domingo, 28 de novembro de 2010

Um halo de limpa solidão bem no meio da rua

A D. Alice vive numa daquelas ruas sem história do centro histórico eborense. Uma rua tão anónima que permanece até hoje ignorada pelos guias turísticos e, tanto quanto sei, pela própria literatura toponímica que, com o beneplácito da classificação da cidade como “património da humanidade", tem sido publicada nestes últimos tempos. Veio morar para Évora numa tentativa de escapar à pobreza rural em que nasceu há já muitos anos. Aqui, entre outras tarefas, trabalhou nas limpezas durante a maior parte da vida. E tanto se empenhou nessa actividade que, a partir de certa altura, passou a viver para limpar.  Libertada primeiro por uma viuvez precoce, e depois pela reforma, dos horários e obrigações domésticas como compras, refeições, roupas, saídas ou visitas familiares a D. Alice ficou, de facto, disponível para limpar a casa de forma metódica e ininterrupta. A tal ponto que, com o passar dos anos, deixou até de cozinhar por ver nessa tarefa não só uma perda de tempo útil para as suas limpezas, mas sobretudo uma fonte de contaminação da casa. Para manter os níveis quase absolutos de higiene e arrumação viu-se também forçada a encontrar uma estratégia que lhe permitisse manter relações de convívio com a vizinhança mas garantisse, ao mesmo tempo, que ninguém  lhe entrava em casa para "sujar" o que ela limpava com tanto desvelo.

A lavagem da porta de entrada foi, desde sempre, a sua maior obsessão e a D. Alice aproveitou astutamente os seus padrões de exigência asséptica -  ou apenas a vontade de manter o epíteto de “porta mais lavada da zona, se calhar até da própria cidade e arredores” , como diziam  alguns passantes de forma irónica -, para comunicar com a vizinhança, sem chamar muito a atenção para a sua peculiar personalidade. Assim, enquanto ia lavando e esfregando o portado de mármore, às vezes durante horas seguidas, podia estar na rua para acompanhar em tempo real as idas e vindas dos vizinhos e interpelá-los de forma mais ou menos descarada para saber as últimas novidades da vida de cada um. E tão ocupada se manteve ao longo do tempo com essas duas actividades simultâneas - limpeza e coscuvilhice - que talvez nunca se tenha apercebido da perfeita inutilidade de tão árdua tarefa e da solidão que, com ela, estava a construir. 

Tal como todos os outros moradores da rua habituei-me, desde sempre, a entrar ou sair de casa sob o seu olhar perscrutador: dobrada, não interrompia a escovagem das pedras da calçada fronteira à porta senão quando avistava alguém que lhe despertasse verdadeiro interesse. Geralmente, este era proporcional ao número de novidades transmitidas. Julgo até que na cabeça da D. Alice sempre existiu uma espécie de hierarquia social que posicionava as pessoas conforme a quantidade e a qualidade das informações que lhe forneciam diariamente. Quem, enfastiado por aquela omnipresença, se limitava a dizer-lhe um seco “bom dia” e a seguir caminho apressado antes que ela tivesse tempo de disparar alguma pergunta inconveniente era ostensivamente proscrito da sua simpatia, quando não alvo da sua maledicência. Mesmo quando se ocupava das tarefas no interior da casa, D. Alice fazia questão de, ao mínimo sinal de movimento na rua, vir agitar freneticamente a bandeirola laranja do seu pano de pó, sinal inequívoco de que, mesmo ausente, se mantinha atenta às nossas actividades, por mais insignificantes que fossem. Ao longo dos anos, em consequência da vigilância cerrada sobre a vida alheia e das conversas cruzadas que foi alimentando com todos os transeuntes e habitantes das ruas vizinhas, arranjou um sem número de mexericos, intrigas e inimizades. Havia até quem a cumprimentasse apenas por receio das consequências da sua língua viperina.

A sua obsessão com a limpeza imaculada da porta foi sempre aumentando e alcançou níveis paroxísticos que tornaram a sua figura irritante, quase insuportável até. Muitos dos que antes a temiam – ou melhor, temiam a sua língua – acabaram mesmo por deixar de lhe falar e, à medida que foi perdendo interlocutores, foi-se esboroando também a barreira do respeito, ou do pudor, que ainda impedia alguns de comentar de forma jocosa aquele incessante labor higiénico em que ocupava já a maior parte do dia, em franco contraste com a "sujidade" da sua má-língua, praticada de forma contumaz e sem qualquer resquício de arrependimento. Até a família foi espaçando as visitas, devido ao óbvio incómodo que a D. Alice manifestava por ter que interromper a exigente rotina diária de limpeza para atender os visitantes e por ter depois que re-limpar tudo – com especial incidência no degrau da porta. Era como se as pessoas lhe conspurcassem a casa de tal forma que uma visita de apenas meia hora representava, pelo menos, um dia de trabalho sistemático e intensivo.

Com o decorrer dos anos, a sua coluna vertebral foi sofrendo como que uma adaptação “natural” à situação de estar dobrada quase permanentemente e, por isso, ela caminha hoje dobrada e com a cabeça ao nível dos joelhos. Embora fragilizada pela idade e pela doença, nada a impede de, pelo menos duas vezes por dia, cumprir o seu ritual diário de lavagem minuciosa do portado e das próprias pedras da calçada em frente da porta. Se juntarmos a isto a rigorosa manutenção da limpeza doméstica, julgo que a D. Alice apenas pára para dormir algumas horas por noite. E com pontualidade de relógio suíço, às sete da manhã, domingos e feriados incluídos, é invariavelmente o som áspero da sua vassoura de piaçaba que ecoa na rua e acorda de forma impiedosa a vizinhança. Quando todos ainda dormem, às vezes debaixo de frio intenso, tão dobrada que o cabo da vassoura a ultrapassa em altura a meio das costas, D. Alice varre sem parar até que dê por escoada toda a água entretanto vertida a baldes sobre a calçada. 

Vista assim, ao longe e de perfil, dobrada e como que trespassada pelo cabo de madeira em que se apoia, D. Alice  parece ter acabado por se transformar numa vassoura humana. Mas é esta a sua forma de garantir que, logo pela manhã, os primeiros a passar pela rua verificarão mais uma vez como aquela é, sem qualquer dúvida, a porta mais limpa das redondezas. Situação confirmada até por uma coloração distinta da calçada, uma espécie de halo semicircular que irradia da porta, fruto da lavagem, escovagem e lixiviação permanentes. É uma espécie de fronteira que separa dois mundos: o nosso e o da D. Alice que, de tanto ser esterilizado contra germes e bactérias, acabou por se tornar também ele estéril de pessoas e de afectos. Até os cães da vizinhança evitam marcar aquela espécie de terra-de-ninguém dos odores como se, instintivamente, percebessem a futilidade de tal acção. É, afinal, um halo de limpa solidão bem no meio da rua.

E, no entanto, vive feliz a D. Alice, pois conseguiu da vida exactamente o que mais queria e precisava: a atenção dos outros. Obteve até mais do que aquilo que se atreveu a desejar, porque o espanto que vê brilhar nos olhos dos que a observam - sejam amigos, vizinhos, familiares ou apenas gente que passa - é para ela a maior e melhor das recompensas, embora, onde ela veja admiração deslumbrada, não haja mais do que espanto e estranheza. É essa, talvez, a alavanca que a faz continuar, aos oitenta e muitos anos de idade, a levantar-se todos os dias de madrugada para lavar a porta. E é essa, certamente, a sua razão de viver.
Mas quando um dia, inevitavelmente, o som áspero da vassoura de piaçaba deixar de assinalar o começo da manhã, todos nós sentiremos a sua falta, apesar de tudo. Nesse dia, terá terminado a história de toda uma vida sem história (e a maior parte da minha também).

2 comentários:

platero disse...

texto verdadeiramente antológico

assentaria bem a qualquer escriba nacional.

só não és escritora porque não queres. mas se continuares com estes ritmo e qualidade não demora a teres material para submeteres a uma editora local (para começar)- estou a ver a LICORNE, antiga Casa-do-Sul.

tenho o contacto
Bom trabalho, beijo

FM disse...

Sobretudo escrevinhadora.
Bjo