Em 1969, o editor italiano Franco Ricci decidiu fazer uma edição facsimilada do magnífico baralho de cartas de tarot do séc. XV, iluminadas por Bonifácio Bembo, e que pertenceu aos duques de Milão: o chamado baralho Visconti.
(imagem do sítio http://www.internetculturale.it/)
Algumas das cartas - o Diabo e a Torre - perderam-se e as restantes pertencem em parte à Accademia Carrara de Bergamo e à Morgan Library de Nova Iorque. Italo Calvino foi convidado a escrever um texto que acompanhasse as reproduções e decidiu usar as próprias cartas como "motor narrativo" e combinatório. Como ele próprio explica na Introdução: "Apliquei-me sobretudo a observar as cartas de tarot com atenção, com olhos de quem não sabe o que sejam, e a extrair delas sugestões e associações, a interpretá-las de acordo com uma iconologia imaginária. Quando as cartas alinhadas ao acaso me davam uma história em que eu reconhecia um sentido, punha-me a escrevê-la." Foi assim que redigiu "O Castelo dos Destinos Cruzados"., composto por um total de sete pequenas narrativas interligadas. No final tinha a seguinte conjugação de cartas e narrativas:
(imagem do sítio http://www.internetculturale.it/)
O texto foi recebido com grande interesse, quer pela crítica literária, quer pelos próprios estudiosos da cartomância. De tal forma que se decidiu a publicá-lo autonomamente - o que veio a acontecer em 1973 - e escreveu até um segundo conjunto de histórias breves e todas interligadas, a que atribuiu o título de "A Taberna dos Destinos Cruzados". Neste segundo conjunto de textos recorreu a um tarot diferente - o de Marselha -, criado no séc. XVIII e, hoje em dia, o mais conhecido e utilizado.
Não foi contudo uma tarefa fácil: "Assim passei dias e dias a desfazer e a recompor o meu puzzle, inventava novas regras do jogo, traçava centenas de esquemas, em quadrado, em losango, em estrela, mas havia sempre cartas essenciais que ficavam de fora enquanto acabavam por entrar cartas supérfluas, e os esquemas tornavam-se tão complicados (...) que eu próprio me perdia lá dentro."
Mais à frente, Calvino acrescenta até que "Por diversas vezes, com intervalos mais ou menos longos, nestes últimos anos, fui penetrando neste labirinto que logo me absorvia completamente. Estaria a enlouquecer? Seria a maligna influência destas figuras misteriosas que não se deixavam manipular impunemente? Ou era a vertigem dos grandes números que emana de todas as operações combinatórias?"
Várias vezes abandonou este fascinante e cansativo trabalho durante períodos de tempo mais ou menos longos, mas voltava sempre às cartas e aos esquemas combinatórios. Por fim, quase se tornou uma obsessão: "Certas noites acordava para ir a correr assinalar alguma correcção decisiva, que depois arrastava consigo uma infindável cadeia de alterações. outras noites deitava-me com a consolação de ter achado a fórmula perfeita; e de manhã ao levantar-me rasgava-a."
Ainda chegou a pensar num terceiro conjunto de textos que organizaria sob o título de "O Motel dos Destinos Cruzados", mas não passou da sua formulação ideal. Concluiu que: "O meu interesse teórico e expressivo por este tipo de experiências esgotou-se. É tempo (de todos os pontos de vista) de passar para outra coisa."
Tinha formado um quadrado com as 78 cartas que constituem o baralho do tarot de Marselha e com todas as histórias dispostas e interligadas. Feito, no mínimo, extraordinário.
Tudo se inicia com a descrição de um castelo misterioso no meio de um bosque denso e com um conjunto de personagens diversas (cavaleiros, damas, comitivas reais ou simples viajantes) que, surpreendidas pela noite, procuram refúgio no castelo. O espaço é requintado e o castelão oferece um lauto banquete aos seus hóspedes fortuitos numa ampla e requintada sala, onde todos se sentam "em volta de uma távola iluminada por candelabros". (p. 17) Contudo, o narrador estranha o silêncio que reina na sala. De facto, "Quando algum dos convivas queria pedir ao vizinho que lhe passasse o sal ou o gengibre, fazia-o com um gesto, e era igualmente por gestos que se dirigia aos criados para lhe trincharem uma fatia de faisão ou lhe deitarem meia pinta de vinho." (p. 19) Percebe depois que todos estão sob o efeito de um estranho feitiço que os impede de usar a palavra.
Quando o silêncio já se tinha tornado incómodo, o castelão pousa no centro da mesa um baralho de cartas de tarot. Depois de alguns instantes de hesitação, "Um dos comensais puxou para si as cartas dispersas, deixando livre uma boa parte da mesa; mas não as juntou nem baralhou; tirou uma carta e pousou-a à sua frente. Todos notámos a semelhança entre o seu rosto e o da figura, e julgámos compreender que com aquela carta ele queria dizer «eu» e se preparava para contar a sua história." (p. 20) É nem mais nem menos que o Cavaleiro de Copas. Curiosamente, ou talvez não, é ele que abre a primeira narrativa de cada um dos dois textos que constituem o livro.
Uma das histórias contadas em "A Taberna dos Destinos Cruzados" é a "História do Indeciso", ou do "homem que não escolhe" e que, por isso, sofrerá as devidas consequências. Na vida, como nos livros, cada decisão tomada é como uma carta que se retira do baralho e nos transporta para a fase seguinte. Cada decisão evitada ou adiada também. Tudo, na vida e no tarot, tem con-sequências. São histórias que falam, não apenas de uma outra forma de escrever literatura, mas sobretudo de uma outra literatura, distinta daquela que nos dá um murro no estômago ou na cabeça e que às vezes nos deixa agoniados.
É claro que ambas têm o seu lugar e o seu tempo próprios, ambas são relevantes, embora cumpram objectivos distintos. E ambas couberam perfeitamente na sessão de apresentação de livros que hoje - Dia Mundial do Livro e da Leitura - fizemos aqui na escola. O meu colega Luís apresentou "A estrada" de Cormac Mccarthy e eu decidi apresentar "O Castelo dos Destinos Cruzados" de Italo Calvino, publicado pela Teorema no passado mês de Janeiro.
Sem que tivesse havido qualquer combinação prévia, acabámos por conseguir exactamente o que se pretendia com tal sessão. Foi um feliz encontro de livros e de histórias na encruzilhada do passado, com o presente e com as visões do futuro. Terão as cartas ditado tal sorte?
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