Diz o povo que “uma mentira, muitas vezes repetida, se torna verdade” e os homens da propaganda, ou melhor, da “comunicação” como agora é de bom tom dizer-se, sabem-no ainda melhor e tratam de nos lavar o cérebro com grande eficácia. Os nossos telejornais e a maioria dos programas de debate e entrevista são autênticos manuais de manipulação pela palavra e pela imagem. E nós, cidadãos, que nos cuidemos, porque eles sabem muito bem tratar dos seus interesses e o que têm a fazer para chegar onde querem.
No livro “A palavra manipulada” (1997, trad. em 2002), Philippe Breton diz que a manipulação consiste no uso estratégico e deliberado da dissimulação, ou mesmo da mentira, para esconder, “para iludir, induzir em erro, fazer crer no que é falso” (p.29). Afirma ainda que a manipulação usa a palavra não para argumentar ou dialogar, mas para a impor. Para “entrar por arrombamento no espírito de alguém, para nele implantar uma opinião ou suscitar um comportamento sem que a vítima se aperceba da invasão” (p.30). Em suma, é “uma acção violenta e compulsória que priva de liberdade quem lhe é submetido” (p.27).
O homem partilha com outros animais e com as máquinas, em diferentes graus de profundidade e elaboração, a capacidade de usar a linguagem para informar e ser informado e para exprimir emoções e sentimentos. O que nos distingue claramente é a possibilidade de pôr a palavra ao serviço da convicção e de a usarmos para exprimir opiniões, planos, hipóteses e de, através dela, intervirmos no mundo à nossa volta. Como afirma Philippe Breton “O humano é um ser de convicções animado do desejo de convencer” (p. 34). E é aqui que tudo se complexifica pois “O homem atribui um sentido a tudo. Não pode libertar-se da contínua produção de sentidos que caracteriza a sua palavra” (p.37). Com o tempo, esta tornou-se, pois, “fracamente informativa e fortemente argumentativa” (pp.37/38).
Foram os gregos que introduziram no Ocidente a ideia da democracia (a governação no plural) e nela institucionalizaram a palavra como “arte de convencer”, como um instrumento de poder, ao serviço do poder e, até, como base do próprio “nexo social” (p.40). Tecnicizaram-na e instituíram-na como alternativa à conquista do poder através da violência física, mas estavam bem cientes de que, ao fazê-lo, transferiam simbolicamente essa mesma violência para o âmago da própria palavra e do espaço público onde ela actuava: “Os demagogos, os manipuladores, os magos da palavra” (p. 41) podiam agora invadir o espaço público com os seus discursos. Por isso, desde logo, cuidaram também de se defender contra tais perigos, criando “o processo de ostracismo” (Clístenes, 487 a C). Este constituía um “instrumento de defesa em relação a personagens que se tornassem excessivamente influentes e cuja palavra viesse por isso a pesar mais que a de outros cidadãos, desequilibrando gravemente, desse modo, o funcionamento do espaço público” (p.41). Quem o fizesse via os seus direito cívicos suspensos durante dez anos, mas isso não era visto como uma punição, apenas como uma prevenção, e era até uma homenagem: o orador sabia assim que era o melhor de todos.
Foram depois os romanos que vieram a operar aquilo que Breton aponta como um “formidável retrocesso” ao instituírem regimes ditatoriais (governo de um só), como os de Tibério, Calígula, Nero e Domiciano. Estes “fizeram cair o peso da sua mão de ferro sobre cidadãos habituados ao longo de muitas gerações a discutir em conjunto o seu destino comum” (p. 42). Por causa disso, a eloquência começou então a ser exercida, já não no Fórum, mas num outro domínio: o da palavra escrita. Com o tempo, a escrita viria mesmo a tomar a primazia sobre a oralidade e, com as instituições democráticas (sobretudo o Fórum) esvaziadas de conteúdo a palavra tomou novos rumos: tornou-se ambígua, lisonjeira, calculada, oblíqua, até mesmo delatora. Todavia, esqueceram-se de criar o seu próprio antídoto, como os gregos o haviam feito.
Em suma, a palavra assumiu então um estatuto novo: o de manipuladora. Foram, pois, os romanos que inventaram “as formas da propaganda moderna como sucedâneas daquela palavra democrática que desaparecera nos factos, mas não na memória e no imaginário” (p. 44) e foram também eles que, ao criarem o chamado “culto do imperador”, utilizaram pela primeira vez a informação como meio de propaganda. Isto permitiu-lhes, em muitas ocasiões, substituir a repressão física pela “violência simbólica exercida por via da palavra e das suas manipulações” (p. 45), ou seja, pela pressão psicológica.
Desde a Grécia antiga que a palavra está “inscrita na memória colectiva como referência incontornável” (p. 43) e a identificação do seu exercício com a democracia permaneceu tão fortemente entranhada na nossa cultura que, sempre que a liberdade de expressão é posta em causa, logo se considera que é a própria “democracia que fica ameaçada como sistema político” (p.41). E também a própria vontade de convencer através da palavra, recorrendo até, se necessário, à manipulação (introduzida pelos romanos), não mais nos abandonaria.
O século XX tornou-se no palco onde se de/confrontaram, através da palavra, as grandes ideologias e visões do mundo surgidas no século XIX: fascismo/nazismo vs. democracia; socialismo vs. capitalismo; humanismo vs. racismo; estado social vs. estado liberal, etc. De início, o confronto circunscreveu-se sobretudo ao mundo ocidental mas depois, com a globalização, alcançou um nível planetário. Segundo Breton, o mundo contemporâneo divide-se agora em dois: “o dos que têm uma causa a defender e que tudo movem para convencer e o dos que – sem que, no entanto, deixem de ter opiniões – constituem um público a ganhar.” (p. 47). Para o autor, o “fim da guerra-fria não trouxe, como ainda há quem pretenda, o fim dos confrontos de ideias em grande escala. As paradas mudam de natureza”, mas não deixam por isso de mobilizar de forma dinâmica e eficaz “a palavra de convencimento” (p. 51).
A manipulação da palavra recorre, assim, desde sempre, a duas técnicas essenciais: a desinformação e a propaganda.
A desinformação ou contra-informação é “uma acção que consiste em levar um receptor, que deliberadamente se pretende enganar, a tomar por válida uma certa descrição da realidade, favorável ao emissor, fazendo-a passar por informação segura e verificada. Toda a habilidade técnica da desinformação reside, justamente, no mecanismo pelo qual uma informação falsa é mascarada de informação «verdadeira», perfeitamente crível e capaz de orientar a acção de quem a recebe (...) É, pois, um jogo com as aparências, que exige uma segura compreensão do que é uma informação verdadeira – pelo menos, aos olhos do auditório.” (p. 71). Relembro, a título de exemplo, as imagens das pretensas armas de destruição maciça, apresentadas pelos americanos em 2001, e que justificaram a invasão do Iraque de diversos países, mas que ninguém encontrou.
Já a propaganda é um caso diferente. Começou por ser encarada pelos próprios regimes democráticos como positiva e foi utilizada, por exemplo, para levantar o moral das tropas aliadas durante a II Guerra Mundial ou para difundir junto dos cidadãos as ideias e os ideais de um determinado partido político. Por ter sido muitas vezes usada ao serviço de causas negativas, como o nazismo por exemplo, a palavra foi ganhando gradualmente um sentido pejorativo, sobretudo quando associada à política. E recorre hoje, com frequência, às técnicas agressivas da publicidade para ser ainda mais eficaz. A propaganda é, na sua essência, um método específico de conquista de consenso (p.77), ou seja, “de apresentação e difusão de uma opinião de tal maneira que o seu receptor suponha estar de acordo com ele e se encontre, ao mesmo tempo, incapaz de outra opção acerca desse assunto” (p.78). Mais subtil e, portanto, mais perigosa do que a anterior, já que o seu objectivo é, “na verdade, suprimir a possibilidade de escolha que está na base da democracia.” (p.77).
O curioso é que, ao longo do séc. XX, não só as técnicas de manipulação foram evoluindo, mas também o público: da “idade das massas” (e de uma política mobilizadora de massas), e de uma certa irracionalidade que lhe está forçosamente associada, para um público mais escolarizado, mais informado, com acesso facilitado a vários meios de informação (consequência da globalização), mais individualista e movido por interesses pessoais. Também por causa da publicidade e dos seus excessos, este público se foi tornando menos maleável e ganhou resistência a algumas das técnicas mais habituais – e eficazes – de propaganda. Obrigou, por isso, ao recurso a novas técnicas, sobretudo de persuasão-sedução, que passam muito pela manipulação dos afectos, pela manipulação cognitiva do conteúdo da mensagem, ou até pelas duas em simultâneo.
Alie-se isto à cada vez maior concentração dos vários meios de comunicação social nas mãos de um ou dois grandes e poderosos grupos económicos e temos montado o “estado da arte” da manipulação nos nossos dias.
Sabemos de onde vem a manipulação, e sabemos que os homens, na sua sede de poder estão dispostos a tudo, por isso nunca poderemos ter certezas sobre quais os limites que não serão ultrapassados. Cabe por isso a cada um de nós estar atento para, pelo menos, não cair nas petas todas que nos querem impor, com a consciência de que a desinformação e, sobretudo, a propaganda andarão sempre um passo à nossa frente.
Até porque uma parte muito substancial da comunicação a que estamos sujeitos diariamente só tem um sentido, como relembra António Gedeão, com fina ironia, no seu “Poema dos homens distantes”:
Ligo a televisão e sento-me a comer.
Mastigo.Mastigo devagar. Sem pressas.
E, enquanto mastigo, vou seguindo
as imagens autênticas dos homens
a duas dimensões.
(Com mais uma tornavam-se palpáveis.
Com mais outra seriam seres humanos).
Aprecio-lhes o rosto, os gestos, os olhares,
e é mesmo como se estivessem vivos,
ali, dentro de casa,
o alcance das mãos.
São autênticos, mas se me apetecer viro-lhes a cara
e eles não reparam.
Baixo-lhes a voz, elevo-a, ou mudo de canal,
mas se volar ao mesmo eles lá estão
na mesma compostura, sem darem p'la mudança.
Falo com as imagens. Em apartes
digo o que penso deles,
e eles, que estão ali, fitando-me, falando-me,
não me vêem, não me ouvem, nem sabem que eu existo.
É assim a vida.
Olhamo-nos sem nos vermos.
Entretanto mastigo.
Há os altos e os baixos, há os gordos e os magros,
há os que têm barbas os que não têm barbas,
há os que têm óculos e os que não têm óculos,
mas o que todos têm de comum
é a segurança, a firmeza, a convicção
e o desejo de contribuirem para a minha felicidade.
Eles não me vêem nem me conhecem
mas tudo se passa como se estivessem a pensar em mim,
porque eles querem tornar-nos a todos felizes,
e eu sou um deles,
e com isso me sobressalto enquanto mastigo.
Recordo-me
(disseram-me em criança)
que é um dever amarmo-nos uns aos outros.
Eles a mim e eu a eles.
E eu estou perfeitamente de acordo.
Porque não?
Se não passam por mim por que não hei-de amá-los?
In Novos Poemas Póstumos
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