No passado mês de Janeiro, Vítor Belanciano, Vanessa Rato, Mário Lopes, entre outros, fizeram no Ipsilon (Público, 8/1/2010), uma óptima síntese sobre a primeira década do novo século, para dizerem que estamos “Perdidos. Na imensidão do espaço digital. No excesso de informação. Na proliferação de suportes, de maneiras de ouvir, ver, ler. Em todo o lado, a toda a hora, procurando, com ansiedade, a qualidade na quantidade.
Foi assim que vivemos a primeira década do séc. XXI. Foram dez anos em que as condições de produção, existência, partilha e distribuição da música, do cinema, da literatura ou das artes, plásticas e performativas, se alteraram profundamente. Foram dez anos esquizofrénicos em que as actividades culturais se confrontaram com uma espécie de esvaziamento, mas em simultâneo foram vistas como veículo de desenvolvimento económico, servindo para imaginar soluções para o crescimento sustentável. (…)
Quem continuou a usar velhas grelhas de leitura para pensar o que se passou na música, no cinema ou nas artes, saiu dessa análise confundido, sugerindo que nada de expressivo aconteceu, não porque nada tivesse sucedido realmente, mas porque o que se passou se manifestou de maneira diversa, a um nível micro, de forma rápida, disseminada, sem que muitas vezes chegasse a formar um todo coerente. (…)
Para “Quem tentou perceber procedimentos em aberto, não receando a desarrumação e as contradições que se apresentam à sua frente (…) Nunca aconteceu tanto em tão pouco tempo.” (sublinhado meu):
Até aqui, quem queria ser artista tinha que ser, primeiro, um criativo e, depois, ter acesso “aos meios de produção, distribuição e legitimação. Agora, o MySpace, o YouTube, os blogues, o Facebook e outras redes sociais transformaram os consumidores em criadores cuja “produção espontânea pode convergir directamente para o espaço virtual. (..) Nunca a fantasia do “faça-você-mesmo” pareceu tão real...” A internet, mas sobretudo a blogosfera tornaram-se também espaços preferenciais para a divulgação de música, filmes, livros e respectivos autores e criadores. Consequentemente: as empresas diminuiram, e muito, o investimento financeiro em publicidade na imprensa e nos meios de comunicação social; as publicações especializadas e os suplementos literários, bem como os “críticos literários encartados” estão em vias de extinção. Também aqui a sobrevivência está online.
Mas “Ao contrário do que muitos esperavam, a net não trouxe verdadeira democratização comunitária, antes uma democracia individualista. Cada um define o seu percurso na rede, recolhendo informação, saltando de meta ligação em meta ligação. Ninguém quer líderes ou pregadores”, embora continuemos “fascinados com figuras da dimensão icónica” de um John Lennon ou de um Joe Strummer. Esta “multiplicidade de escolhas” permitiu “mais diversidade e inovação. Mas as audiências também são mais segmentadas e estilhaçadas. Daqui resulta uma cultura de inúmeros pequenos cultos, que não se intersecta entre si, dispersa por infindáveis pequenos nichos.”
Na década de 60 Andy Warhol afirmou que “No futuro todos serão famosos por 15 minutos”. A máxima mantém-se pertinente e, ao longo desta década, foi mesmo ampliada pela afirmação de Momus em 91: “No futuro todos seremos famosos para 15 pessoas”. “A nova (des)ordem digital” não significou o fim das grandes estrelas planetárias que movimentam “cifras macroeconómicas” mas gerou novos ícones: “Mais humanos. Mais próximos de nós. Verdadeiros criadores e não figuras desenhadas a régua e esquadro (…) comunicando de facto para imensas minorias”.
Os dias que vivemos permitem-nos mergulhar 24/7 em filmes, música ou livros, “passíveis de serem experienciados onde e quando nos apetece – às vezes, mesmo quando não queremos. Essa imersão contínua tanto pode estimular como banalizar a experiência.”. Talvez tenha sido por isso que os grandes espectáculos ao vivo se tornaram tão importantes ao longo da década: eles assumiram-se como forma de reacção a esse “consumo indiferenciado e individual”, constituindo uma “experiência social” irrepetível que reafirma o prazer de ver, ouvir e sentir “em comunidade”.
As grandes metrópoles da criação – Nova Iorque, Paris, Berlim ou Londres – continuam “a servir de farol para perceber o que de mais importante se passou na música, no cinema ou nas artes. Mas da China ao Brasil, da Índia a África, depende-se cada vez menos desses centros de legitimação.”. Grandes mudanças como esta geram insegurança e também nostalgia “dos dias em que parecia existir uma espécie de unidade cultural, produtora de um sentido, em que todos se reflectiam um pouco” - criadores, público, até mesmo a grande indústria cultural. “Mas esses dias, é quase certo, não vão regressar.”
A nossa própria noção de História mudou ao longo destes dez anos: “Até agora o acesso ao passado era parcial, não cumulativo. Com a internet, talvez pela primeira vez na História, temos a sensação de poder aceder a todas as obras, de diferentes épocas, num ápice. Não admira que subsista uma impressão em que passado, presente e futuro se sucedem, não apenas um atrás do outro, mas todos ao mesmo tempo, conectando-se entre si, permeáveis.” Em vez de um “percurso preciso e contínuo, passámos a ter regressos, anacronismos, descontinuidades, recuperações e convivências.”
“É natural que aqueles que não sabem guiar-se na desordem se sintam desnorteados e acabem por regressar ao que sempre conheceram ou aos valores perenes – talvez por isso, esta foi também a década em que a memória foi mais celebrada, seja ela personificada pelos Beatles, por António Variações (Os Humanos) ou por Andy Warhol.”
Que poderemos então concluir?
Que vivemos no “contexto (...) de um mundo que se confronta com a circulação infinita de informação, onde há partilha e recriação generalizada do conhecimento.”
Que a internet é um “não tempo contínuo, espécie de super-consciência extática, onde o Big Bang está constantemente a criar o universo, hoje.”
Que, apesar do seu crescimento quase brutal, a internet “ainda é terreno de ambivalências, celebrada como abertura para novas possibilidades, mas também temida por constituir um sinal do fim da criatividade como a conhecíamos.”
Que “independentemente das tecnologias, o que interessa é a maneira como as artes e a cultura asseguram alguma forma de compromisso com a vida, reflectindo, ampliando e até antecipando o que acontece à nossa volta, num período histórico de grande experimentação política, económica e social.”
Sobretudo que o mundo agora global, “e com ele o mundo da cultura, está mais estimulante, do que há dez anos” pois fez nascer “uma nova forma de estar e pensar (…) sincrónica, em vez de diacrónica, viral, não-linear – um universo de contemporaneidade absoluta, de facto. Tão absoluta que se tornou categoria, em si.”
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