sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A cultura popular portuguesa já não é o que era

A definição de povo “enquanto sujeito da nação moderna” (p. 125) tem-se desenvolvido em torno de duas concepções distintas. Uma delas, associada aos ideais das Revoluções Francesa e Americana, considera que o povo são os cidadãos, ou seja, uma unidade política. A outra, oriunda do historicismo romântico do início do séc. XIX, considera que o povo é uma unidade cultural: a dos camponeses. Esta segunda concepção, de carácter etno-genealógico, esteve por detrás do surgimento de um grande número de nações europeias e, mesmo aquelas em que prevaleceu o modelo cívico-territorial, passaram por fases em que as ideias etnoculturais desempenharam um papel relevante.

Foi também a partir desta ideia de povo que o romantismo criou o conceito de cultura popular - por oposição à noção classicista de cultura erudita – estabelecendo entre ambas uma distinção moral. Assim, a cultura erudita surge associada às elites e é definida como sendo “artificial, cosmopolita e desnacionalizada” (p. 126), enquanto a cultura popular se assume sobretudo como campesina e, por isso também, “autêntica, nacional, antiga” (p. 126). Não deixa de ser curioso verificar que foi à volta deste conceito de cultura popular que os autores românticos desenvolveram todo um trabalho erudito de reflexão ensaística e de criação literária, sobretudo no campo da etnografia, da etnologia e da antropologia. Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Leite de Vasconcelos, entre outros, foram pioneiros no trabalho de recolha. Por sua vez, autores como Almeida Garrett ou Teixeira de Pascoaes destacaram-se na vertente criativa e evocativa.

Mas o modelo da “Kulturnation” de Meinecke também deu origem a um modelo de nação. E, por isso, o discurso político (sobretudo do Estado) se apropriou desde cedo deste conceito de cultura popular para o transformar num “modo etnográfico de discursar a nação” (p. 126), tanto à escala nacional como regional. A forma mais ou menos explícita como esse discurso político foi assumido foi variando ao longo do tempo. 

Esta visão político-etnográfica da cultura popular e da identidade nacional gerou, segundo João Leal, as grandes constantes em que se baseou toda a reflexão sobre a cultura popular europeia no séc. XIX e boa parte do séc. XX:
a) testemunho dos processos étnicos e espirituais da formação da nação;
b) forma de pensar a «alma nacional», a essência espiritual da nação;
c) conjunto de aspectos, traços, elementos e objectos (folclore, mitologia, festas, crenças, cancionairo, etc.) sobre os quais se fundam as identidades nacionais modernas (aquilo que alguns autores designam como patrimonialização);
d) fonte de controvérsias (muitas vezes estratégicas) à volta da ligação diferenciada entre popular e nacional.

Em Portugal a objectificação da cultura popular (a constante c), isto é, a sua transformação em coisas que devem ser estudadas, reinterpretadas, catalogadas, seleccionadas e exibidas como signos de uma identidade local e/ou nacional tem já uma longa história. Este processo proporciona aos objectos patrimonializados uma espécie de segunda vida em que eles deixam de ser objectos da vida rural quotidiana (a sua primeira vida) para passarem a ser objectos de exibição ou exposição em museus e galerias. Aí se exibem a si mesmos para darem testemunho de um tempo e de uma vida que já não existe, ou que está em vias de extinção.

Contudo, a antropologia tem evoluído desde os anos 60 para novas formas de pensar e interpretar a ruralidade, distanciando-se cada vez mais destes meros “programas identitários” (p. 132). O êxodo populacional para as cidades e o consequente declínio do mundo rural levou a que uma nova geração de antropólogos (surgida já depois do 25 de Abril de 74) se interessasse por novos terrenos e objectos de pesquisa, sobretudo em contexto urbano.

Assim, foi apenas uma questão de tempo até que se começasse a questionar a pertinência de encarar a cultura popular de base rural como base de uma identidade nacional e como objecto central dos estudos antropológicos. A nossa adesão à CEE/UE na década de 80 e a voragem modernizadora que se lhe seguiu, tanto no discurso, como nas práticas, tornou mais difícil “o uso da ruralidade como signo identitário. João Leal aponta a Expo 98 e o seu alheamento do mundo rural, como a melhor prova disso mesmo. Foi assim que, com o tempo, os museus ditos de “Arte Popular” e de “Artesanato” se tornaram objectos estranhos, ou mesmo dispensáveis. Muitos encerraram portas um pouco por todo o país (o Museu de Arte Popular em Lisboa, o Museu do Artesanato em Évora ou o Museu da Alfaia Agrícola em Estremoz, por exemplo). Alguns reabriram entretanto, não pela actualidade do seu projecto, “mas pelo valor patrimonial que esse projecto encerrava” (p. 132) e que muitos consideram ainda ser necessário preservar.

Muitos destes espaços que reabriram sobrevivem agora apenas graças aos apoios das câmaras municipais e ao interesse de outras entidades locais (associações, por exemplo), já que o estado declinou aqui as suas responsabilidades (o que revela como está hoje ultrapassada esta ligação directa entre cultura popular e identidade nacional).

É pois pela via das artes que a cultura popular está a ser re-descoberta: Joana Vasconcelos ou Catarina Portas “continuam a discursar Portugal a partir da cultura popular” (p. 133). Só que os seus discursos estéticos já nada têm que ver com a “cultura popular rural dos etnógrafos portugueses nacionalizadores.” (p.133). Poderemos talvez dizer que esta será a terceira vida dos objectos da cultura popular.

Este distanciamento do estado em relação a estes equipamentos museológicos favoreceu ainda uma apropriação e uma revitalização da cultura popular a uma escala sobretudo local ou regional que tem conduzido, um pouco por todo o país, ao renascimento de muitas tradições e práticas (música, folclore, festas, feiras, recriações históricas e etnográficas, etc.).

Esta evolução da cultura popular portuguesa – do plano nacional para um plano sobretudo local ou regional – garantiu-lhe, por um lado, a sobrevivência nestes tempos conturbados da globalização e, por outro, permitiu-lhe transformar-se em “terreno a partir do qual podem continuar a ser declinadas as identidades das pessoas e dos colectivos” (p. 136).

E, a meu ver, a chamada “world music” é um bom exemplo de como novas formas culturais podem nascer no país pós-rural em que nos transformámos e assim “redesenhar o campo das culturas populares urbanas” (p. 136). Funciona até como forma de “investigar os cruzamentos entre formas culturais locais e processos culturais globais” (p. 136-7), já a piscar os olhos às culturas populares urbanas e às sonoridades trazidas pelas populações imigrantes. A “world music”, que deitou raízes na cultura popular, é assim como um fio de Ariadne que re-liga o passado ao presente e nos entreabre a porta para o futuro.



Os Galandum Galundaina cantam naquela que é a segunda língua oficial portuguesa (o mirandês), e são um bom exemplo desta nova forma de discursar a cultura popular e a identidade local e/ou regional. Os sons do plaino mirandês vão ecoar aqui pela sulidão amanhã. (E eu cá já tenho bilhete.)

Nota: Todas as citações são de João Leal, “Usos da cultura popular”, In Como se faz um povo, Coord. de José Neves, Tinta da China Ed./Fundação EDP, 2010, pp.125-137.