Nos idos de 1990, Arnaldo Saraiva, então cronista do Público, numa rubrica initulada “Mutatis Mutandis”, escrevia assim:
“O que se tem passado, o que está a passar-se com o Acordo Ortográfico não dará para uma telenovela, mas dá certamente para um romance de série negra, e para uma longa história da burrice dos povos “irmãos”.
Irmãos? Talvez, mas frequentemente de pé atrás, e nalguns casos desavindos. E curiosamente a língua, e em particular a ortografia, tem sido, desde há mais de um século, um dos mais fortes motivos de tensão, discórdia e “guerra” entre portugueses e brasileiros. Pelo que se justificaria que disséssemos de Portugal o que Bernard Shaw disse da Inglaterra e dos Estados Unidos: “são dois países separados pela mesma língua”.
E não adianta escamotear a verdade: as “guerras” começaram porque os portugueses não aceitaram como naturais as diferenças que foram surgindo no português do Brasil. E juntando os complexos de colonizadores, quando o Brasil já era um país independente, aos complexos de superioridade falante ou escrevente, condenavam e riam-se de supostos “barbarismos”, sem querer saber das condições de existência do português no Brasil (para mais em contacto com línguas indígenas e africanas e, ainda no séc. XIX, com outras línguas europeias além do castelhano), e sem se preocuparem com uma política da língua para um país em que começavam a escassear jesuítas e missionários que, ao longo de três séculos, tinham sabido preservar a espantosa unidade do português americano.
Levados por um nacionalismo ressentido e primário, como é frequentemente o nacionalismo, até alguns brasileiros cultos passaram a defender a ideia de uma “independência” linguística que garantisse a outra; na década de 20 (...) muitos eram os brasileiros que se reviam na fórmula de Monteiro Lobato: “povos diferentes, língua diferente, literatura diferente”.
Nessa altura já ia alta a polémica ortográfica, e já se multiplicavam os erros culturais e diplomáticos de portugueses e brasileiros, não só na esfera linguística. Perante a anarquia ortográfica que reinava em Portugal e no Brasil nos inícios do século (...) e perante o desinteresse ou a inoperância da Academia de Ciências de Lisboa, a quem competiria oficialmente zelar pela língua (o que nunca fez bem), os brasileiros avançaram unilateralmente em 1907 com uma reforma, a que os portugueses unilateralmente respondeiam em 1911. Quando depois quiseram acertar agulhas, foi o que se viu e está a ver: ou não houve acordo ou houve acordos que não foram postos em prática.
Pelo que se está a passar com o Acordo Ortográfico em 1990, concluiremos que os portugueses e os brasileiros não aprenderam nada com os erros que coeteram em 1907, 1911, 1912, 1915, 1929, 1931, 1945, 1971, 1975, 1986 (mas quem é que se deu ao trabalho de estudar a história desses acordos ou desarcordos?); e parece que toda a gente é competente em matéria de teoria ortográfica, só poque sabe falar e escrever, quando sabe.
A língua é, evidentemente, um problema de todos os que a usam; mas nem todos são competentes para falar dela e para ver com clareza as linhas em que ela se move, ou pode mover. (...)”
Estamos em 2010 e continuamos às voltas com este Novo Acordo Ortográfico de 1990, o qual deveria ter entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1994, mas não foi ratificado a tempo pelos países implicados. Em 2004, numa reunião da CPLP realizada em S. Tomé foi aprovado por unanimidade um protocolo modificativo que previa a entrada em vigor do dito Acordo em Janeiro de 2009, desde que ratificação por três países (e já não sete como antes), bem como um período de transição até 2012.
Nesta questão do Acordo Ortográfico, Portugal tem revelado uma incompetência difícil de superar: os critérios de constituição das equipas negociadoras do acordo e a escolha dos especialistas que as integraram são um mistério (ou talvez não); a discussão e divulgação públicas não foram devidamente preparadas e permitiu-se que a imprensa entrasse em “roda livre” sobre uma matéria que já se sabia ser “melindrosa” (até pelo já longo século de episódios e polémicos à volta deste assunto); continuamos sem certezas quanto à aplicação do Acordo em Portugal e, sobretudo, não sabemos como se vai processar a sua entrada no ensino (o que é, no mínimo, surpreendente)...
Mas não se fica por aqui a nossa incompetência, passividade e indiferença pela língua que alguns, pomposamente e quando lhes convém, dizem ser a “sua pátria”. Permitimos que os brasileiros tomassem a dianteira em tudo o que à Língua Portuguesa diz respeito: como recordava Arnaldo Saraiva nesta sua crónica, “são eles os autores das melhores gramáticas, dos melhores dicionários, das melhores histórias da língua; foram eles que se anteciparam na uniformização da nomenclatura gramatical e, recentemente, na proposta do possível acordo” e são eles ainda quem mais traduz para português obras de todas as áreas do conhecimento.
Permitimos ainda que os brasileiros dessem as cartas todas no ensino do português a estrangeiros, sobretudo no que se refere aos países africanos de expressão portuguesa. Eles é que ensinam o português aos chineses, aos americanos, aos russos, aos alemães e a todos os que escolhem ir viver e trabalhar para Angola e Moçambique. Nem é preciso perguntar ao milionário americano Greg Carr - que está a reabilitar o Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique - com quem é que ele aprendeu a falar português, basta ouvi-lo.
Finalmente, permitimos que fossem os brasileiros a criar, em 2004, o primeiro e único Museu da Língua Portuguesa existente no mundo. E onde? Em S. Paulo, claro. Seria de esperar que uma instituição desta natureza estivesse situada no país de origem da língua – Portugal -, mas português que se preze e o queira visitar terá que atravessar o Atlântico para o poder fazer. Por cá, mais ou menos por esta altura, gastavam-se milhões... em dez novos estádios de futebol para acolher o Euro 2004 (nem me dou ao trabalho de comentar). E tudo isto contra a nossa vontade? Não! Perante a nossa passividade!
E agora queremos o quê? Contestar o Acordo? Dizer que, afinal, não era bem assim? Andar à volta desta questão durante mais um século? Não seria já altura para termos mas era juízo e encararmos de frente as consequências das nossas acções e, sobretudo neste caso, das nossas omissões?
E agora queremos o quê? Contestar o Acordo? Dizer que, afinal, não era bem assim? Andar à volta desta questão durante mais um século? Não seria já altura para termos mas era juízo e encararmos de frente as consequências das nossas acções e, sobretudo neste caso, das nossas omissões?
Aqui ficam as imagens possíveis do tal Museu da Língua que é "a nossa pátria", mas que se situa no Brasil, claro! (coisas destas, por cá e ao que parece, não fazem falta):
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