite de finais de Outubro, também deve ter tomado a melhor decisão possível para si própria. Além disso, ficou até surpreendida por verificar como, de  uma assentada, conseguiu deixar tanta gente contente.