sábado, 20 de fevereiro de 2010

Digestões ácidas

Entra-se hoje numa qualquer livraria e deparamos com verdadeiras estalagmites de livros, formadas pelas sucessivas marés ficcionais que têm inundado o mercado ao longo destes últimos anos: a dos códices, códigos e afins, a dos romances histórico-fantasiosos, a das histórias de vida quanto mais sangrentas, dramáticas e humilhantes melhor; a dos vampiros e outras criaturas nocturnas, uns bonzinhos (é de pasmar, de facto), outros, como sempre, sedentos apenas de sangue fresco e adrenalina; a dos guias de (auto) ajuda que prometem revelar o segredo do sucesso permanente em todas as situações e momentos da vida (até admira que ainda haja gente infeliz no mundo); a das relações amorosas em tonalidades variadas que vão do rosa pálido ao cinzento antracite, passando pelo vermelho erótico (mas bem comportado); sem esquecer as (mais ou menos auto) biografias da gente que, de notável, só tem mesmo a assídua presença nas «tardes da Júlia» e outros subprodutos televisivos de semelhante poder anestésico. E todos com 300, 400 ou mais páginas. O resto, o que verdadeiramente possui as qualidades necessárias para permanecer e romper a barreira do tempo, cabe em tiragens de algumas centenas de exemplares (ou nem isso) num cantinho obscuro, achado a duras penas pelos poucos leitores bem treinados e obstinados que não se deixam intimidar pelas muralhas de papel dos best-sellers.

Na sociedade das novas tecnologias, da informação globalizada e da comunicação baseada na “imagem animada”, as relações entre os escritores e as obras que produzem, a leitura que os críticos delas fazem, os meios utilizados para a sua divulgação, bem como o público que visam, são hoje muito diferentes do que eram há algumas décadas atrás. Contudo, Julien Gracq conseguiu ver bastante longe e de forma tão perspicaz que algumas das coisas que escreveu me parecem, agora que o reli, até de uma maior actualidade do que em 87, quando foi lançado em Portugal e o li pela primeira vez. Certo é que “A literatura no estômago”, publicado em 1950, teve desde logo um acolhimento bastante «ácido» em França: pela incompreensão de alguns, pelo desconforto intelectual de outros, pois não é fácil «digerir» palavras tão certeiras e uma análise tão lúcida e frontal do mundo das letras.

O ponto de partida é uma afirmação situada já nas páginas finais do panfleto: para a literatura actual, a tipografia tornou-se num “meio de difusão quase artesanal”, substituída que foi por meios “mecânicos” [hoje diremos tecnológicos] simultaneamente simplificadores e amplificadores” (p.46) que funcionam “como a eructação indistinta desses altifalantes que se esganiçam sobre a barulheira duma feira, à maneira dum ruído de fundo” (p. 46).
 
E uma das consequências mais imediatas destas novas formas de difusão globalizada da informação, “É preciso dizê-lo, porque é de uma veracidade tristemente evidente: uma grande, uma imensa parte do público culto de hoje está «ao corrente» dos últimos progressos da literatura actual quase da mesma maneira como está «ao corrente» dos progressos da ciência atómica; são coisas que escapam, uma e outra, à apreensão directa, coisas de que se tem notícia pelos jornais.” (p. 41).

Portanto, esta massa anónima chamada público, condicionada e formatada por estes novos meios de divulgação da mensagem literária, está “quase sempre em «estado de multidão» com um “desejo contínuo de alimento para a febre, de novo, o mesmo frágil delírio de interpretação a propósito de tudo o que aparece (…). O contacto com este público febril, cujo pulso bate anormalmente (…) não deixa de ter as suas consequências para o escritor” (p.25)

Neste contexto, até a própria percepção da crítica literária está afectada: “… a literatura em França escreve-se e critica-se sobre um fundo sonoro que lhe é próprio (…) algo como um rumor de multidão sobreexcitada e instável, com o murmúrio febril duma permanente Bolsa de Valores” (p. 25).Assim nasceu, pois, “… o escritor de hoje, [o qual] independentemente do lugar que a crítica esclarecida ou os seus pares lhe concedam como artista, existe (ou não existe) para além do círculo que o lê, (…) à maneira duma vedeta” (p. 48). Este escritor-vedeta “corresponde a uma necessidade (…). Para a multidão, uma vedeta é uma pessoa que caminha sobre as águas: triunfa, por procuração, dessa sensação de «mergulho» prenhe de angústia que é a sorte do homem moderno arpoado pelo anonimato voraz da multidão das grandes cidades.” (p. 49). Por isso, “dá a impressão de existir muito menos na medida em que o lêem do que na medida em que «falam dele». É-lhe preciso perseguir sem descanso a imprensa, sempre disposta a adormecer (…) «Aqui estou! Aqui estou – aqui estou sempre!» é por vezes o que se exprime de mais patético (…) através das páginas de tal romancista afamado (…); embora o autor nada tenha a dizer, aquele é o seu livro anual.” (p. 27-28).Para poder sobreviver num terreno onde a concorrência é feroz, “dir-se-ia que [o escritor] abandona alguma coisa do que constituía o seu peso e a sua consistência, ao mesmo tempo que adquire em compensação a leveza lisa e vazia da bóia que permite a um nome flutuar e manter-se à superfície. O preço dessa flutuação é uma simplificação miraculosa, é livrar-se a tempo do que a complexidade duma obra pode ter de embaraçoso.” (p.47).

Gracq conclui que “A verdade é que o escritor dispõe hoje de mil maneiras de se manifestar de alcance muito mais eficaz do que os seus livros” e “ganha muito em rapidez ao servir-se de outras vias além da lenta penetração duma obra escrita, da lenta digestão dela por um público que a fome nem sempre devora.” (p.50). O público exige hoje que o escritor faça essa “estranha transmutação do qualitativo em quantitativo, prova essa de que resulta o escritor apresentar uma superfície antes de ter um talento” (p.50). Estamos claramente sob o império da fugacidade, em que a actualidade se devora a si mesma, da subserviência a interesses sobretudo comerciais, que em nada servem a inteligência e a autonomia mental. Por isso, Julien Gracq divide a literatura actual em zonas semelhantes às do espectro da luz: “vermelho, do público das vendas, congressos, inaugurações, exposições, colóquios, autógrafos e outras «manifestações literárias»; amarelo, dos «resumos» e dos «digests»; verde, dos magazines e jornais dominicais (a literatura atraente, disposta em farsas e armadilhas, em «comic stripes»); azul, do cinema; e enfim violeta, (…) da rádio, onde o mugido da literatura vem morrer à beira do infinito” (p.47).

Sobra aparentemente pouco mas, mesmo assim, trata-se do mais importante e essencial para a literatura deste e de todos os tempos: o escritor, o leitor e a obra que faz a ponte, ainda que ténue e invisível, entre ambos. Ou, como escreve Julien Gracq:
 
1. quando a leitura produz um clique interior e o leitor “adere à obra formando com ela, no vento contínuo das páginas viradas esse bloco de velocidade lubrificada e sem falhas cuja recordação, depois da última página vir bruscamente «cortar o gás», nos deixa atordoados e vacilantes como num princípio de náusea. Alguém que tenha lido um livro desta maneira fica preso a ele por um laço forte, (…) qualquer coisa parecida com o sentimento vago de ter sido iluminado.” (p. 21)

2. “É sobre esta adesão dada do fundo do coração que se fundamenta o poder de um escritor sobre o seu público (…). É por ela, apenas, que existe” e “se tiver conseguido isso ao menos uma vez, esse momento único, ficará com o sentimento de estar salvo” (p. 22). Não serão muitos os escritores que podem, hoje, afirmar ter conseguido tal coisa.