Depois que as últimas chuvas deixaram o céu e ficaram na terra – céu limpo, terra húmida e espelhenta -, a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto, e na frescura de ter havido água se alegrou em baixo, deixou um céu próprio nas almas, uma frescura sua nos corações.
Somos, por pouco que o queiramos, servos da hora e das suas cores e formas, súbditos do céu e da terra. Aquele de nós que mais se embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cerca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o céu está bom. Obscuras transmutações, sentidas talvez só no íntimo dos sentimentos abstractos, se operam porque chove ou deixou de chover, se sentem sem que se sintam porque sem sentir o tempo se sentiu.
Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colónia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Neste mesmo momento, em que escrevo, num intervalo legítimo do trabalho hoje escasso, estas poucas palavras de impressão, ou o que as escreve atentamente, sou o que está contente de não ter nesta hora de trabalhar, sou o que está vendo o céu lá fora, invisível de aqui, sou o que está pensando isto tudo, sou o que sente o corpo contente e as mãos ainda vagamente frias. E todo este mundo meu de gente entre si alheia projecta, como uma multidão diversa mas compacta, uma sombra única – este corpo quieto e escrevente com que reclino, de pé, contra a secretária alta do Borges onde vim buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestara.
30-12-1932, Bernardo Soares, Livro do Desassossego (1ª parte)