domingo, 14 de novembro de 2010

Pedradas no charco dos dias (des)iguais

René Magritte, Castelo dos Pirinéus
1ª pedrada
Dizemos ou ouvimos dizer muitas vezes expressões sobre as quais às vezes nem sequer pensamos muito, que dizemos por dizer, só para dizer alguma coisa, mesmo que no fim aquilo que dizemos não signifique de facto nada ou, pelo menos, nada de muito relevante. Dizêmo-las, mas poderíamos dizer outra coisa qualquer, pois a maior parte das vezes nem sequer pensamos sobre isso. Uma dessas expressões é “fica para a próxima”. Assim à primeira, até parece uma coisa inócua, até mesmo optimista: implica a certeza de que há sempre uma próxima oportunidade para tudo. Mas será mesmo assim? Será que a vida nos dá uma “próxima” hipótese, em tudo igual à que acabámos de perder, para que a possamos enfim aproveitar? Haverá, de facto, uma “próxima” oportunidade para os sentimentos, as vivências, as oportunidades, as ideias, os projectos ou as pessoas que, pelas mais variadas razões, não soubemos, não pudemos, não quisemos ou não conseguimos aproveitar em devido tempo? Não me parece... mas, como me vão faltando as forças, sobretudo as da vontade, para lutar contra os moinhos de vento, seja: fica para a próxima!

2ª pedrada
As “Novas Cartas Portuguesas”, escritas em conjunto pelas três Marias – a Isabel Barreno, a Teresa Horta e a Velho da Costa – obra singular da nossa literatura que, por subverter todos os cânones literários e desafiar a imbecilidade moral instalada, foi proscrita logo após a publicação em 1972 e que, com o tempo, se veio a tornar também obra maldita, vai agora ser reeditada pela D. Quixote. Ontem como hoje é um livro de que se pode ter medo, especialmente quando se é homem. Aqui não há paninhos quentes, nem pruridos em ferir orgulhos de machos cheios de pseudo-superioridades de género (masculino, claro!). Este é um livro onde se escreve “Ó meu Portugal de machos a enganar a impotência, cobridores, garanhões, tão maus amantes, tão apressados na cama, só atentos a mostrar a picha” e a ver qual é o que a tem maior, como se isso fosse o mais relevante.

É um livro belo na sua violência linguística e na forma como esventra tudo aquilo que continua a existir porque sempre foi assim ou se fez assim. É um livro que assusta também porque as mulheres que nele escrevem não têm medo das palavras e usam-nas para dizer exactamente o que precisa ser dito para sacudir as consciências de forma violenta. É um livro que mete medo porque, justamente, não deixa “para a próxima”: ele diz agora mesmo tudo o que há para dizer, fazendo da palavra uma arma arremessada com precisão às cabeças bonitas e bem-pensantes das conveniências instaladas. É, para tudo dizer, uma livro-pedrada no charco.

3ª pedrada
Nick Cave pegou nos Bad Seeds, trocou o piano pela guitarra e formou os Grinderman que Warren Ellis (um dos elementos da banda) sintetizou como “homens adultos a criar intencionalmente uma zona de risco” (Ipsílon, 12/11/2010), ou seja, com Nick Cave a vociferar contra monstros e medos antigos “Well my baby calls me the Loch Ness Monster/Two great big humps and then I'm gone”, em “Worm tamer”, ou contra o lado obscuro da vida: “What's this husband of yours ever given to you? /Oprah Winfrey on a plasma screen”, em “Kitchenette”. É, segundo o próprio Ellis, um “stoner rock”, ou seja, uma pedrada de música alucinada no charco dos dias de uma banda já com um longo percurso e provas dadas. Cave regressa assim ao lado mais sombrio da sua música, que é também o mais arrepiadoramente belo.

Para mim, Nick Cave faz na música aquilo que as nossas "três Marias" fizeram com a (re)escrita das "Novas Cartas Portuguesas": tal como elas dá uma pedrada no charco agora, ou seja, não deixa ficar para a próxima.



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