Há quem coleccione objectos, os mais diversos. Eu, colecciono papéis e livros, acho que desde sempre. Nos numerosos papéis que fui guardando em caixas e gavetas (e de que me queixo muitas vezes porque devoram espaço útil) encontro às vezes coisas maravilhosas que guardei por uma razão, (re)encontrei por outra completamente diferente e me fascinam ainda por outras razões: muitas delas, lidas hoje, adquirem novos contornos, novos significados, às vezes até novos fascínios. É uma espécie de memória intemporal, um verdadeiro labirinto pessoal de (re)descobertas e encantamentos. Várias vezes, por razões bem práticas (manter limpo e arrumado tudo isto, e os ácaros sob controlo é tarefa árdua), já tomei a decisão de deitar tudo fora. Mas nunca, até hoje, o consegui fazer. Acho mesmo que nunca conseguirei.
E aqui está um óptimo exemplo: numa entrevista feita ao poeta espanhol José Angel Valente, que guardei numa espécie de dossiê temático sobre Fernando Pessoa, encontrei hoje uma definição extraordinária do que é a poesia:
"P. – Na Casa Fernando Pessoa, respondendo a uma pergunta sobre a missão do poeta, citou o verso de Mallarmé: “Dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. É uma poética ou um princípio geral onde cabem muitas poéticas?
R. – Creio que, nesse verso do “Tombeau d’Edgar Poe”, Mallarmé faz uma aproximação ao sentido da palavra poética em geral. A linguagem comunicativa, marcada por um fim utilitário, vai-se corrompendo, fazendo-se unívoca. A pureza do sentido poético significa libertar todas as camadas de significação que a palavra tem dentro de si. A poesia não é comunicação, mas é a raiz da comunicabilidade. Outro poeta francês, René Char, disse que as palavras sabem muito mais de nós do que nós das palavras – e é certo, porque usamos palavras que atravessaram gerações e gerações. Na poesia, todos os sentidos ressoam e por isso não se pode propor a interpretação de um poema como um dogma de fé. O dogma da Santíssima Trindade diz que há um deus que tem três pessoas; num poema nunca sabemos se as pessoas são cinco e os deuses dezassete..."
In “Leituras”, Público, 14/5/94 (sublinhado meu)
Atrevo-me ainda a acrescentar que a poesia é , verdadeiramente, um “Augúrio de Inocência” , como escreveu William Blake:
Num grão de areia o mundo inteiro ver
E numa flor do campo o firmamento –
Todo o Infinito em tua mão conter
E ter a Eternidade num momento.
(Trad. de David Mourão-Ferreira)