quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A educação pública e a criatividade, ou a falta dela(s)

Ken Robinson anda pelo mundo inteiro a dar conferências sobre escola e criatividade, ou seja, sobre como a escola deve estimular a dita para educar melhor e obter melhores resultados. Veio agora a Portugal. Os seus argumentos assentam no trabalho que realizou há uma década atrás em Inglaterra – reuniu especialistas, escolas, professores e associações de pais para discutir a importância da criatividade no quotidiano das escolas –, o qual culminou com a publicação de um relatório final, o All Our Futures, mais conhecido como Robinson Report.

Sir Ken Robinson é sobretudo um comunicador brilhante, com um discurso que cativa até a plateia mais renitente. Os seus argumentos são também irrefutáveis, claro. Quem é que, actualmente, discorda da ideia de que a arte e a criatividade têm um papel importante na educação das crianças e jovens? O problema é passar da teoria à prática quando o sistema educativo é cada vez mais encarado, por quem decide as medidas políticas e económicas que se lhe aplicam, do mero ponto de vista da produtividade e da eficácia, que é como quem diz, do sucesso estatístico a todo o custo.

Mas há um argumento que Robinson não se cansa de repetir e que a mim, como professora, me levanta muitas dúvidas: diz ele que a escola mata a diversidade. Diz até que aceitamos hoje a diversidade em todo o lado - restaurantes, arquitectura ou música – mas que, na escola, continuamos a proceder a uma espécie de “normalização” castradora dessa mesma diversidade natural dos indivíduos. Pode até ser, mas o que eu também não duvido – até pela experiência que tenho na escola onde trabalho – é que a diversidade, se não mata a escola, mata pelo menos algumas coisas na escola. Desde logo pela diversidade de medidas tantas vezes avulsas, contraditórias (para não dizer absurdas) e quase inúteis que orientam o quotidiano da escola. Mas também pela diversidade de problemas insolúveis que nela desaguam, que afectam o seu funcionamento e que a escola, só por si, não consegue resolver: tremendos problemas familiares e pessoais, famílias desconjuntadas e disfuncionais, carências económicas, desajustamentos e dificuldades sócio-culturais de toda a ordem, complexos e graves problemas de saúde física e até mental, etc.

Tudo isto agravado e potenciado por um sistema de ensino todo ele orientado para metas de sucesso estatístico, como é o caso do nosso, em que todos anos os rankings - para mim a forma mais eficaz e barata de humilhar as escolas e os que nelas trabalham, incluindo os próprios alunos – inviabilizam de todo as tais criatividade e atenção à diversidade que implicam, claro está, atenção pessoal a cada um dos alunos, enquanto indivíduos. Isto foi possível na escola de outros tempos quando os alunos eram apenas os poucos que a podiam frequentar e que, por isso, se entregavam à aprendizagem de peito aberto.

Hoje isso ainda acontece nos bons colégios privados e nas mais prestigiadas universidades que só alguns podem pagar e a que só uma elite tem acesso. Na escola pública que pretende dar uma formação mínima ou básica a um máximo de alunos, não estou a ver como é que será possível fazer algo de semelhante, nem mesmo por decreto. No ensino público o que ainda vai valendo é a boa vontade e o profissionalismo de muitos professores que dão todos os dias o seu melhor, apesar de tudo. No mundo real do ensino público a criatividade é sobretudo uma possibilidade, ou talvez um sonho, que alguns conseguirão agarrar ou não, à semelhança de muitas outras coisas na vida: sucesso pessoal e profissional, dinheiro, reconhecimento, poder, etc. Na vida real da escola pública andamos todos a tentar que os alunos percebam que esses sonhos existem e que eles, com esforço, perseverança e motivação, os poderão vir a alcançar um dia, ou não. Se calhar não chega mas, nos dias conturbados que vivemos, se conseguirmos ao menos isso, já não será tão pouco assim.

No entanto, como exercício de reflexão, não deixa de ser interessante escutar Sir Ken Robinson. Talvez até escutá-lo sobretudo como exercício de imaginação, se ainda houver tal coisa nas nossas cabeças: