Numa crónica intitulada "Razão", Miguel Esteves Cardoso escreveu que "(…) A ideia de ninguém ter razão (haja ou não haja pão) é portuguesíssima. Sobre qualquer assunto, Portugal garante-nos sempre pelo menos dez milhões de razões, cada uma com a sua diferençazinha, cada uma com a sua insolenciazeca do «eu cá é que sei». (…)
Em Portugal a razão nunca é uma coisa que se dê, pela simples razão que a razão é uma coisa que se tem. Se eu já tenho razão, porque é que hei-de dá-la a outro caramelo qualquer, que já há-de ter, com toda a certeza, a razão dele?
A lei que governa estas coisas é respeitada: «Eu cá fico na minha e tu fica na tua.» Não há pessoa mais difícil de convencer que o português. Para ele, «convencer» é um acto de maldade, destinado a «tirar» razão ( a roubá-la) a quem tem direito a ela. A frase «Não me estejas a tentar convencer» pronuncia-se, entre nós, como uma ofensa. Noutros países menos pluri-racionais, o exercício da persuasão, praticado através da apresentação de argumentos num clima de diálogo competitivo, é uma das peças fundamentais da civilização. Entre nós, nunca. O português profere «A mim não me convencem eles» com a atitude emproada e triunfal de uma padeira de Aljubarrota a quem um pasteleiro de Salamanca procurasse vender uma dúzia de arrufadas de anteonem.
Tentar convencer alguém não tem mal nenhum, excepto em Portugal. Aqui, ser convencido é ser vencido. (…) Os portugueses, quando se deixam convencer dizem: «Está bem, leva lá a taça!» indicando assim que perderam. Ao ver que alguém procura persudi-los de qualquer coisa, pensam logo: «Olá... este anda a ver se me dá a volta... mas eu já o lixo.» E dizem: «Desculpe lá, mas a mim ninguém me tira esta ideia da cabeça.» (…)
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Se só em Portugal se «refutam» argumentos com o peso dialéctico do «Olhe que não...» ou do «isso não é bem assim»? Se só em Portugal se diz de quem quer expor as suas opiniões que quer impô-las? Como será possível ultrapassar a situação em que todos sentem que dar razão a alguém é ficar-se sem ela? (Não há provocação mais violenta em Portugal do que dizer perante alguém «Então estás a dar-me razão!»).
A única maneira de ter uma razão que seja dada por outrem e não simplesmente consentida («Pronto, fica lá na tua que eu cá fico na minha») é bastante drástica. É morrendo. Os mortos, em Portugal, têm sempre razão. É por isso que a razão só se dá no pretérito, a alguém que está manifestamente ausente: »Razão tinha o outro, coitado...»."
in A Causa das Coisas
Muita razão tem o cronista. De facto, somos mesmo assim: aborrecemo-nos com o debate de ideias, evitamos mesmo uma simples conversa em que se aprofundem pontos de vista individuais e/ou pessoais sobre certos assuntos ou problemas até, por vezes, com os que estão mais próximos de nós. Talvez por isso haja depois tanta gente ludibriada em situações que nos parecem quase inacreditáveis: «Como é que a pessoa não percebeu logo que aquela história estava mal contada?»
E também tem razão Esteves Cardoso quando diz que reduzimos sempre tudo a uma questão de vencer ou perder. Sempre que há um grande debate político na televisão, logo os vários canais - generosamente - nos proporcionam painéis de analistas e especialistas vários que, durante horas, nos dizem o que devemos pensar sobre tudo o que foi dito durante o debate. É uma forma tão eficaz como qualquer outra de minimizar o próprio debate em si, bem como os seus protagonistas, fazendo depender tudo dos juízos de valor dos «opinion makers». Mas compreende-se: é que nós, portugueses, coitadinhos, somos tão parvinhos que não conseguimos já pensar por nós próprios e, por isso, necessitamos de ter sempre quem nos diga o que devemos pensar...
E depois no fim o/a moderador/a conclui sempre com a mesma pergunta: «Quem é que acham que venceu o debate?». Nunca se preocupam muito em ver quem é que argumentou melhor, quem é que tem melhores e mais sólidas ideias, quem é que tem um discurso mais articulado e claro, quem é que tem conhecimentos mais sólidos... Não, o mais importante de tudo aquilo é sempre declarar um vencedor, como se tivéssemos assistido, não a um debate de ideias, mas a uma luta de galos ou a um combate de boxe.
Se calhar, em muitos aspectos políticos e sociais, temos mesmo aquilo que merecemos.
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