Numa breve mas muito interessante monografia de 1996, intitulada “El Oficio de Escribir”, Ramon Nieto começa por analisar as questões, tão antigas como a própria literatura, do «realismo» e da relação da literatura com a realidade. Lembra que Platão foi ao ponto de expulsar os poetas da sua República ideal, por considerar a escrita como uma arte impura. Considerava Platão que, ao contrário de outras formas de expressão artística - como a pintura ou a escultura - que são apreendidas directamente pelos sentidos e assim interpretadas pela consciência, a literatura, por ter nas palavras a sua matéria-prima, se tornava ambígua. Isto porque as palavras têm significante e significado, ambos relevantes, tanto para a sua expressão, como para a sua compreensão.
Mas o que Platão nos ensinou sobretudo foi que esta «natureza impura» da literatura se deve ao facto de a realidade e a imaginação se confundirem e se implicarem mutuamente, inviabilizando a adopção de perspectivas maniqueístas (sedutoras para efeitos de análise e de 'rotulagem' mas, seguramente, empobrecedoras). Às vezes, como sublinha Ramón Nieto, “o caos de obras como Ulisses de James Joyce, reflecte bem mais fielmente o caos da nossa época, da nossa civilização, do que o índice de preços ao consumidor ou o traçado de uma autoestrada. E quando o mundo que nos rodeia parece absurdo, existirá alguma coisa mais realista do que as novelas absurdas de Samuel Beckett?” (p. 61, trad. minha). Outras vezes as obras são-nos apresentadas como «histórias verdadeiras», como é o caso de Robinson Crusoe de Daniel Defoe ou de As Viagens de Gulliver de Jonathan Swift. Mas o que elas são é verdadeiras histórias de pura ficção, cuja «realidade» é, sobretudo, “sustentada pelo suporte literário” (idem).
É por tudo isto que, em literatura, a simples distinção entre realidade e imaginação não chega: “A realidade em literatura é tão real quanto a nossa percepção sensorial, contudo, é uma realidade distinta.” (idem). Como exemplos, Nieto aponta as descrições de Londres por Charles Dickens, a de São Petersburgo por Fiodor Dostoievski, e eu aponto a de Lisboa por Eça de Queirós. Por mais que os seus autores tenham assumido estas obras como «crónica de costumes», a verdade é que não trabalharam com tijolos, mas sim com palavras e, por isso, as paisagens que descreveram são, na verdade, “cenários teatralizados”, tanto quanto os das obras ditas «de ficção».
Segundo Ramón Nieto, o verdadeiro «realismo» na literatura implica que o autor reflicta a sua própria realidade e não uma hipotética realidade objectiva, pois objectividade e realismo não são sinónimos; que o autor pretenda modificar essa mesma realidade, usando com intencionalidade a sua escrita; que o autor, com a sua escrita, perturbe a ordem estabelecida (o sistema); e que o autor vise uma mudança com base em inovações ideológicas ou formais.
Depois desta breve sistematização Nieto introduz duas questões importantes: Poderá a literatura modificar a sociedade? Valerá a pena tentar modificar a sociedade através da literatura?
Estas perguntas remetem directamente para um tipo específico de realismo, dito social, de testemunho, de denúncia ou de compromisso. Quanto mais não seja todos os escritores estão, desde logo, «comprometidos» consigo próprios e com os seus leitores. Mais uma vez a memória literária regista que a “postura beligerante (com a pluma) dos escritores se revelou bastante ingénua” (p. 63, trad. minha). Nieto aponta como exemplo o descrédito de Jean-Paul Sartre na fase final da vida e sobretudo quando, postumamente, se tornaram públicas obras reveladoras da escassa consistência do posicionamento político que lhe tinha conferido notoriedade. Apesar disso, a sua herança perdurou: a ideia de que a palavra não serve só para divertir, jogar ou fazer floreados, mas também pode ser usada como arma. Contudo a verdade é que, como disse Fernando Morán, a descrição da miséria não basta para desmontar o mecanismo que a gera. É quase consensual que a literatura não resolve nada, nem sequer a solidão. A excepção poderia ser O Segundo Sexo pois como declarou Simone de Beauvoir: “não mudou a vida de nenhuma mulher, mas com certeza ajudou-a a sentir-se menos só”. Na teoria, algumas obras dirigidas a um público muito específico, poderiam transmitir-lhe determinadas mensagens, numa espécie de diálogo autor-leitor. Na prática, esse circuito comunicativo é, no mínimo, duvidoso.
É certo que a história literária regista algumas obras que, por terem denunciado certos factos, conduziram de modo mais ou menos directo à sua posterior correcção: A Selva de Upton Sinclair levou a que Roosevelt promulgasse uma lei que permitiu melhorar a situação laboral nos matadouros americanos; Germinal de Émile Zola alertou para as precárias condições de vida e de trabalho dos mineiros franceses; da mesma forma que As Vinhas da Ira de John Steinbeck, influenciou a tomada de algumas medidas legais de protecção aos trabalhadores imigrantes. E por estes escassos exemplos se vê como é modesto o poder de mudar a sociedade/realidade que a literatura possui. Talvez por isso, Gabriel García Marques tenha dito um dia: “Nunca falo sobre literatura, porque não sei o que é e além disso porque estou convencido de que, sem literatura, o mundo seria exactmente igual.”
E no entanto a suspeição do poder político em relação aos escritores e às suas obras também é tão antiga quanto a própria literatura, o que parece desproporcionado se pensarmos na (in)capacidade prática da escrita para mudar a realidade: na Grécia antiga Anaxágoras e Eurípides foram perseguidos; Sócrates foi até condenado à morte; Roma desterrou Ovídio; a Inquisição condenou dezenas de autores por toda a Europa; e embora por razões bem distintas, tanto Salman Rushdie como Roberto Saviano têm a cabeça a prémio.
Então porque se assusta tanto o poder, especialmente os regimes totalitários, com a literatura e com os seus autores? Na verdade, o poder não teme a veracidade, ou sequer a verosimilhança das histórias contadas, o poder teme a provocação, o aparecimento de uma nova opção ou de uma outra possibilidade que até aí não existia. Exactamente o oposto daquilo que os regimes ditatoriais exaltam e proclamam, pois o princípio da permanência é a garantia da sua sobrevivência. Ora a história tem demonstrado que, quanto maior é a desconfiança das pessoas relativamente à realidade que as rodeia, maior é a sua apetência pela ficção. Isto significa que, numa situação em que o sistema vigente detém o monopólio do que se deve saber, fazendo as pergundas e impondo as respostas (ou impedindo que elas se façam), a liberdade de criação que toda a literatura implica, pode assumir um estatuto absoluto: o da Liberdade propriamente dita, enquanto sistema e código de conduta. Ainda recentemente, José Carlos de Vasconcelos, a propósito do Dia Mundial da Poesia, relembrava no programa Câmara Clara da RTP2 que, antes do 25 de Abril de 1974, declamava poesia em salas cheias de operários que se emocionavam até às lágrimas, ao ponto de ter optado por deixar de ler alguns poemas, tal era a emotividade que despertavam. È também por isso que, à pergunta “para que escrevo?” muitos continuam a responder que usam a palavra como incitação pessoal à liberdade, para desassossegar o conformismo social, ou ainda para questionar os conformismos políticos” (p. 68, trad. minha). Esta é, segundo Ramón Nieto, “... a exigência que o ofício de escrever comporta, ainda que a temática abordada se aproxime mais dos lírios do campo que das injustiças sociais. Há algo que o escritor não se pode permitir fazer, se não quiser contradizer a essência da sua vocação: permanecer em silêncio.” (p. 67, trad. minha).
Contudo, tal não significa que o escritor, ao não conseguir mudar a sociedade em que vive, se deva demitir da sua função para se dedicar à jardinagem, por exemplo. O escritor existe para (re)criar permanentemente a realidade, seja ela bonita ou feia: “A mim, como leitora, o que me importa é sentir-me fascinada por um mundo diferente que se cruza com o meu e que, no entanto, é diferente dele”, dizia Simone de Beauvoir. Enquanto leitora, também eu estou consciente de que nenhum escritor pode assegurar aos leitores que a realidade que lhes oferece nos seus livros tem “as máximas garantias de ser a mais construtiva ou a melhor” (p. 68, trad. minha).
E para que serve, afinal, a literatura? Segundo o autor espanhol, serve sobretudo para “revelar ao homem e à sociedade que nada começa ou acaba onde parece começar ou acabar – nem sequer os próprios sentimentos – e que esta reflexão é, em si mesma, um veículo de progresso.” (p. 68, trad. minha).
Concordo com esta ideia porque a considero, de facto, como uma das respostas possíveis. Também porque a leitura desta monografia breve e despretensiosa, comprada em Barcelona (julgo que não tem tradução portuguesa) se revelou bem interessante e levantou interrogações bastante pertinentes que se prendem até com uma área bem distinta desta: a do jornalismo. Mas esse é um outro filme...
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